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03/07/2009

'A saúde pública tem que enfrentar os desafios vindos das funções sociais e econômicas do mundo'

Informe Ensp


O professor João Arriscado Nunes, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, é colaborador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Em visita à Ensp, ele participou de dois seminários e falou sobre os novos desafios da saúde pública e do envolvimento do direito com a saúde.


 Arriscado: os setores que eram objeto da atenção, sobretudo dos serviços públicos, são alvos de processos de privatização. A ideia do bem público está circunscrita e ameaçada (Foto: Virginia Damas/Ensp)

Arriscado: os setores que eram objeto da atenção, sobretudo dos serviços públicos, são alvos de processos de privatização. A ideia do bem público está circunscrita e ameaçada (Foto: Virginia Damas/Ensp)


Como vê os novos desafios que a saúde pública tem a enfrentar hoje?


João Arriscado Nunes: Eu creio que há dois tipos de grandes desafios. Um vem do lado da transformação dos saberes e das práticas médicas, e da forma que essas práticas estão transformando o próprio conhecimento da medicina, as intervenções médicas, produzindo uma série de divulgações em várias áreas da medicina com a preocupação central da doença ou com o diagnóstico precoce, com a prevenção, as medidas profiláticas, e isso tudo tem muito a ver com a centralidade de desenvolvimento científicos na área da genômica e depois também com todos seus projetos sucessores, como a proteômica etc.


Tudo isso está gerando uma grande organização no próprio campo da saúde sob o ponto de vista do que se chama mercadoria política. Estão surgindo formas de organização novas. Podemos dizer que hoje não existe apenas aquela divisão de uma medicina liberal/privada e uma medicina pública. Existe também, cada vez mais, um outro tipo de organização da saúde feito de grandes empresas e, portanto, isso vai trazer mudanças muito grandes nos estatutos dos profissionais de saúde. Muitos médicos passam a ser assalariados pelas organizações privadas, e temos nisso uma transformação. Essa transformação tem ocorrido de maneira bastante desigual em diferentes países e partes do mundo, mas é sentida em todos os lados.


O outro lado disso é a forma como a própria saúde pública tem que enfrentar os desafios ligados a essas funções sociais e econômicas mais amplas e que ocorrem no mundo. Os processos de valorização, tendência de mercantilização, tudo passando a ser comprado e vendido. Aqueles setores que eram antes objeto da atenção, sobretudo dos serviços públicos, são os próprios a serem alvos de processos de privatização e, portanto, a ideia do público começa a ser, de certo modo, circunscrita e ameaçada.


Assim, são nessas circunstâncias que se põem muitos desafios. Em primeiro lugar de saber como é que essas transformações na medicina, nos saberes da saúde, nas tecnologias de saúde, também ocorrem com a transformação dos saberes e depois nas formas de organização do próprio trabalho em saúde. Esse domínio da saúde pública terá que ser repensado de maneira diferenciada, uma vez que temos problemas diferentes tanto na Europa quanto na América Latina, e esse é um grande desafio no qual eu venho trabalhando em minhas exposições.


Em maio do ano passado, o senhor esteve na Ensp participando de um debate sobre a reformulação do Programa de Saúde Pública da Escola. Além de se pensar na reformulação stricto sensu, há uma corrente pensando em uma graduação em saúde pública, não apenas na Ensp, mas em outras instituições de ensino. O que o senhor pensa a respeito de se criar uma graduação em saúde pública?


Arriscado: Eu acompanhei essa questão em vários debates, inclusive na Universidade de Brasília no ano passado, mas não tenho certeza ainda de quais são as vantagens e problemas que decorrem de transformar a saúde pública em tema de graduação. Vai depender muito da definição dos objetivos dessa formação, o que se quer dessa formação ou que tipo de profissional se espera formar. Será que há essa necessidade de transformar a saúde pública em uma graduação? Caso haja, por exemplo, há um problema básico que se põe, e que eu venho discutindo, que é qual é a relação entre a saúde pública e essas tais transformações nos saberes que permitem, em certos casos, intervenções na saúde que não são simplesmente as intervenções clássicas. Cada vez mais é exigido um outro tipo de intervenção que tem a ver com o que podemos chamar da dimensão sistemática da medicina. Eu penso que temos muito a discutir e não tenho essa certeza sobre vantagens e desvantagens de um ou de outro modelo, se eles são complementares ou não e como são complementares. Se houver uma graduação em saúde pública, depois toda a pós-graduação terá que se adequar a essa transformação.


Esta sua vinda ao Brasil foi para participar e trazer sua experiência no campo do direito e saúde e ampliar a cooperação com o Grupo de Direitos Humanos e Saúde da Ensp. O senhor apresentou uma linha de pesquisa com a qual trabalha, sobre direito, Justiça e sociedade . Relate um pouco como essa experiência ocorre em Portugal.


Arriscado: Esse programa Direito, Justiça e Sociedade foi criado por meio de uma colaboração entre a Faculdade de Economia, onde está sediada a área de sociologia da Universidade de Coimbra, a Faculdade de Direito e o Centro de Estudos Sociais. É uma área muito forte da sociologia do direito e é um programa coordenado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Gomes Canotilho. É um programa aberto, mas dirigido aos agentes do próprio judiciário, sejam procuradores, juízes e também pessoas sem formação jurídica, mas que queiram, de fato, especializar-se nessa área de atuação entre direito, justiça e sociedade.


É um programa que tem um conjunto de temas e módulos que tentam lidar com aquilo que chamamos das novas fronteiras que se abrem no direito. São objetos que não são convencionais do direito e levantam problemas muito grandes à formação e ao modo de funcionamento do direito das instituições do Judiciário tal como conhecemos até agora e que traz complementos como saúde, questões ligadas às ciências da vida, comunicação e informação, além de tudo que tem a ver com o direito ao ambiente e áreas novas como direitos humanos. Estamos discutindo como o direito está se relacionando com essas áreas e objetos novos. Essa talvez seja a grande novidade desse programa, que tem sido muito procurado por brasileiros, principalmente do judiciário, especialmente procuradores do Ministério Público e advogados. E eu penso que construiremos um diálogo muito interessante entre a linha que a Ensp está trabalhando e a nossa em Portugal.


Durante a exposição do sociólogo e cientista político brasileiro Emir Sader, no 4º Seminário Internacional Direito e Saúde e 8º Seminário Nacional Direito e Saúde, promovidos pela Ensp, o senhor pediu a palavra e lembrou que, no final da década de 70, Portugal passou por uma ampla reformulação na atenção à saúde, inclusive fazendo com que os formandos em medicina das faculdades públicas trabalhassem durante algum período em localidades com pouco acesso à saúde. Essa medida realmente mudou a saúde pública em Portugal?


Arriscado: O que aconteceu é que essa foi a maneira pela qual se conseguiu chegar a uma ampliação ao sistema de saúde para toda a população portuguesa. Essa iniciativa permitiu que, em zonas do interior do pais, aonde não havia médicos, passasse a haver centros de saúde, equipes médicas e de enfermeiros que assegurassem esse atendimento. E tivemos diversos efeitos interessantes. Muitas mulheres tiveram, pela primeira vez, uma consulta médica de ginecologia, puderam comparecer regularmente a consultas médicas, tiveram acompanhamento na gravidez e meios para o planejamento familiar. Claro que teve também uma importância muito grande para a população idosa. Hoje, a população idosa tem, de fato, uma noção de que o sistema de saúde foi uma conquista muito importante para o país, principalmente para eles que não tinham esse tipo de apoio e isso levou a uma transformação do mapa do acesso à saúde.


Com o tempo os processos de saúde foram modificados, mas, nesse momento, estamos tentando resolver isso, porque temos áreas no país com menos acesso à saúde, e o sistema que temos já não é o mesmo. Os estudantes fazem suas residências em hospitais, e muitos médicos ficam nos grandes centros de Portugal. Portanto, temos esse problema e estamos recrutando médicos em outros países, principalmente da Espanha. Mas, no todo, eu penso que isso não deve evitar que se diga que de fato tivemos um balanço muito positivo. Todas as grandes mudanças que aconteceram em Portugal após 1974, entre elas o Serviço Nacional de Saúde trazendo uma cobertura para a população portuguesa, são sem dúvida uma das nossas maiores conquistas e avaliada positivamente pela população.


O senhor pensa que podemos adotar esse modelo de contrapartida no Brasil? Fazer com que os formandos nas universidades públicas trabalhassem, por algum período, em locais que necessitem de uma melhor atenção pública em vez de abrirem consultórios e trabalhar apenas nos grandes centros urbanos?


Arriscado: Eu penso que seria interessante debater esse modelo por aqui, mas creio que haveria uma grande resistência a isso, sobretudo daqueles que pensam que a medicina deva ser uma profissão para dar rendimentos. Eu creio que essa ideia de trabalhar um ano ou dois anos para um lugar onde não se possa abrir um consultório como uma grande cidade, trabalhar em locais com pouco acesso à saúde, pode não ser uma perspectiva muito atraente para ser discutida. Mas isso é possível se as faculdades de medicina começassem a redefinir um pouco a noção do que é o "ser médico", como o "ser médico" é voltado para a ideia de que existe uma obrigação social e de prestação de serviços. É bem possível que essa possa ser uma boa iniciativa. Agora, eu não conheço suficientemente o processo de ensino brasileiro para saber se esse tipo de iniciativa funcionaria bem, mas penso que este é um debate que pode ser levantado pela comunidade médica.


Publicado em 3/7/2009.

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