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30/01/2015

Artigo analisa a política do leite na era Vargas

Ricardo Valverde


De acordo com historadores, o consumo de leite de origem animal teve início no Oriente Médio, com a domesticação do gado, o que teria impulsionado a Revolução Neolítica. O primeiro animal domesticado foi a vaca, e em seguida a cabra, aproximadamente na mesma época, e finalmente a ovelha, entre 9000 e 8000 a.C. No Brasil, a origem do leite para consumo está relacionada à exploração do gado durante o período colonial. Mas até meados do século 19 o consumo de leite teve caráter secundário, com poucas vacas mantidas para esse fim, e a pequena disponibilidade do produto impediu que sua ingestão se tornasse um hábito. No entanto, nos anos 1930 difundiu-se no Brasil uma nova ciência, a nutrição, que introduziu também a convicção de que o leite de vaca constituía o mais importante dos alimentos básicos. A partir daí, impulsionado por profissionais da saúde, o governo de Getúlio Vargas promoveu um esforço para melhorar o até então precaríssimo sistema de abastecimento do produto no Rio de Janeiro, na época capital da República. O episódio está dissecado em um artigo do pesquisador Sören Brinkmann publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, editada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Até o início do século 20 o leite era consumido no Brasil sem nenhum tipo de tratamento, o que poderia causar uma série de doenças à população. O transporte do leite, que antes da Abolição era feito por escravos, em latão, passou a ser feito por vaqueiros que o produziam nas periferias das cidades, em geral em condições insatisfatórias de higiene e qualidade. Essa situação confrontava as teses da recém-surgida ciência da nutrição, para a qual o leite era um alimento fundamental para a saúde e o bem-estar das pessoas. Em 1918, o bioquímico americano e pioneiro da vitaminologia Elmer Verner McCollum havia declarado o leite de vaca o mais importante dos “alimentos protetores”, que não devia faltar na nutrição cotidiana de crianças e adultos.  Segundo McCollum, citado por Brinkmann, devido ao seu extraordinário conteúdo de sais minerais, vitaminas e proteínas de alto valor, não existia alimento melhor do que o leite para corrigir as deficiências nutritivas da alimentação habitual. Em época de Primeira Guerra Mundial, com deficiências e privações decorrentes do conflito, o leite de vaca representava a máxima garantia de saúde, de acordo com o cientista.

Ainda segundo McCollum, para além dos conselhos nutricionais, o consumo de leite revelou-se quase fator “eugênico” na formação de uma nação moderna, posto que os distintos níveis do consumo ao longo dos séculos pareciam explicar não só o progresso civilizador do mundo ocidental, especialmente dos EUA, mas também o suposto atraso material e cultural de “chineses, japoneses e dos povos dos trópicos em geral”. Seguindo o caminho aberto pelo americano, na década de 1920 as novas hipóteses sobre o valor sanitário do leite de vaca conquistaram os círculos médicos e nutricionistas de praticamente todos os países ocidentais, gerando uma verdadeira “ideologia do leite” que, por sua vez, daria nova orientação não só às políticas de nutrição, mas também ao fomento da agropecuária.

No Brasil, porém, a situação estava muito distante desse ideal proposto nos EUA e na Europa. A propaganda do alimento, no começo dos anos 1930, apesar dos esforços do prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, em aumentar o consumo do produto, ocultava o fato de que a maioria das grandes cidades do país, incluindo a capital federal, não dispunha de oferta comercial de leite fresco apropriada para cumprir a exigência dos nutricionistas de ampliar a ingestão diária. Para Brinkmann, foi assim que o Estado Novo de Getúlio Vargas interveio, tendo como meta melhorar o sistema de fornecimento de leite à população. O governo então empreendeu um ambicioso projeto para oferecer solução à chamada questão do leite na capital da República. O problema é que esse projeto exigia a reorganização do sistema de abastecimento, tarefa que estava além da capacidade de intervenção do Estado.

Em 1935, o consumo havia alcançado não mais do que 130ml diários entre a população carioca, o que ficava muito aquém dos níveis dos chamados países desenvolvidos e das recomendações da ciência da nutrição. A Comissão Técnica de Nutrição da Organização de Higiene da Sociedade das Nações, que durante a década de 1930 encabeçava a padronização internacional do que deveria ser uma alimentação “racional” e saudável, exigia o consumo mínimo diário de 500ml por adulto e de 1000ml por criança até 14 anos.

O leite consumido na capital federal provinha de duas fontes, segundo Brinkmann: cerca de 15% da oferta era do produto cru, produzido nos estábulos da cidade sob precárias condições higiênicas, o que há anos vinha provocando violentos protestos por parte de médicos e pediatras, que consideravam o “leite do vaqueiro” um perigo para a saúde pública e pediam pelo imediato fechamento desses estabelecimentos. O restante da oferta comercial compunha-se de leite pasteurizado vindo por vias férreas de distintas zonas pecuárias no interior dos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, a maior parte de qualidade deficiente. O alimento era transportado em precárias condições, pois as companhias ferroviárias não dispunham de vagões frigoríficos para o adequado armazenamento. Além da baixa qualidade, o leite era um produto cara para a maior parte dos cariocas.

Foi em 1937, com a instalação do Estado Novo, que a questão alimentar ganhou mais peso político, levando o governo a criar o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps). Esse fato coincidiu com o estabelecimento do salário-mínimo, que ampliou o poder de compra dos trabalhadores e consequentemente a possibilidade de adquirirem mais e melhores alimentos. Assim, o leite recebeu mais uma vez um status extraordinário ao ser o único alimento na lista de gêneros básicos do regulamento designado como “essencial e imprescindível”, o que, segundo o nutricionista e membro da comissão do regulamento Alexandre Moscoso, citado por Brinkmann, deveria enfatizar “sua inestimável valia”.

No entanto, era evidente que, para alcançar as recomendadas cotas de consumo, faltava a necessária oferta de leite bom e barato não só para o Rio de Janeiro, mas em praticamente todas as cidades do país. Visando à solução para o “problema do leite” na capital brasileira, o governo federal decidiu então modernizar o conjunto do sistema de abastecimento. Em julho de 1940, pouco antes da criação do Saps, Vargas assinou decreto estabelecendo a Comissão Executiva do Leite (CEL). O novo órgão, constituído por um representante do Ministério da Agricultura e três delegados dos governos do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Distrito Federal, tinha tarefa dupla. Por um lado, cabia à Comissão reorganizar tecnicamente o sistema de abastecimento para melhorar assim a qualidade higiênica e o sabor do produto; por outro, estimular a produção de leite nas zonas de abastecimento para satisfazer a crescente demanda e garantir preços acessíveis.

Brinkmann relata que a Comissão esbarrou em problemas sérios, como a baixa produtividade na maioria das fazendas leiteiras do interior. O leite que vinha de fora não era o produto de fazendas especializadas com rebanho de vacas leiteiras de alto rendimento, mas, em sua quase totalidade, de agricultores de subsistência com vacas de pouca produção, para os quais a venda de leite constituía negócio secundário. Para o consumidor urbano, o mais importante, além do preço do produto, era a sua melhoria, o que a Comissão do Leite pretendia alcançar com a construção de um novo entreposto central, no bairro de Triagem, na Zona Norte da cidade. Seria uma colossal e moderna usina de pasteurização e engarrafamento, com capacidade diária de até 500 mil litros, que deveria substituir não só os entrepostos de leite na cidade, mas também as velhas usinas de pasteurização nas zonas leiteiras do interior.

A Comissão também foi responsável pela abertura de lojas com a marca CEL, diretamente administradas e cujos desenho moderno e aura de limpeza e higiene estabeleceram também novo critério para a comercialização de leite em geral. As antigas leiterias da cidade funcionavam em lojas mal cuidadas em que se vendia todo tipo de alimentos e que, com frequência, nem mesmo dispunham de um simples refrigerador com gelo. As leiterias CEL eram lojas novas, com pisos e paredes azulejadas, dotadas de geladeiras elétricas, balcões refrigerados e envidraçados, que tinham em oferta não só leite fresco, como também creme de leite, manteiga, queijos, assim como ovos e mel a preços supostamente “acessíveis”. Os balconistas vestiam-se de branco, o que também se inspirava na estética de laboratório, mais do que na do empório habitual. O único defeito resultou do fato de que, no início, só existiam nove lojas CEL, a maioria no Centro e nos bairros abastados – Catete, Botafogo, Copacabana, Ipanema –, enquanto os bairros operários dos subúrbios praticamente não eram atendidos.

Quando teve início a construção de um grande entreposto de comercialização de leite em Triagem, na Zona Norte do Rio, o projeto da CEL já tinha começado a entrar em decadência devido a dificuldades financeiras. De acordo com Brinkmann, a culpa se devia ao aumento de preços de maquinaria e material de construção, decorrentes da Segunda Guerra Mundial, que tinha elevado drasticamente os custos da obra, invalidando, assim, o planejamento original. No final de 1945, a Comissão do Leite havia acumulado enormes dívidas – razão pela qual os trabalhos nos diferentes projetos de construção foram suspensos. Os produtores também não haviam se beneficiado da nova política do leite, pois apesar de o preço para o produto cru ter sido duplicado, a receita para a maioria dos fazendeiros só melhorou temporariamente – situação que também foi atribuída ao encarecimento provocado pela guerra, que aumentara os custos de produção.

Para a Comissão, foi um retumbante fracasso o fato de que, em vez de crescer, desde o início de 1943 a produção de leite começou a diminuir. Ainda em 1942 o consumo na capital aumentara 4% em relação ao ano anterior. Na virada de 1942 para 1943 – ou seja, em meio à época das chuvas, quando a oferta do leite cru normalmente alcançava o apogeu – o abastecimento de leite sofreria drástica queda, levando a média anual à redução de 5,5% em relação ao ano anterior. Porém, para Brinkmann, a medida mais polêmica foi o sucessivo aumento do preço do leite ordenado pela CEL, o que evidentemente batia de frente com as promessas originais de abastecer a cidade com leite bom e barato. Embora esse passo tivesse sido praticamente inevitável, devido ao drástico aumento dos custos de produção, serviu de “lenha na fogueira” para os críticos da política do leite do Estado Novo.

Logo depois da deposição do presidente Vargas, em outubro de 1945, a CEL foi dissolvida e todas as lojas, junto com o esqueleto do futuro entreposto central, em Triagem, passaram para a Cooperativa Central. Apesar disso, a conclusão e inauguração do projetado entreposto foram adiadas até o final dos anos 1950. O terreno, onde por anos funcionou a Cooperativa Central dos Produtores de Leite (CCPL), hoje abriga um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal.

Ilustração 1: Campanha do leite promovida pelo governo Getúlio Vargas. Anúncio publicado em “O Paiz” em março de 1938.
 
Ilustração 2: Loja da Comissão Executiva do Leite (CEL).

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