18/03/2010
Renata Moehlecke
Provavelmente os adolescentes não se dão conta, mas as agressões entre casais não se limitam a adultos casados: elas podem ocorrer também entre jovens namorados. Foi o que revelou um trabalho realizado por pesquisadores do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Para investigar a prevalência e as formas de violência entre jovens no Brasil, os pesquisadores consultaram 3.205 estudantes de 15 a 19 anos de 104 escolas públicas e privadas.
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Para exercer domínio sobre o parceiro, o adolescente busca controlar o comportamento do outro, as roupas que ele usa, os nomes na agenda do celular, os acessos a redes virtuais de relacionamento, as pessoas com quem conversa e as formas de expressar afeto pelos amigos (Arte: Rodrigo Carvalho) |
“Praticamente nove em cada dez jovens que namoram praticam ou sofrem variadas formas de violência”, afirma uma das coordenadoras do estudo, Kathie Njaine. A violência verbal é a mais frequente: dos adolescentes que mantinham relacionamentos afetivos, 85% admitiram já ter dito aos parceiros coisas ruins em tom hostil, depreciações e xingamentos, e igual proporção relatou já ter sido vítima desse tipo de agressão.
“Demérito à aparência física do parceiro foi outra forma de violência verbal identificada na pesquisa”, comenta Kathie. “Os meninos disseram que humilham as garotas chamando-as de gordas e feias, e as meninas contaram que alguns parceiros praticam uma espécie de sabotagem para que elas fiquem menos atraentes aos olhos de outros rapazes”.
A coleta de dados para a pesquisa foi realizada de agosto de 2007 a agosto de 2009 em dez capitais brasileiras, duas de cada região do país: Manaus, Porto Velho, Teresina, Recife, Cuiabá, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Florianópolis e Porto Alegre. O estudo, que contou com a parceria de pesquisadores de universidades federais em todas as cidades, não encontrou diferenças significativas entre os jovens das diferentes localidades. Também não foram verificadas diferenças substanciais entre os adolescentes das escolas públicas e os das particulares.
Para exercer domínio sobre o parceiro, o adolescente busca controlar o comportamento do outro, as roupas que ele usa, os nomes na agenda do celular, os acessos a redes virtuais de relacionamento, as pessoas com quem conversa e as formas de expressar afeto pelos amigos. “A ameaça de difamação do outro por meio da divulgação de fotos íntimas pelo celular ou via internet foi uma das estratégias citadas pelos adolescentes para tentar evitar o término do namoro”, destaca a pesquisadora. Os rapazes são os principais autores dessas chantagens. Foram descritas situações em que as garotas se deixam fotografar ou filmar em ocasiões íntimas com os parceiros, nuas ou seminuas, e também casos em que o rapaz filma uma relação sexual sem que ela saiba.
A ameaça de término do relacionamento foi pretexto para vários tipos de chantagem. “A pressão dos meninos para fazer sexo com as meninas, com a desculpa de ser uma prova de amor, é uma forma de violência emocional, que provoca sofrimento, sobretudo quando a moça acaba cedendo sem estar com vontade, arrependendo-se depois”, exemplifica Kathie. A pesquisadora acrescenta, ainda, que a ameaça de suicídio, caso o parceiro termine o namoro, foi uma das maneiras de amedrontar o outro. “Em situações como essa, alguns adolescentes relataram receio de que a ameaça se concretizasse, porque se lembravam de episódios conhecidos em que namorados se mataram devido ao fim de uma relação”, elucida Kathie.
A violência sexual também foi detectada, sob duas formas mais comuns: forçar a beijar e tocar o outro sexualmente. As meninas foram as maiores vítimas desse tipo de agressão. Já em relação à violência física, como dar um tapa, puxar o cabelo, empurrar, sacudir, bater ou jogar algo em cima da outra pessoa, os garotos foram os mais agredidos. “Em um relacionamento violento, as agressões praticadas pelas moças, geralmente, resultam de autodefesa”, explica a pesquisadora. “Quando a mulher é a vítima, ela tem três vezes mais chances de ser ferida”, acrescenta.
O estudo indicou, ainda, que a violência no namoro estava associada à violência familiar. “Observamos que o jovem que é vítima da violência verbal do parceiro tem 2,6 vezes mais chances de ter sofrido esse tipo de agressão por parte dos pais, quando comparado com quem não sofreu nenhuma forma de violência”, alerta Kathie. “Além disso, jovens que praticam violência sexual e ameaças foram os que mais sofreram violência física de seus pais e mais testemunharam agressões entre eles e entre os irmãos”.
‘Ficar’ com alguém pode causar confusões
Segundo dados obtidos no estudo, o ‘ficar’ é uma prática instituída e conhecida por todos os adolescentes e costuma ocorrer com mais frequência em festas. A forma mais comum é beijar pessoas sem compromisso. No entanto, alguns jovens apontam seu caráter de superficialidade e banalidade afetiva e indicam que a prática pode causar confusões. A fase ‘rolo’, situada entre o ‘ficar’ e o namoro, é ainda mais complicada, pois pode gerar ciúmes e conflitos.
“Eles não sabem dizer ao certo quando e se ocorre traição no ‘rolo’, já que trair é frequentemente associado às relações de namoro, nas quais há um vínculo mais sólido entre o casal”, esclarece a pesquisadora Fernanda Mendes, que também participou do estudo. “As brigas decorrentes de ciúmes, principal fator que dispara as discussões entre os casais, se mostraram associadas ao desencadeamento de todas as formas de violência”, destaca.
Para os jovens, o ciúme é um sentimento natural entre pessoas que se amam e só é qualificado como violência quando seus efeitos são percebidos como excessivos. “Nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes, junto à banalização de certos atos, há episódios que nem sequer são percebidos como violentos”, comenta Fernanda. A pesquisadora lembra que, no ato de ‘ficar’, essa dinâmica da banalização pode tomar proporções mais sérias. “As meninas contaram que, muitas vezes, em festas, os rapazes as puxaram pelos cabelos ou as humilharam verbalmente caso elas tivessem se negado a ficar com eles, e as garotas não perceberam esses tipos de atitude como formas efetivas de violência”, exemplifica.
Família: principal fonte de apoio
Independentemente do sexo e do estrato social, os adolescentes elegeram a família, representada, sobretudo, pela figura dos pais, como a principal referência para questões afetivo-sexuais. Na pesquisa, 53% dos jovens relataram conversar livremente com os pais sobre sexo, 76,7% sobre drogas e 86,8% sobre amizades. No que diz respeito a diálogos sobre namoro, as meninas recorriam mais à família do que os meninos. A escola e a mídia também foram consideradas pelos adolescentes espaços importantes para a abordagem dessas temáticas.
“Mesmo tendo um canal de confiança com a família, os jovens podem ter medo ou vergonha de estabelecer contato com os pais, pois esses assuntos perpassam o tabu da sexualidade e, muitas vezes, exigem a quebra de preconceitos”, explica a pesquisadora Kathie Njaine. “Os dados quantitativos da pesquisa revelaram que raramente os adolescentes procuram ajuda em situações de violência no relacionamento afetivo-sexual e apenas 3,5% dos jovens entrevistados afirmaram já ter solicitado apoio profissional devido a algum tipo de agressão causada pelo parceiro”.
Apesar da importância da família e dos profissionais de saúde, Kathie acredita que os profissionais nas escolas e os amigos podem, igualmente, ajudar no processo. “A escola foi escolhida como local ideal para ações de prevenção da violência, envolvendo, inclusive, os pais”, afirma a pesquisadora. “O problema da violência ainda é tratado de forma velada nas escolas, mas o tema precisa ser abordado no espaço escolar, com todo o cuidado para não espantar os adolescentes”.
Quanto aos amigos, os adolescentes os definem como pessoas com quem contar para desabafos e troca de informações. No entanto, em função da pouca maturidade, esses amigos não conseguem orientar e aconselhar nos casos de violência no namoro. Já a mídia foi avaliada pelos adolescentes como um meio importante para a veiculação de mensagens dirigidas aos jovens, embora estes tenham feito críticas aos conteúdos transmitidos. Os serviços de saúde e outros espaços semelhantes foram pouco citados nas falas dos adolescentes.
Vinte anos de estudos sobre violência e saúde
Criado em 1989 na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), o Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves) tem como principal objetivo investigar o impacto da violência sobre a saúde da população brasileira e latino-americana. Com atividades voltadas para pesquisa e ensino, o Centro tem participação ativa na formulação de políticas públicas e na construção de planos de ação. Ele presta assessorias e consultorias aos Ministérios da Saúde e da Justiça, à Secretaria Especial de Direitos Humanos e a instâncias estaduais e locais, além de colaborar com órgãos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), e sociedades científicas, sempre visando a prevenção da violência e a promoção da qualidade de vida e da cidadania. O Claves coordena a Biblioteca Virtual em Saúde sobre o tema violência e saúde. Seu acervo contém aproximadamente 4 mil documentos, incluindo literatura científica, literatura instrucional, como leis e normas, e dissertações e teses sobre violência e saúde defendidas em todo país. Os pesquisadores do Claves oferecem, ainda, no âmbito dos cursos de pós-graduação e especialização da Fiocruz, disciplinas sobre a epidemiologia e a sociologia da violência, com ênfase em seu impacto sobre a saúde.
Violência contra idosos, portadores de deficiência, crianças e adolescentes; segurança pública; filosofia e antropologia sobre violência e saúde; e metodologias de avaliação de programas e serviços: estes são alguns exemplos de linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Claves. Recentemente, o Centro concluiu um estudo que descrevia e analisava as precárias condições de saúde, trabalho e qualidade de vida de policiais civis e militares do Rio de Janeiro. Outra pesquisa de destaque investigou o caso de jovens que abandonaram o tráfico pela família e por medo de morrer. Atualmente, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Claves promove um levantamento nacional de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento. O objetivo é identificar e caracterizar essa rede de abrigos e programas de família existentes no país, bem como traçar o perfil do público atendido.
Publicado em 16/3/2010.