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09/08/2006

Ana Paula Vosne Martins

Pablo Ferreira


Autora do livro Visões do feminino, a historiadora Ana Paula Vosne Martins concedeu a entrevista a seguir em 2005. Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a Agência Fiocruz de Notícias veicula novamente a entrevista, em que a pesquisadora discorre sobre o tema de sua obra, que aborda a construção da visão do corpo feminino a partir do saber médico dos séculos 19 e 20. Natural de Curitiba e formada pela Universidade Federal do Paraná, ela completou o Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC) da Fiocruz. A escritora se diz "viciada em literatura", lê 15 livros por ano e aprecia as artes plásticas, que ampliam o seu interesse pelos estudos que desenvolve. A historiadora também publicou, em 2002, o livro Um lar em terra estranha, pela editora Aos Quatro Ventos, do Paraná.







Seu livro é fruto de sua tese de doutorado. Como surgiu a idéia para escrever a tese e posteriormente o livro?


Esta tese nasceu a partir de duas experiências. Quando fazia meu mestrado sobre uma geração de mulheres que começou a entrar nas universidades entre as décadas de 1950 e 1960, no Brasil (geração que eu chamo de geração das mulheres desdobráveis, me apropriando de uma expressão da Adélia Prado), eu também participava do movimento de mulheres e desde então acompanhava e lia tudo sobre sexualidade e sobre o uso, a manipulação e as representações do corpo feminino. Ao fazer a pesquisa do mestrado, chamou minha atenção o quanto a maternidade era naturalizada, tanto pelas minhas entrevistadas, quanto pelos diferentes discursos da época, como a literatura para moças, as revistas femininas, os autores acadêmicos, entre outros. Desta experiência acadêmica e feminista ao mesmo tempo ficou a curiosidade em entender os diferentes mecanismos ou estratégias que produziram uma imagem muito forte e presente: a imagem da mulher-corpo, reproduzida em diferentes veículos de informação, seja um livro de medicina, seja na publicidade.











Michel Foucault (1926-1984)

A outra experiência é de natureza acadêmica. Se você abrir meu livro vai observar que eu começo com uma citação de Michel Foucault. Faço parte da geração de historiadores que teve sua formação marcada pelo impacto das obras e do pensamento foucaultiano no Brasil. No caso da minha pesquisa de doutorado segui a pista apontada por Foucault no seu livro História da sexualidade. A vontade de saber, no qual ele comenta que uma das estratégias relacionadas ao conhecimento e ao poder a respeito do sexo envolvia as mulheres, ou melhor, o que ele chama de "histerização do corpo da mulher". Apoiada igualmente na pesquisa feminista que vem estudando este processo de conhecimento e controle dos corpos femininos desde pelo menos a década de 1970, iniciei meu doutorado procurando entender as origens, as motivações e os processos através dos quais se produziu um amplo e bem documentado saber sobre a mulher a partir do conhecimento do corpo e fundamentado na idéia de uma "natureza feminina" instável, portanto passível de controles.


O livro acabou acontecendo porque a minha tese era conhecida por alguns alunos e professores do Programa de Pós-Graduação da Casa de Oswaldo Cruz, então enviei para a Editora Fiocruz, sendo bem recebido e aceito para a publicação.


As revoluções Industrial e Francesa influenciaram a visão que se tinha da mulher? Antes, como eram essas visões? Quais mudanças ocorreram com tais revoluções?


Diretamente, não. É interessante observar que os pensadores mais importantes do século 18 compartilhavam as idéias sobre a fragilidade e a incapacidade das mulheres para assumir certas responsabilidades sociais, ter acesso ao conhecimento filosófico e científico e principalmente participar da esfera política. Por incrível que pareça, os homens de letras e de ciências do século 18 conviviam com mulheres muito cultas (estou me referindo às classes privilegiadas) que discutiam, traduziam e mesmo produziam conhecimento, mas mesmo assim, homens como Diderot, Rousseau e seus contemporâneos preferiam endossar as velhas e as novas teorias sobre as diferenças de gênero e suas consequências desfavoráveis para as mulheres, todas fundamentadas na idéia de destino natural. Resumidamente, os homens cultos acreditavam que a Natureza havia criado homens e mulheres com diferenças tão visíveis nos seus corpos, quanto nas suas capacidades físicas e intelectuais, dando a cada gênero funções sociais que estavam relacionadas às estruturas orgânicas que começavam a ser conhecidas pelo saber anatômico e médico.










O quadro A liberdade liderando o povo, pintado em 1830 pelo francês Eugène

Delacroix (1798-1963), retrata a Revolução Francesa iniciada em 1789

A Revolução Francesa não contribuiu para mudar esta idéia de destino natural. Os limites do discurso revolucionário e republicano são bastante visíveis quando se observa a questão dos direitos de cidadania para as mulheres. A princípio elas se organizaram em clubes políticos, participaram efetivamente das ações populares, falavam das tribunas e nas reuniões políticas, mas a partir de 1792, quando as reivindicações femininas passaram a incluir demandas como direito de lutar na guerra lado a lado com os homens e portando armas, direito de voto e de ser votada para exercer cargos públicos, enfim, igualdade política e jurídica, a reação foi imediata e violenta por parte dos revolucionários. Muitas mulheres que ousaram reivindicar a igualdade e os direitos das cidadãs foram presas e algumas condenadas à morte.


O resultado desta batalha revolucionária pela igualdade entre os sexos foi um recuo na condição feminina, tanto política quanto juridicamente. Às mulheres foi negado qualquer direito de expressão e manifestação política, permanecendo sob tutela masculina. As idéias científicas e médicas sobre a natureza feminina contribuíram diretamente para esse recuo, sancionando a desigualdade ao afirmarem que a Natureza não havia "equipado" as mulheres para exercer papéis ou funções sociais que só cabiam aos homens. O que restava às mulheres? A resposta vinha na ponta da língua para os homens da ciência: a maternidade, o cuidado com a casa e os filhos, a vida e a paz doméstica.


Quanto à Revolução Industrial, seus efeitos sobre a vida das mulheres das classes populares foram imediatos. Não me refiro aos direitos das trabalhadoras, pois estes só começaram a ser tratados e conquistados na segunda metade do século 19 em alguns países europeus. Quando falo de efeitos refiro-me às transformações no cotidiano e na vida das mulheres que tiveram que deixar suas casas, filhos e afazeres domésticos para se adaptar à nova organização do trabalho que exigia transformações nas noções de tempo, de disciplina e de uso do corpo. Acho importante ressaltar que o trabalho feminino não foi uma "criação" da Revolução Industrial, afinal as mulheres camponesas e artesãs trabalhavam e muito nas sociedades pré-industriais. O que mudou foi o controle sobre o tempo e o corpo do indivíduo (homens, mulheres e crianças) no sistema de fábrica, agravado, para as mulheres, porque elas continuaram a ter que cuidar da casa e dos filhos. Penso também no aspecto dos conflitos internos das classes trabalhadoras, pois desde o início da Revolução Industrial o trabalho feminino foi condenado pelos homens e mesmo por aqueles que escreveram sobre as condições das classes trabalhadoras, como Engels, por exemplo. O problema é que a reação ao trabalho feminino não tinha como fundamentação a exploração somente, ou os baixos salários e as péssimas condições de trabalho, mas o aspecto moral. Mulheres nas fábricas podiam ser exploradas sexualmente pelos patrões; mulheres nas fábricas invertiam a "ordem natural das coisas", contribuindo para o desemprego dos homens e deixando o lar à deriva. Qual a solução? Aumentar os salários dos homens que eram os provedores da família e fazer com que as mulheres voltassem para casa e assumissem o seu lugar de esposas, mães e donas de casa.










Foto, sacada em 1909 por Lewis Hine, retrata

menina trabalhando em fabrica textil nos EUA


A Revolução Industrial, associada às novas idéias de separação das esferas pública e privada, bem como às teorias sobre a complementação sexual, agravou as condições de vida das mulheres trabalhadoras. Vistas como as únicas responsáveis pelo lar e pelas crianças, as mulheres trabalhadoras foram condenadas pelo discurso médico e filantrópico de abandono e negligência; não encontraram apoio entre os homens que atuavam nas organizações políticas da classe trabalhadora, que as viam como uma ameaça para seus empregos e salários; foram submetidas às péssimas condições de trabalho e viviam no limiar da miséria.


Como se iniciou a construção da imagem feminina feita pelas ciências médicas?


O conhecimento médico sobre a diferença feminina se inicia em meados do século 18 acompanhando o debate político e cultural sobre as diferenças humanas que mobilizou os homens das letras e das ciências na Europa. Os anatomistas foram os primeiros a procurar nos corpos dissecados as diferenças de gênero e a atribuir-lhes significados culturais, isto é, na sua interpretação do que era visto na sala de anatomia a Natureza havia criado corpos irredutivelmente diferentes com finalidades ou funções não só anatômicas ou fisiológicas, mas sociais. Esse determinismo anatômico vinha bem a calhar com as idéias sobre as hierarquias e desigualdades de gênero, servindo o saber anatômico para dar uma chancela científica e irrefutável a estas idéias.










Desenho anatômico de útero com feto feito entre

1510 e 1512 por Leonardo da Vinci (1452-1519)


Seguindo a trilha aberta pelos anatomistas, os cirurgiões ingleses e franceses do século 18 começaram a investigar o que então se considerava a especificidade da natureza feminina: a maternidade. Na verdade os médicos pouco sabiam sobre a reprodução humana e menos ainda sobre os processos da gravidez e do parto. O parto era, até então, um assunto de mulheres e muito médicos e cirurgiões continuaram a defender que deveria continuar assim. No entanto, alguns cirurgiões retomaram uma tradição obstétrica antiga que vinha dos médicos gregos e romanos e também de alguns tratados produzidos na época do Renascimento, desenvolvendo seus próprios conhecimentos a partir da experiência em atender partos laboriosos que necessitavam da intervenção cirúrgica, como também da observação resultante de autópsias em mulheres grávidas, como eu mostro no livro. Foi desta forma que se iniciou a produção do saber sobre o corpo feminino.


Como tal visão colaborou para o aprisionamento da mulher?


O saber médico sobre o corpo feminino produzido pela obstetrícia e a ginecologia contribuiu para a construção de uma imagem ambígua sobre a mulher, especialmente no século 19. Por um lado, a medicina da mulher enalteceu a maternidade como um valor moral, fundamentada nos argumentos científicos sobre a especificidade do corpo feminino para a reprodução. A medicina da mulher afirmava que as mulheres foram moldadas pela Natureza para produzir e cuidar dos filhos, enquanto os corpos masculinos foram criados para o enfrentamento de outros desafios que os levavam para fora do lar. Desta forma, a medicina da mulher sancionava a ideologia da domesticidade, ao dizer que as mulheres não eram capazes de assumir responsabilidades além daquelas associadas à maternidade e aos cuidados domésticos.










Quadro Uma lição clínica em La Salpetriere, pintado por André Brouillet (1857-1914) e que retrata o neurologista Martin Charcot (1825-1893) utilizando uma paciente para demonstrar um caso de histeria

Por outro lado, os mesmos médicos que afirmavam que a mulher era moralmente superior ao homem por causa do chamado instinto materno, diziam que a natureza feminina era instável, ou seja, susceptível a estímulos nervosos que podiam desencadear processos patológicos. O mais interessante dessa visão ambígua da mulher é que a origem de todos os males estava no mesmo lugar da origem das virtudes maternas: no corpo feminino. Penso que os médicos oitocentistas nutriam sentimentos contraditórios pelo corpo feminino e sua capacidade de gerar e dar a vida, pois ao mesmo tempo em que viam no ventre a fonte da vida, viam também o lugar da origem dos males, a caixa de Pandora.


Desta forma, este conhecimento produziu uma visão limitada do feminino, eu diria "enquadrada", ou normalizada. Ou as mulheres se adequavam ao molde da mãe amorosa ou deslizavam para o mundo das sombras que se escondiam em seus próprios corpos.


Até onde obstetrícia e ginecologia colaboraram para a saúde da mulher e para seu aprisionamento?


Em primeiro lugar gostaria de dizer que o meu livro, em momento algum, defende uma idéia anticientífica ou contrária ao conhecimento médico. Seria tolice negar que os conhecimentos médicos e científicos produzidos nos séculos 19 e 20 contribuíram para a melhoria das condições de vida não só das mulheres, mas das pessoas, genericamente falando. A questão que eu problematizo é sobre o aspecto ideológico do conhecimento científico, ou colocando em outros termos, sobre as relações entre o saber e o poder. Se, por um lado, podemos pensar que as técnicas cirúrgicas salvaram vidas ou restabeleceram a saúde das mulheres, bem como as práticas assépticas diminuíram consideravelmente a mortalidade materna e infantil nos hospitais, por outro lado, os saberes e a tecnologia não foram neutros, muito menos os médicos que os produziram e manejaram. Salvaram vidas, inegavelmente, mas as controlaram, as normalizaram e as limitaram ao afirmarem que o corpo da mulher era uma armadilha, pois estabelecia seu destino: ou mãe, ou anormal.


O que mudou no discurso médico do século 19 para os dias atuais?


Penso que no que diz respeito à formação do médico pouca coisa mudou. Refiro-me ao poder médico. Pelo que conheço dos currículos das escolas de medicina no Brasil, esta continua sendo uma questão intocada, pois as aulas de deontologia médica não tratam das relações entre o saber e o poder. No que diz respeito à medicina da mulher, as únicas mudanças que eu considero notáveis ocorreram pela introdução da crítica feminista na prática médica, mas isso é muito localizado e mais presente nos serviços de saúde das mulheres prestados por organizações não governamentais. Desde meados da década de 1980 algumas destas organizações que contavam com profissionais da saúde em seus quadros, como enfermeiras e médicas, passaram a desenvolver formas mais humanitárias de relacionamento com as mulheres - que não eram vistas como pacientes, mas cidadãs que precisavam de apoio e de cuidados. A abordagem do corpo feminino é diferente, bem como da própria mulher, não mais vista como "a mãe". O problema, me parece, continua na definição médica do feminino, ou seja, continua-se a acentuar a especificidade reprodutiva do corpo feminino, como se a maternidade fosse algo inquestionável, uma experiência pela qual todas as mulheres têm, necessariamente que passar.


Como é a visão brasileira da mulher? Em que ela diferencia se comparada com as visões da Europa, dos EUA ou dos países latino-americanos?


Não sei se existe algo como uma visão brasileira da mulher. Penso que cada cultura tem um conjunto de definições de gênero variáveis segundo a classe social, a raça e o grau de informações culturais. O que me incomoda na cultura brasileira é a permanência de um olhar machista canibal presente em diferentes instituições e formas de expressão e comunicação. Vou me explicar. O Affonso Romano de Sant'Anna escreveu um livro (O canibalismo amoroso), que eu acho que explica muito bem esta forma masculina de desejo pela mulher na nossa cultura. Apropriando-me das idéias de Sant'Anna, penso que no Brasil é muito arraigada a imagem da mulher-comida, que precisa ser tenra, apalpada, olhada gulosamente e saboreada, mesmo que seja na imaginação. Esta imagem é tão forte, naturalizada e tão presente no nosso cotidiano que não pensamos nos seus efeitos para as mulheres e para as relações de gênero.










Antropofagia, pintado em 1929

pela brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973)


É muito difícil que uma mulher brasileira alguma vez não tenha se defrontado com essa imagem da mulher-comida, seja na forma violenta da agressão verbal, física e mesmo sexual, seja pelo aspecto mais simbólico da construção da imagem idealizada da mulher bela e desejável disseminada pela moda, pela propaganda e pelos meios de comunicação, em especial a televisão.


Não quero parecer uma intelectual rabugenta ou moralista, pois nosso desejo, digo, das mulheres, pode sim nos levar a querer ser canibalizada, por que não? O problema está na ausência de outras imagens, na fixação neste modelo que pode se tornar uma camisa de força para as mulheres, fonte de medo ou de frustração.


Quais são as principais diferenças entre a medicina da mulher praticada no Brasil e a medicina da mulher no mundo?


No século 19 a medicina da mulher não tinha um padrão único de procedimentos, como também os médicos não constituíam uma categoria profissional homogênea no que diz respeito às idéias sobre as mulheres e mesmo sobre a necessidade de existir especialidades médicas como a obstetrícia e a ginecologia. Apesar disso, os médicos se envolveram nos debates sobre as diferenças sexuais, como a questão da educação feminina, a prostituição, o trabalho fora do lar, a responsabilidade feminina pela educação dos filhos e a capacidade intelectual das mulheres para exercer certas profissões, como a medicina, por exemplo. Estes debates foram mais acalorados nos Estados Unidos do que na Europa, embora os médicos brasileiros estivessem informados sobre tais polêmicas e também assumissem suas posições quanto à fragilidade e a inferioridade feminina.


Acho importante salientar que a principal diferença entre os médicos brasileiros e seus contemporâneos estrangeiros é que eles não se envolviam em polêmicas, a não ser alguns poucos casos médicos que freqüentaram as páginas dos jornais, bem como foram raros aqueles que procuraram produzir sínteses a respeito da diferença feminina. Penso que os médicos brasileiros estavam mais preocupados com as condições da formação médica nas nossas faculdades e com as dificuldades na prática da medicina da mulher do que em polemizar sobre aqueles assuntos que tanta pena fizeram correr nos Estados Unidos e em alguns países europeus.


Que transformações foram mais relevantes para a vida da mulher entre os séculos 19 e 21?
















Virginia Woolf (1881-1941)

Penso que o acesso à educação foi, sem dúvida, importante para a conscientização das mulheres sobre suas capacidades em superar a insegurança para exercer qualquer atividade profissional e intelectual. Nesse sentido sou uma adepta das idéias de Virginia Woolf, para quem as mulheres precisam de liberdade para pensar e estudar e dinheiro, pois sem ele não se tem espaço, nem as condições necessárias para exercer aquelas atividades.


Portanto, outra conquista importante para as mulheres foi o acesso às profissões que contribuíram para a autonomia e a independência econômica, como as carreiras ligadas à medicina, ao direito, às ciências e ao magistério. As pioneiras em profissões masculinas que davam prestígio e dinheiro abriram um valioso caminho para outras mulheres e deveriam ser conhecidas e reconhecidas pela coragem e dedicação que tiveram, pois aqueles eram tempos bastante difíceis para mulheres que ousavam querer mais do que as quatro paredes de uma sala impecável cheia de bibelôs ou balançar bebês robustos no colo.


Que mulher é menos livre ou mais massacrada? A mãe frágil e reclusa do século 19, ou a trabalhadora com jornada dupla do século 21?


Cada época tem suas armadilhas e seus conceitos de liberdade. Para os iluministas a liberdade era expor suas idéias sem censura, embora estivessem excluídas as mulheres. Ser uma mulher das classes privilegiadas no século 19 significava estar sob vigilância constante da religião, da família, dos educadores, dos maridos, dos médicos, enfim, de um conjunto de instituições que prezavam pela ordem social e esta deveria começar no lar. No entanto, isso não significa que muitas mulheres desejassem algo diferente para suas vidas. Há vários exemplos de mulheres que enfrentaram os costumes e as convenções sociais, estudaram e chegaram a exercer profissões como a medicina, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.


As mulheres das classes trabalhadoras não eram tão vigiadas quanto as mulheres das elites, mas tinham sua condição de gênero agravada pela exploração do trabalho e a pobreza, tão denunciada pela literatura e pela filantropia do século 19.


Penso que nos dias atuais a questão não está na famosa jornada dupla de trabalho, pois as mulheres do passado também trabalhavam, tinham suas casas e filhos, portanto, essa não é uma experiência historicamente nova, pelo menos não é nova para as classes trabalhadoras. O problema continua, no meu entendimento, na visão que ainda se tem da mulher como sendo a única responsável pela organização e gerenciamento doméstico e o cuidado com as crianças. Por que a maternidade continua sendo vista como uma atividade que não pode ser compartilhada como outras pessoas e instituições? Por que as mulheres mães continuam educando seus filhos e filhas de maneira diferenciada, ensinando as meninas a cuidar da casa e das coisas de forma responsável, mas não os meninos?


O problema maior para as mulheres do século 21 é a permanência de uma visão naturalizada da maternidade e mesmo da mulher, que contribui para a falta de tempo, a frustração em não conseguir fazer tudo ao mesmo tempo e a insegurança em não se adequar aos padrões culturais da mulher que trabalha, é competente e ainda por cima e por baixo é uma mãe maravilhosa.


A "ditadura" da estética e a construção e imposição por parte dos meios de comunicação da mulher ideal poderiam ser consideradas a principal ameaça à saúde da mulher de hoje?














Não diria a principal ameaça, mas uma grave ameaça à saúde física e mental da mulher, sim. Afinal a corpolatria e o ideal top model de beleza não atingem igualmente as mulheres, variando conforme a região, a classe social, a educação, o acesso às informações, entre outras. Por exemplo, a preocupação com o corpo magro e modelado é muito maior e até obsessivo no Rio do que em Salvador ou Belém do Pará.


Fico bastante preocupada com as meninas e adolescentes que são mais atingidas pelos rígidos modelos impostos pela moda, pela publicidade, cinema e televisão.


Como a magreza e a juventude são, hoje, sinônimos de felicidade, sucesso e ascensão social - há várias top models brasileiras para citar como exemplo - as meninas começam muito cedo a se preocupar com sua imagem, com o peso, com cabelos e pele. Não acho que elas devam se despreocupar com a aparência, mas a obsessão pode, sim, levar a comportamentos cada vez mais individualistas e desenvolver síndromes como a bulimia e a anorexia, levando, em casos extremos, à morte.


Penso que os pais ou responsáveis deveriam ficar mais atentos para este bombardeio de imagens que insistem em dizer o tempo todo e de forma exagerada, porém sedutora, que a mulher tem que ser bela e isso significa ser magra, muito magra, ser jovem, cada vez mais jovem, ter um certo biótipo, enfim, aquele padrão que todas as adolescentes e as nem tão adolescentes conhecem muito bem e que algumas sofrem muito para poder acompanhar e se adequar.


Eu gosto muito do que diz a filósofa Susan Bordo, especialista em filosofia do corpo e teoria feminista que já publicou vários livros e artigos sobre desordens alimentares. Ela diz que "mulheres que estão morrendo de fome não podem fazer uma revolução cultural". Eu complementaria dizendo que mulheres que não conseguem ir além das academias e de enxergar seu reflexo distorcido no espelho, que são presas fáceis do consumo, que gastam demais, tempo, dinheiro e energia, para se enquadrar no rígido modelo corporal da indústria da moda e do fitness, são versões modernizadas pela tecnologia da mulher-corpo criada pela ciência e a medicina do século 19. Ou seja, não representam ameaça alguma para os valores estabelecidos e dificilmente podem trazer alguma contribuição para qualquer processo de mudança ou de questionamento da ordem social. São dóceis.


Que desafios a mulher de hoje deve buscar para tornar-se mais livre?












Em primeiro lugar acredito que buscar a autonomia. Isso, na minha opinião, é fundamental. Autonomia é diferente de independência, pois esta pressupõe uma condição que deva ser superada em favor de outra considerada pelo indivíduo como melhor para seu desenvolvimento, expressão de idéias, enfim, para o exercício da liberdade. A autonomia é uma situação que as mulheres deveriam almejar desde meninas, pela educação familiar e escolar. Desejar ser autônoma não é algo fácil, pois as meninas aprendem desde cedo que alguém pode fazer algo por elas, cuidar delas e até pensar por elas. Querer ser autônoma requer disposição para conflitos, enfrentamentos de situações desagradáveis, vontade e curiosidade para aprender coisas novas, enfim, todo o tipo de enfrentamento de situações que levem o indivíduo a pensar e agir conscientemente. Penso que a educação em nossa cultura ainda não prepara as meninas para agir dessa forma. Se eu tivesse uma filha com 12 anos eu daria a ela um livro da Virginia Woolf (Um teto todo seu), para ela ler e aprender uma sábia lição de autonomia.


Em segundo lugar acho que as mulheres precisam aprender a lidar com os homens e com as suas (delas) emoções. Quando as mulheres forem autônomas e não enxergarem os homens como seres especiais, semi-divinos, cujo julgamento ou opinião é fatal para elas, então as relações de gênero poderão ser vividas em bases mais igualitárias e mais justas. As mudanças jurídicas foram e são muito importantes, mas não há lei, nem código algum que regulamente as emoções, os sentimentos, a forma como vemos os outros. O feminismo que eu defendo não é apenas aquele que regulamenta os direitos de cidadania para as mulheres, mas aquele que prega a tal da revolução cultural de que fala Susan Bordo, que procura mudar formas de pensar e de agir, um feminismo humanista.


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