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22/12/2014

Epidemia de ebola: direitos ameaçados?

Sergio Rego*


A recente epidemia da doença causada pelo vírus ebola na África e a possibilidade de que casos sejam registrados fora do continente africano provocam uma preocupação crescente em governos e autoridades de saúde no estabelecimento de estratégias de contenção e controle da disseminação da enfermidade. Esta é uma doença grave, com letalidade elevada, e isso gera medo nas pessoas. É um medo compreensível e que deve ser enfrentado com informação e transparência. Entretanto, o medo tem levado muitas pessoas a defenderem propostas que vão contra direitos básicos de indivíduos e populações. As decisões tomadas por governos e autoridades da saúde não podem ser fundamentadas por esse sentimento, por mais compreensível  que  seja.

Vejamos, como exemplo, a questão da identificação pública, por nome e foto, dos que estejam sob suspeita de terem sido contaminados pelo ebola. A curiosidade pela identificação desses indivíduos é compreensível, afinal, a sociedade quer saber se está sob risco, se conhece a pessoa enferma, se é possível ter tido contato com ela. Embora seja possível compreendermos esse desejo e sua tradução no esforço dos órgãos da imprensa para identificar o indivíduo, este é um procedimento que não se justifica. Todo indivíduo tem direito de ter sua identidade e privacidade respeitadas e o fato de estar sendo investigado sobre uma eventual condição de doença não faz com que ele perca esses direitos. Inclusive porque é possível que se rotule uma pessoa como uma ameaça para uma comunidade quando na realidade não é, até porque não se “pega” a doença do ebola tão fácil. Ser identificado publicamente sem nem estar com a doença é expor a pessoa ao risco de ser discriminado e alvo de diferentes tipos de violência social.

Mas, alguém pode perguntar, “e se já houver o diagnóstico feito? Não temos o direito de saber quem é a pessoa?” Mais uma vez eu digo que não necessariamente. Mais do que expor essa pessoa nós precisamos é que ela coopere com as autoridades sanitárias no sentido de informar de forma apropriada onde esteve nos últimos dias (após o início dos sintomas). Isso é importante para que sejam identificadas e monitoradas outras pessoas que podem, eventualmente, terem se contaminado. Havendo a cooperação do enfermo (o que não seria possível se ele estivesse, por exemplo, inconsciente) não vejo razão suficiente para divulgar seu nome e imagem, posto que não haveria benefício para nenhum dos efetivamente envolvidos e nem para a estratégia de proteção às populações. Penso que se não for possível contar com a ajuda do paciente para refazer seus trajetos e contatos, pode ser considerada a possibilidade de se divulgar o seu nome.

Também motivados pelo medo e não pela racionalidade científica sabe-se que mesmo países, como a Austrália, estão restringindo a concessão de vistos para indivíduos oriundos dos países com epidemia reconhecida ou, como alguns estados americanos, estabelecendo quarentena para os que cheguem desses países. Aliás, temos visto já algumas pessoas aqui mesmo no Brasil defendendo ideias semelhantes, o que é uma pena. Estes procedimentos não devem ser rotineiros nem para aqueles que chegarem dos países africanos em questão ou mesmo para países do continente americano e que recebam imigrantes africanos ou apenas negros, porque não se justificam cientificamente e nem são uma política aceitável do ponto de vista sanitário, mas apenas discriminatórias.

Fechar os caminhos de entrada regular não impedirá a imigração clandestina, mas os esconderá ainda mais, quando o que precisamos é tornar a procura por serviços de saúde como a ação mais esperada e desejada. Precisamos que os imigrantes confiem em nossa rede de assistência e não se escondam, para que possamos identificar o mais precoce possível os casos suspeitos e buscar sua confirmação ou não. A quarentena, quando necessária, deve ser voluntária e com o apoio governamental para fornecimento de recursos necessários para alimentação e outras atividades de vida diária, já que para manter quem quer que seja por até 21 dias em isolamento é imprescindível que sejam fornecidos os meios necessários.

Outro direito que precisa ser garantido a todo custo é o direito a verdade, tanto para pacientes como para a sociedade em geral. Epidemias precisam ser combatidas com a cooperação da sociedade, ou o risco de fracasso ficará muito grande. Essa lição o governo brasileiro tem mostrado que aprendeu e tem demonstrado grande preocupação em respeitar os direitos individuais e coletivos da população brasileira.

*Sergio Rego é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz)

Na AFN

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