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17/12/2010

Antropólogo discute o papel da família na epidemia das drogas

Fernanda Marques


A Confederação Nacional dos Municípios divulgou neste mês os resultados de uma pesquisa sobre o crack no Brasil, a partir de consulta às secretarias de Saúde. O levantamento constatou que em 98% dos 3.950 municípios consultados existem problemas relacionados a drogas e/ou ao crack. Políticas públicas para o enfrentamento das drogas são tema de um capítulo de Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas, livro da Editora Fiocruz. De acordo com o autor do artigo, o antropólogo Sérgio Trad, ainda é bastante incipiente a implantação de estratégias centradas na família, mas ganham força os apelos para que ela seja incorporada às ações de prevenção e assistência. Para Trad, romper os preconceitos que existem em torno das drogas é condição necessária a qualquer proposta que busque integrar comunidade, família e usuários no enfrentamento do problema.



“Pode-se considerar que o cenário atual das políticas de drogas é favorável ao florescimento de projetos de caráter pedagógico e humanístico”, diz o autor. “Cresce a convicção da importância da família, seja no apoio ao tratamento da dependência, seja pelo papel do âmbito familiar no desenvolvimento de crianças e jovens”, completa ele, lembrando que um contexto de afeto, amor e cuidado pode funcionar como um fator protetor. Mestre em comunicação e cultura, Trad é cientista social do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania do Ministério da Justiça e associado ao Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica Comunidade, Família e Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba).


O capítulo é dividido em três eixos. No primeiro, o autor traça um breve histórico do tema. Segundo Trad, na passagem para a sociedade urbano-industrial, a medicina científica e o Estado fundamentaram o “modelo proibicionista de drogas”, no qual a representação do consumo oscilava entre delinquência e doença e a prevenção se centrava em aspectos médicos e jurídicos. A partir dos anos 1960, com os movimentos de contracultura, esse modelo começou a ser questionado. No Brasil, só após o fim da ditadura militar emergiram novos discursos. “As críticas ao modelo proibicionista levaram a novas propostas e ao destaque da importância da família no campo da saúde, resgatando sua capacidade de mediação entre o indivíduo, o uso de drogas e a sociedade”, afirma Trad. “Ressalta-se, aqui, o duplo papel exercido pela família, seja como fator responsável pelo uso abusivo, seja pela responsabilidade na eficácia do tratamento clínico”.


No segundo eixo, o autor apresenta uma série de estudos sobre drogas e família. Com a revisão desses trabalhos, Trad constata que a família não é o único determinante do uso ou abuso de substâncias. “Prevalece a tese de multideterminação do fenômeno, sendo valorizada a associação entre fatores psicossociais, culturais e farmacológicos”, explica. Além disso, “evidencia-se, nos diversos trabalhos consultados, a necessidade de se atender conjuntamente a família e o usuário, para obter um melhor entendimento do problema ou para desenvolver uma ação efetiva de prevenção”.


Por fim, no terceiro eixo, o autor propõe bases preliminares para a inserção da família nas políticas de drogas. Trad destaca, por exemplo, que essas políticas devem levar em conta a crescente complexidade e flexibilidade do conceito de família, bem como a lógica da territorialização e da humanização em saúde. “As ações propostas devem estar conectadas à realidade vivida pelas famílias reconhecendo seus limites e potencialidades”, sugere Trad. “A construção e a manutenção de vínculos de confiança na relação com o usuário e sua família dependerão, em grande medida, da habilidade do profissional em adotar este tipo de abordagem”. Para prevenir e enfrentar as drogas, o antropólogo aponta, ainda, a necessidade de romper não só com os modelos moralistas e doutrinários, mas também com o assistencialismo, a passividade e a apatia. Para tanto, o autor recomenda ações socioeducativas pautadas por relações horizontais, com atuação de equipes profissionais interdisciplinares e, claro, participação ativa das famílias. Entretanto, “convém não superestimar o potencial da família na reversão do problema das drogas”, pondera Trad. “Mesmo reconhecendo o papel crucial dela na produção de cuidados, afeto e sua potencialidade para promover o desenvolvimento saudável dos indivíduos, não se pode esquecer que a problemática das drogas extrapola o contexto familiar”.


Fome e luto também são temas de livro


Organizado por Leny A. Bomfim Trad e publicado pela Editora Fiocruz, o livro Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas é uma coletânea que aprofunda criticamente o conceito de família – ou melhor, de famílias, no plural. Com foco nos campos da saúde e das políticas públicas, 21 autores debatem, ao longo de 16 capítulos, temas como sexualidade, afeto, reprodução, parto, questões de gênero e de gerações, o lugar da criança e do idoso, renda, pobreza, violência, drogas, fome e luto. Psicóloga, doutora em ciências sociais e saúde e pós-doutora em antropologia da saúde, Leny é professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), em que também coordena o Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica Comunidade, Família e Saúde.


A família – como demonstram a Estratégia Saúde da Família e o Programa Bolsa Família – está na agenda das políticas públicas. Entretanto, a família, sobretudo a contemporânea, é também marcada pela diversidade de configurações, identidades, valores, representações e comportamentos. “Uma vez que a garantia de certos direitos ou concessões vinculados à família, como a o acesso a benefícios e a serviços, depende de definições de elegibilidade, o que se considera ‘família’ em cada política ou programa não é uma questão trivial”, explica a socióloga Jeni Vaitsman, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), no prefácio do livro. “Devido a ínfimas diferenças de renda ou faixa etária, o acesso a serviços ou benefícios pode ser negado a famílias ou a algum de seus membros, ainda que em situações de vulnerabilidade”.


E os desafios de se trabalhar com a família vão além: combinar a intervenção do Estado com a autonomia das pessoas; somar a unidade doméstica às redes de parentes e vizinhos; partir de grandes generalizações para chegar a realidades específicas e problemas concretos. Estas e outras questões demonstram que a abordagem da família deve ser interdisciplinar. Assim, especialmente no campo da saúde, coloca-se mais um desafio: “compatibilizar a família como unidade de atenção com a formação predominante dos profissionais de saúde, baseada no modelo biomédico, um modelo distante do universo relacional e intersubjetivo da família”, conforme resume a organizadora na apresentação do livro.


Publicado em 15/12/2010.

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