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21/08/2008

Artigo investiga a atuação feminina na formação da atividade científica no Brasil

Renata Moehlecke


No início dos anos 40 observou-se, no Brasil, uma crescente escolarização em nível superior, em muito proporcionada por políticas educacionais implantadas a partir de 1930, que encaminharam contingentes expressivos de mulheres às instituições científicas. A conquista feminina na época acarretou a inserção profissional de diversas mulheres no mundo acadêmico e científico, e a análise desse processo pode fornecer uma nova perspectiva sobre a institucionalização e profissionalização da atividade científica no Brasil.


 Para os autores do artigo, a historiografia tem dificuldades para traçar um quadro em que, a partir da década de 40, as mulheres entraram contínua e decisivamente nos laboratórios de pesquisa

Para os autores do artigo, a historiografia tem dificuldades para traçar um quadro em que, a partir da década de 40, as mulheres entraram contínua e decisivamente nos laboratórios de pesquisa


É exatamente isso que pesquisadores do Instituto de Filosofia de Ciências Humanas da Universidade de Campinas e da Casa Oswaldo Cruz  da Fiocruz demonstraram em artigo publicado no último volume da revista História, Ciências e Saúde – Manguinhos. O estudo teve como base o exame de quatro revistas científicas publicadas no período entre 1939 e 1969, nas quais se detecta uma significativa presença de artigos femininos, bem como diferenças entre o padrão de publicação entre homens e mulheres: a Anais da Academia Brasileira de Ciência, a Revista Brasileira de Biologia, a Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e a Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais.


“A escassez de estudos históricos com tal preocupação contribui para a percepção social de que as mulheres estão ausentes das ciências, ou que, quando ali identificadas, representam a exceção”, comentam os pesquisadores. “Essa invisibilidade constitui mais um problema da historiografia do que da história, representando um obstáculo no avanço de uma perspectiva historiográfica inovadora, capaz de traçar um quadro no qual figurem não apenas um punhado de mulheres notáveis, mas também incontáveis anônimas que, no Brasil, a partir da década de 40, adentraram contínua e decisivamente os laboratórios de pesquisa”.


Segundo os estudiosos, no início da década de 30, diversas políticas públicas tornaram possíveis fatores como a expansão da rede pública e privada de ensino secundário e a proliferação pelo país de faculdades de filosofia, ciências e letras – inspiradas nos modelos estabelecidos pela Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e pela Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935, que visavam à formação de cientistas ou de educadores profissionais, assim como a produção de conhecimento desinteressado. Esse processo ajudou a aumentar bastante a presença feminina nas universidades, já que os homens, diferentemente, buscavam faculdades voltadas à formação profissional e ao conhecimento aplicado, ou seja, diplomas que lhes garantissem sustentação econômica e prestígio social.    


Assim, o crescimento do número de mulheres teve notadamente relação com o que diz respeito ao mercado de trabalho que estava despontando. “Na ausência de um sistema de ensino secundário institucionalizado, os portadores de diploma emitido pela escola normal, freqüentada na maioria por mulheres, constituíam o único contingente populacional capacitado para atender a demanda de quadros exigidos pelo crescimento do aparelho estatal e da economia urbana”, afirmam os estudiosos. “A ‘versatilidade ocupacional e intelectual’ do normalista habilitou um expressivo número de professoras, que já haviam adquirido o nível de escolaridade e o treinamento profissional necessários, a compor não somente as turmas dos cursos de ciências e humanidades oferecidas nas faculdades de filosofia, mas também os cursos de enfermagem, educação sanitária e serviço social, que se institucionalizaram na mesma época”.


No entanto, os pesquisadores destacam que a carreira acadêmica para as mulheres era um dos destinos profissionais possíveis, mas não necessariamente o mais interessante e desejado: os magistérios e as outras ocupações pedagógicas eram mais atraentes e promissores, devido ao baixo grau de profissionalização da atividade científica e por serem profissões plenamente institucionalizadas, com acesso amplo e carreira estabelecida. “A superioridade numérica das mulheres na faculdade de filosofia não alterou imediata e automaticamente a composição predominantemente masculina do mundo das ciências”, explicam os estudiosos. “A maioria das que ali se formaram optou pelo magistério e aquelas que se direcionaram para a pesquisa científica tenderam a combiná-la com a atividade de ensino secundário e superior, traço comum em suas trajetórias profissionais”.  


Em relação à análise das revistas, foram verificados 5.051 artigos sendo 84% de autoria exclusivamente masculina e 16% com alguma autoria feminina. Além disso, os pesquisadores observaram que os artigos com alguma autoria feminina não alcançaram a metade da produção masculina na maior parte das três décadas examinadas. Mas também ficou claro na análise que as mulheres tendiam a ser segundas autoras.


“A natureza da produção científica nessas revistas permite afirmar que a presença feminina constitui um fator de mudança: reflete o processo de reorganização da prática científica e, simultaneamente, atua em sua transformação”, destacam os pesquisadores. “Embora não tenha sido possível identificar a natureza da co-autoria feminina – ela pode ter envolvido maridos, orientadores e colegas de trabalho –, percebe-se que a colaboração constituiu um traço marcante do padrão de publicação das mulheres naquele período, sugerindo um grau de inclusão efetivo às instituições científicas brasileiras”.


Publicado em 19/08/08.

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