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10/11/2006

A mulher e a ciência

Eloi S. Garcia


Inspirado no artigo da argentina Nora Bar publicado no jornal La Nación e reproduzido pelo Jornal da Ciência na semana passada, faço uma reflexão sobre o papel da mulher na ciência. De imediato ficou claro que os problemas da mulher cientista não poderiam ser visto somente sob o ponto de vista de nosso país. A questão não é porque existe um número reduzido de mulheres participativas na sociedade. Na História da Humanidade sabemos de tantos casos onde a participação das mulheres foi marcante e expressiva. Por exemplo, na luta contra o racismo, fascismo e outras discriminações sociais.


A história da mulher na ciência é muito mais antiga do que eu imaginava. Há quatro mil anos a sacerdotisa Em Hedu'Anna, da Babilônia, ajudou a decifrar as estrelas e desenvolver os calendários, tornando-se um símbolo e referência importante para os astrônomos e matemáticos. Durante o século 1, Maria la Hebrea, uma química, deu uma enorme contribuição à ciência biológica inventando, na Alexandria, o tão útil banho Maria.


No século 4, uma mulher grega que vivia em Alexandria chamada Hipatia, a mais famosa de todas as mulheres de ciência até chegar Marie Curie no início do século 20, dedicou-se a matemática, astronomia e filosofia. Hoje não resta dúvida de que seus conhecimentos influíram decisivamente o pensamento filosófico do século 18. Hipatia morreu assassinada no ano de 415 dC, a mando de um grupo de fanáticos religiosos devido sua influência na cultura de Alexandria.


Uma bela história é da egípcia Ísis, que deu aos povos do Nilo a escritura e a medicina, mas que também inventou o processo de embalsamamento e a química, e ensinou aos egípcios a agricultura, a navegação e a astronomia. Outros casos interessantes se relacionam com um dos primeiros tratados de ginecologia, que foi escrito por Trótula, uma médica do século 6, a história de Melitta Benz, que inventou, no início do século 19, a cafeteira que leva seu nome e o caso de Mary Anderson que desenvolveu os limpadores de pára-brisas.


De lá para cá, em especial no século 20, as mulheres foram se destacando cada vez mais na ciência. Em 1903, no segundo ano de sua criação, o Prêmio Nobel de Física foi entregue a uma mulher, Marie Curie, e a seu marido, por seus estudos sobre radioatividade. Em 1911, ela ganhou sozinha mais um prêmio Nobel, desta vez de Química, pela descoberta dos elementos rádio e polônio.


Acredito que o esquecimento da mulher na ciência foi criado durante séculos e os historiadores, voluntariamente ou não, ocultaram a presença das mulheres nas atividades cientificas. Talvez por desconhecimento, talvez por receio ou mesmo pelo machismo impregnado na cultura humana. O fato é que a história pouco valoriza a mulher cientista.


Quando olhamos os números da história aparece à verdade nua e crua: 29 mulheres (das quais somente dez se dedicavam às ciências) entre 300 homens ganharam o prêmio Nobel desde sua criação em 1901. A Academia Brasileira de Ciência tem inúmeras acadêmicas, cientistas excelentes com alto impacto no campo em que trabalham, mas somente pouco mais de 10% de seus membros são mulheres. Certamente não é por falta de talento. Esta discrepância não parece estar baseada na produtividade, significância do trabalho ou outras performances profissionais da mulher.


Lembrei-me de uma história interessante que conhecia sobre o observatório astronômico da Universidade de Harvard, um dos mais importantes do mundo. No final do século 19, Harvard queria desenvolver um sistema de classificação das estrelas. Entretanto, devido ao baixo orçamento existente na época para a realização da tal tarefa, foram contratadas mulheres físicas Anna Palmer, Williamina Fleming, Antonia Maury, Annie Cannon e Enrietta Leavitt, por terem um salário menor do que dos homens. O trabalho era baseado em cálculos complicadíssimos e os salários destas mulheres eram equivalentes aos de operários de obra. Pois bem, o sistema revolucionou a astronomia. Cannon desenvolveu um sistema de classificação de estrelas que foi adotado como padrão pela União Astronômica Internacional. Leavitt descobriu as estrelas variáveis que lhe deu o Prêmio Nobel de Física em 1925.


Entre os nomes mais injustiçados da ciência está o de Rosalind Franklin, a especialista em raios-X , associada ao descobrimento mais importante do século 20, a estrutura em dupla hélice do DNA. Suas fotografias chegaram às mãos de James Watson e Francis Crick sem o conhecimento da autora e possibilitaram Watson, Crick e Maurice Wilkins a receberem o Prêmio Nobel em 1962, quatro anos após a sua morte. Franklin, apesar de seu papel fundamental nesta descoberta, até recentemente, não tinha o seu nome envolvido nas histórias do descobrimento do DNA.


São tantos os casos de mulheres cientistas que realizaram trabalhos e descobriram coisas importantes nos últimos séculos mas, apesar da relevância de suas atividades, ainda permanecem quase invisíveis perante a história da ciência. Ou seja, o talento por si só não determina o sucesso científico das mulheres. As mulheres têm que publicar três vezes mais do que os homens para ter o mesmo grau de sucesso.


O que mais me chama a atenção do motivo desta quase invisibilidade é que um número grande de mulheres tem se dedicado à ciência em todas as áreas e sem dúvida são poucos nomes que conhecemos. O problema da mulher na ciência está enraizado na cultura machista da Humanidade. A comunidade científica não foge disto, infelizmente.


Talvez no fundo seja devido ao nosso sistema educativo e as expectativas que se criam em torno da mulher. Esta cultura está impregnada na sociedade, entre os homens, mas também entre as mulheres. Lembramos que recentemente os jornais têm anunciado que no Brasil as mulheres chegaram ao século 21 com escolaridade superior à dos homens. As estatísticas refletiam no aumento da participação feminina na produção científica nacional: elas já eram maiorias nos cursos de graduação e no mestrado.


Ou seja, a “feminilização” da ciência vai ser uma questão de tempo em nosso país. Isto está correto. A ciência pertence a toda a Humanidade e transcende a barreira do sexo. Homens e mulheres compartilham uma linguagem e possuem objetivos comuns para buscar a verdade e revelar os mistérios da natureza.


* Eloi S. Garcia é pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, ex-presidente da Fiocruz e membro da Academia Brasileira de Ciências

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