08/11/2010
Cristiane d Avila
Promover a reflexão sobre as políticas nacionais de comunicação e a troca de experiências, a fim de subsidiar a formulação de ações neste campo, foram os pontos focais do debate Políticas de comunicação, democracia e cidadania. Realizado na manhã de quarta-feira (3/11), no auditório da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o evento contou com a presença de especialistas que publicaram artigos na recente edição da Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde (Reciis), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).
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Alvaro Nascimento, Guillermo Mastrini , Marcos Dantas e Bia Barbosa no debate promovido pela Reciis |
Organizado pelo pesquisador Rodrigo Murtinho, do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces/Icict/Fiocruz), o debate reuniu Guillermo Mastrini, professor da Universidade de Quilmes, Argentina; Marcos Dantas, pesquisador do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Bia Barbosa, representante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social e o pesquisador e jornalista Álvaro Nascimento, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).
Na opinião de Murtinho, especialista em pesquisas sobre políticas públicas de comunicação no Brasil e suas interações com a saúde, a oportunidade de reunir artigos em uma edição especial da Reciis denota a valorização do tema no país. Ideia surgida durante o processo preparatório da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada no final de 2009 - que incluiu a realização de um seminário na Fiocruz e de um fórum no 9º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, também no ano passado - a edição do suplemento traz para a agenda pública uma discussão relevante: as políticas nacionais de comunicação são um entrave ao avanço da democracia e ao exercício pleno da cidadania.
O exemplo argentino
O professor da Universidade de Quilmes Guillermo Mastrini elogiou a iniciativa do Icict, que por intermédio da veiculação de um periódico eletrônico de acesso livre traz, para a agenda de uma instituição de saúde, o tema da regulação dos meios de comunicação, pauta debatida atualmente de forma pioneira por diversos países latinoamericanos. De acordo com o especialista argentino, não é possível haver democratização da comunicação se não há regulação democrática da comunicação, uma vez que os interesses das corporações dos meios de comunicação não coincidem totalmente com os interesses da sociedade.
Para Mastrini, a aprovação na Argentina, a partir de ampla mobilização social, da nova Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual (Lei dos Meios), cuja lógica modifica os critérios de distribuição das concessões de rádio e televisão, dará acesso paritário ao espectro para canais púbico/estatais, comerciais e de instituições sem fins-lucrativos. A lei, segundo ele, altera profundamente a estrutura do setor naquele país, tornando o Estado responsável pela garantia do direito social à comunicação.
"Para que haja de fato mudanças no modelo de comunicação, é essencial que dois atores atuem em consônância: o Executivo e a sociedade civil. Somente estes dois atores podem fazer com que a lei, quando criada, seja um ponto de partida para a implementação de uma política de comunicação democrática", pondera Maestrini.
Na acepção do pesquisador da UFRJ Marcos Dantas, no Brasil dificilmente o próximo governo escapará da tarefa de conduzir e concluir um amplo debate sobre a reorganização legal do conjunto das comunicações brasileiras. "Há uma percepção generalizada, tanto nos movimentos populares organizados quanto nos empresariais, inclusive em segmentos do próprio aparelho estatal, de estarmos vivendo sob total caos normativo nessa área de políticas de comunicação", avalia.
Segundo ele, o modelo neoliberal, que coloca o consumidor acima do cidadão, com base em uma suposta "liberdade" de escolha, atende de fato ao capital, ao mercado, que sobrepõe o individual ao coletivo. Consequentemente, se anula o poder de controle dos meios de comunicação pela sociedade e, a partir daí, a própria democracia. Dantas completa: "hoje existe um pequeno grupo de produtores de conteúdo que decide como esse conteúdo (veiculado nos meios de comunicação) atingirá o público, por meio da convergência de várias mídias, sem qualquer elemento regulatório. Por isso é importante a transformação das propostas aprovadas na Confecom em leis".
Déficit democrático em comunicação
"Quem observa de perto o desenvolvimento das políticas de comunicação no Brasil, desde o início da década de 1980, vê políticas públicas e processos de regulamentação que, na maioria dos casos, favorecem grandes atores empresariais e são usados para a manutenção de uma situação que não se transformou significativamente, a despeito das evidentes mudanças tecnológicas", argumenta Bia Barbosa, jornalista e especialista em direitos humanos do Intervozes.
De acordo com Bia, embora o Brasil assista, há décadas, a um crônico déficit democrático em seu setor de comunicação, as políticas do país para essa área seguem sem apontar para a transformação desse panorama. Diante dessa realidade, a sociedade civil tem se movimentado para dar corpo a iniciativas que não sejam simples campanhas pontuais, mas que proporcionem espaço para passos mais largos rumo a referentes democráticos. Entre elas, destacam-se a Conferência Nacional de Comunicação e as propostas de indicadores do desenvolvimento da mídia e do direito à comunicação, com base em uma experiência da Unesco.
"A pertinência de buscar indicadores para o direito à comunicação fica evidente ao se observar o quadro atual das comunicações no Brasil. Apenas seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados controlam 667 veículos de comunicação. Seu vasto campo de influência se estende por 294 emissoras de televisão VHF, que abrangem mais de 90% das emissoras nacionais. Somam-se a elas mais 15 emissoras UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 emissoras FM e 50 jornais diários", alerta a jornalista do Intervozes.
O caso da propaganda de medicamentos: a omissão da Anvisa
A incapacidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de incorporar proposições de órgãos de consumidores, entidades científicas, profissionais de saúde e especialistas em uso correto de medicamentos, obedecendo a uma lógica em que atuam os interesses das empresas privadas do setor, patrocinadoras de campanhas políticas, foi o mote da apresentação de Álvaro Nascimento, pesquisador da Ensp. Para Nascimento, que pesquisou no mestrado e no doutorado exemplos de uso abusivo e irregular da publicidade para a venda de remédios, a omissão da agência reguladora expõe a sociedade a sérios riscos.
"Ao rejeitar, no âmbito da Consulta Pública 84/2005, instaurada para elaborar uma nova Resolução, 19 proposições encaminhadas por órgãos de consumidores, entidades científicas, profissionais de saúde e especialistas em uso correto do medicamento, dentre eles o próprio ministro Temporão, a Anvisa manteve todas as principais fragilidades do modelo regulador anterior, deixando de equiparar o modelo brasileiro aos mais avançados no mundo", lamenta Nascimento.
De acordo com o pesquisador, na ocasião da Consulta Pública, a Anvisa sequer considerou a possibilidade de criação de dispositivos legais que assegurassem a proibição da propaganda de medicamentos para grande público (mantendo-a para prescritores), mesmo que essa sugestão tenha sido subscrita por 133 especialistas no uso correto do medicamento. Juntos, esses setores representavam nada menos que 59,6% do total de contribuintes à Consulta Pública. A proposta fora aprovada, inclusive, na 1ª Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, organizada em 2001 pela própria Agência.
"Faz-se necessária a ampliação do debate sobre essa ferramenta como instrumento efetivo de participação e controle social, com vistas à criação de novos procedimentos e políticas que a tornem uma real instância de ausculta e incorporação de propostas de interesse da sociedade. É preciso impedir que esses processos não sofram interferência dos setores regulados e tragam prejuízo aos reais interesses da saúde pública", defende Nascimento.
Leia mais na edição especial da Reciis.
Publicado em 5/11/2010.