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26/02/2010

A arte contra o preconceito

Fonte: Cebes


O prêmio Loucos pela Diversidade - edição Austregésilo Carrano, voltado para iniciativas culturais que atuam na interface saúde mental e cultura, foi um grande sucesso de 2009. Mas o caminho para chegar até ali foi longo. Quem conta a história é um dos seus idealizadores, o psiquiatra Paulo Amarante. Na conversa a seguir, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) destaca a importância da arte para quebrar preconceitos. "Uma das melhores estratégias para mudar algo se dá por meio da cultura, porque ela fala na alma, no espírito das coisas, onde as coisas estão mais condensadas, mais arraigadas", diz.


 Amarante: o prêmio é algo inovador, porque nenhum país no mundo tem uma política de cultura para pessoas com transtorno mental (Foto: Virginia Damas/Ensp)

Amarante: o prêmio é algo inovador, porque nenhum país no mundo tem uma política de cultura para pessoas com transtorno mental (Foto: Virginia Damas/Ensp)


Como surgiu o prêmio Loucos pela Diversidade?



Paulo Amarante:
Há alguns anos trabalhamos com a questão cultural na reforma psiquiátrica. Acreditamos que a reforma não pode ficar restrita à ideia de reforma de serviços, pois não se trata apenas de mudança no âmbito do modelo assistencial, embora esta mudança seja fundamental e inadiável, uma vez que ainda tem uma predominância do manicômio, do asilo, do hospital psiquiátrico, do isolamento etc. E precisamos redirecionar este modelo para a atenção psicossocial, que é centrada na comunidade, no território, na pessoa que se trata em liberdade, mantendo os seus vínculos sociais familiares. Isso tem ocorrido e é muito importante. No entanto, nossa preocupação é que a reforma não se reduza a este aspecto.


Por quê?



Amarante: Boa parte da demanda vinda da internação hospitalar da pessoa em sofrimento psíquico, seja partindo da família, seja da sociedade em geral, é consequência de uma construção social histórica. Foi constituída ao longo de quase três séculos de práticas psiquiátricas equivocadas, que consideravam que a pessoa com transtorno mental seria incapaz de partilhar da sociedade ou representaria um risco para a sociedade. Não existe relação direta entre transtorno mental e periculosidade, a não ser pela construção social equivocada de associar "doença mental" à periculosidade. Para mudar essa concepção, era preciso trabalhar a questão da cultura. Por isso, quando fazemos conferências, palestras, já começamos dizendo que essa concepção arcaica de doença mental mudou. É preciso mostrar que a pessoa com transtorno mental não é irracional, não é incapaz de estudar, conviver, trabalhar. As pessoas ficam surpresas ao ver que pessoas com diagnóstico psiquiátrico dos mais graves podem compor, pintar, participar da vida comum.



Além disso, a ideia de buscar na arte e na cultura uma forma de mostrar para a sociedade que certas concepções estão equivocadas nos faz reconhecer a importância da arte também para as pessoas de forma geral. Não queremos reduzir a arte à terapia. O terapêutico pode dar um sentido de uma indicação médica, psicológica, clínica. E a arte não é só isso, por mais importante que seja esta dimensão. A arte é constituinte do sujeito. Ela produz linguagem, subjetividade, diferentes visões do mundo. Através dela, as pessoas conseguem ressignificar a vida porque canta, porque pinta, porque faz poesia. É um sentido especial à vida, que caracteriza o humano.


Pensando na arte produzida pelas pessoas com transtorno mental?



Amarante: Uma das melhores estratégias para mudar algo é por meio da cultura, porque ela fala na alma, no espírito das coisas, onde as coisas estão mais condensadas, mais arraigadas. Nas concepções das pessoas, é onde a música, o teatro, a poesia, a pintura conseguem tocar fundo. E ainda mais interessante é falar sobre loucura com a linguagem da cultura das pessoas que passaram ou passam por essas experiências. Pessoas que estiveram num manicômio, caso clássico do livro O canto dos malditos, de Austregésilo Carrano, que deu origem ao filme Bicho de sete cabeças. Ou do clássico Diário do hospício, de Lima Barreto, ou ainda, Os últimos dias de paupéria, de Torquato Neto, e assim por diante. São as próprias pessoas com falando através da arte, das suas experiências, da violência a que foram submetidas, do constrangimento, da discriminação no dia a dia.


E como foi conseguir parceiros para o projeto?



Amarante: A gente começou em 2005. Fiz um evento no Centro Cultural Banco do Brasil chamado Cultura e loucura. Começamos a reunir pessoas com essa mesma concepção, talvez não muito organizadas. Começamos a trabalhar nesse viés - cultura e loucura - já nas edições do Fórum Social Mundial com alguns militantes da luta antimanicomial de Porto Alegre, onde fizemos algumas intervenções nesse sentido. Conseguimos fazer uma oficina sobre hip hop e saúde mental, identificando grupos que falavam da exclusão, em geral, e da exclusão das pessoas em sofrimento psíquico. Nós convidamos o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, que compareceu na oficina. Foi importante a sua presença. O grupo que trabalhava na gestão do ex-ministro, que participava dos eventos do Fórum Social, e que continua lá, em especial, a Patrícia Dornelles e o Ricardo Lima, com o apoio do ministro e do então secretário da Identidade e da Diversidade Cultural, Sérgio Mamberti, sugeriu criarmos uma política de cultura para esse segmento social. Seria uma atividade para dar estímulo a essas pessoas, dar visibilidade aos trabalhos delas. E assim surgiu a ideia da oficina Loucos pela Diversidade, realizada na Escola Nacional de Saúde Pública(Ensp/Fiocruz).


E que o surgiu de novo dali?



Amarante: No Ministério da Cultura (MinC), havia uma proposta do ministro Gil de reunir os próprios atores interessados para elaborar as políticas públicas para seus segmentos. Assim deve ser com as populações indígenas, com os ciganos, com os quilombolas e outros. E não é interessante e revolucionário você pensar "os loucos" envolvidos na construção de numa política nacional? A partir daí, identificamos grupos e pessoas no Brasil inteiro. Descobrimos iniciativas culturais importantes. Trouxemos essas pessoas. Todo mundo falou, problematizou pensando políticas de patrimônio, de difusão e de fomento. Criamos três grandes tópicos de ideias e aí começamos já com essa política elaborada. Iniciamos alguns trabalhos para registrar o evento. E procurando ser coerentes para fazer um documentário sobre o evento, contratamos a TV Pinel; as pastas das oficinas foram feitas por cooperativas de usuários, bem como o coffee break. Vieram artistas dos mais variados segmentos. Depois da oficina, passamos um ano praticamente levando o resultado, as propostas construídas de várias partes do Brasil. Fizemos seminários em centros culturais, convidando pessoas ligadas à cultura, à saúde mental e a grupos culturais.


O que representa para o Brasil um prêmio como esse?



Amarante: É algo inovador. Nenhum país no mundo tem uma política de cultura para pessoas com transtorno mental. Uma das ideias foi o edital que seguiu a mesma linha do ministro Gil de construir a políticas com os sujeitos envolvidos. Todo mundo diz que é importante, mas pouca gente faz.



Segundo aspecto: abrindo o edital que é uma forma democrática. Passamos um ano dizendo que íamos fazer, pegando contato. Fizemos vídeo conferências, divulgamos em sites de saúde e cultura, dentre outros, falando do edital. Tudo isso com a maior sensibilidade. Lembramos das pessoas com alguma dificuldade, seja visual ou auditiva, com parceiros que trabalham com essa questão. Abrimos a possibilidade de as pessoas fazerem a própria inscrição com gravador. Não só pela internet ou correios, mas a pessoa podia enviar uma gravação em que dizia: meu nome é tal, moro em tal lugar. Fizemos tudo para facilitar. Aceitamos ligações a cobrar, centenas delas, pois muitas pessoas não tinham telefone ou não tinham como pagar uma ligação interurbana.



Como resultado, tivemos 361 inscrições. Com a preocupação de contemplar as mais variadas manifestações artísticas das várias partes do país, selecionamos 55 prêmios por categorias (7 prêmios para instituições públicas, 8 para entidades da sociedade civil, 20 para grupos autônomos e 20 para pessoas). A ideia era essa: não fazer um evento que reunisse apenas projetos ligados a instituições. Isso foi altamente interessante.


E o futuro do prêmio? Ele poder ser firmar como uma política pública?



Amarante: Primeiro, já temos o compromisso do MinC de que o edital será anual. Segundo, algumas secretarias estaduais e municipais de cultura já começaram a fazer editais próprios porque a política Loucos pela Diversidade é uma política pública do MinC. Desta forma, as secretarias, as instituições de cultura, devem reproduzi-la, ampliá-la, e assim por diante.


Qual é a sua avaliação do projeto?



Amarante: O pior problema do prêmio é escolher. Eu não julguei porque estava à frente de todo o processo e via as dificuldades das pessoas diante de tantas qualidades apresentadas. E a arte é muito difícil, subjetiva. Sobre o edital, ele contribuiu para dar visibilidade e mostrou como existem coisas boas, mesmo para pessoas que já conheciam bons trabalhos como eu. Fiquei impressionado com a qualidade (pintura, reciclagem, de teatro, música). Fiquei surpreso, ainda, com tantas iniciativas que eu não conhecia. Hoje, nós temos um acervo com 361 trabalhos.



Muito importante também foi a participação da Caixa Econômica Federal, que pagou os prêmios e cedeu o espaço da Caixa Cultural para a cerimônia de premiação. Aliás, essa foi uma ação importante. Fizemos questão de não fazer a premiação na Fiocruz. Achamos interessante fazer fora, num espaço cultural, por mais que a instituição tenha uma visão ampliada de saúde como qualidade de vida, de cidadania.


Após 30 anos da luta antimanicomial, ainda há visão distorcida da saúde mental? Em recente entrevista ao programa Canal Livre da Band, o poeta Ferreira Gullar, por exemplo, disse que se opõe a alguns conceitos defendidos pela reforma psiquiátrica.



Amarante: Na abertura do curso de especialização em saúde mental da Fiocruz em 2009, com a presença do cineasta Helvécio Ratton, diretor do documentário Em nome da razão (filme que mostra cenas horríveis do hospital do hospital psiquiátrico no Brasil); do jornalista Hiran Firmino, que no final dos anos 1970, escreveu uma série de reportagens no jornal Estado de Minas, dando origem ao livro Nos porões da loucura; e de Jairo Toledo Furtado, que criou em Barbacena o Museu da Loucura, lançamos um livro de fotografias de reportagens feitas na antiga revista O Cruzeiro, de 1961. A publicação também traz imagens horríveis de instituições psiquiátricas. Nesse mesmo dia, fiz uma fala sobre essa posição do Ferreira Gullar. Disse que o compreendia. Ele teve dois filhos com diagnósticos psiquiátricos graves e que durante 30 anos ficaram praticamente internados em hospitais psiquiátricos. E deve ser muito difícil para ele admitir que esta história poderia ter um outro desfecho, se já existissem Caps, centros de convivência, oficinas e projetos de arte como estas centenas de experiências que vimos no edital Loucos pela Diversidade. Daí surge sua dificuldade de admitir os avanços trazidos pela Reforma Psiquiátrica. As clínicas privadas, as quais ele elogia, são bonitas do lado de fora, quando você vai visitar nos fins de semana. Mas essas instituições são responsáveis por graves situações de violência com o paciente, já que ele representa dinheiro. Qualquer tentativa de fuga é reprimida. Franco Basaglia as denominou de "gaiolas de ouro".


Publicado em 26/2/2010.

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