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12/06/2009

Estudo analisa a produção de sintomas como forma de silenciamento da violência

Informe Ensp


A violência que cala, que não expõe suas causas, mas as interioriza, provocando transtornos nas vidas das pessoas e produzindo sintomas físicos ou psíquicos como depressão, tremores, falta de ar, são temas da pesquisa do psiquiatra Marco Aurélio Soares Jorge, em sua tese de doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), intitulada A produção de sintomas como silenciamento da violência. Ele trabalhou com um grupo usuários do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria da Ensp que manifestava esse sofrimento silencioso, evidenciado a partir das suas queixas. Em entrevista ao Informe Ensp, o médico revela como a violência cala e se interioriza nas pessoas.


 Marco Aurélio Soares Jorge: há um silenciamento da violência. Quando a pessoa produz sintomas como a angústia, a insegurança, o medo, eles se expressam no corpo. Quando isso acontece, provoca um silenciamento (Foto: Virginia Damas/Ensp)

Marco Aurélio Soares Jorge: há um silenciamento da violência. Quando a pessoa produz sintomas como a angústia, a insegurança, o medo, eles se expressam no corpo. Quando isso acontece, provoca um silenciamento (Foto: Virginia Damas/Ensp)


Segundo Jorge, o objeto desta tese é "o estudo das relações existentes entre o processo de produção de sintomas e adoecimento e as condições de violência que afetam pacientes atendidos em um serviço público de saúde. Articulando os campos do psicológico e biológico com os campos do social ou das relações intersubjetivas, busquei compreender como as situações vivenciadas nas esferas sociais ou intersubjetivas se apresentam inscritas no corpo por intermédio de sintomas físicos ou psíquicos".


O senhor é um médico psiquiatra e sua tese aborda a questão da violência. Como iniciou esse trabalho?


Marco Aurélio Soares Jorge: Fiz o mestrado na Ensp e o tema da minha dissertação era saúde mental. Trabalhei no contexto da reforma psiquiátrica e a construção de novos serviços. Aí já havia a questão da violência, mas se tratava de uma violência institucional, e a proposta era de criar um serviço mais humanizado para os pacientes mentais. Quando pensei em ingressar no doutorado, tinha vontade de dar continuidade a isso, mas tinha algumas dúvidas e questionamentos.


Em 1999, fui convidado para trabalhar com o grupo Tortura Nunca Mais, um trabalho de atendimento às pessoas vítimas da tortura, na grande maioria ex-militantes políticos que foram exilados e passaram por algum tipo de violência e torturas. O fato de começar a fazer esse trabalho me levou a ter interesse pelo estudo da violência, mas se tratava de uma violência de Estado, relacionada ao período da ditadura militar. No entanto, nas nossas discussões, sempre havia o incômodo de como atuar no enfrentamento da violência atual. A gente percebeu que havia uma continuidade da violência do período da ditadura com a violência contemporânea, mas apenas a mudança de objeto, ou seja,antes, a classe perigosa e consequentemente os violentados eram os chamados de subversivos e a agora são os pobres, a população de periferia dos grandes centros urbanos. Isso me fez pensar em um trabalho sobre violência contemporânea.


Já no Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria da Ensp fiz contato com Nair Teles, que coordenava o Núcleo de Estudos Sobre Direitos Humanos, e elaboramos um Programa de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência. Tínhamos o apoio do Marcos Besserman e a ideia era montar um grupo de pacientes. Porém, esse grupo não se constituía. Eu pensava que era por questões organizativas, burocráticas, pessoais, mas o fato era que o grupo não se formava, apesar da grande demanda do Centro de Saúde.


E como ficou o projeto?


Jorge: Resolvi acabar com o projeto das pessoas afetadas pela fiolência e veio o propósito de montar um grupo de pessoas poliqueixosas, com queixas difusas, que não possuem um diagnóstico claro e frequentam os centros de saúde em busca de atendimento. Conseguimos formar o grupo, composto de mulheres, e meu trabalho no doutorado foi em cima disso. Não era um grupo sobre violência, especificamente, mas de pacientes com diagnóstico pouco claro, com casos de depressão, queixas somáticas, dores abdominais, palpitação, problemas de pele, e que nunca melhoravam. Na realidade, percebemos que esses sintomas estavam associados as situações de vida dessas mulheres.


Como foi lidar com os relatos dessas pacientes?


Jorge: Elas moram em comunidades ao redor do campus da Fiocruz e estão inseridas em uma situação de violência de vida. Meu trabalho se baseou na análise dos discursos das pacientes, em que surgiam duas categorias nos seus relatos: medo e insegurança. Com os depoimentos, verifiquei que a violência era o principal fator que desencadeava essa situação e ela se dividia em três tipos: a intrafamiliar, principalmente a conjugal, a do narcotráfico e a policial. A violência conjugal estava mais presente, pois afetava diretamente suas vidas, enquanto as outras estavam mais ligadas as condições de moradia, como os tiroteios. Imagine o que essa situação desencadeia em uma pessoa.


De uma forma geral, as situações de medo e insegurança são comuns nas comunidades e, obviamente, as pessoas falarão disso. Como fez a correlação com os sintomas?


Jorge: Havia um nexo causal dos sintomas. Era como se as mulheres viessem aqui no Centro de Saúde buscar ajuda pela situação de insegurança e desamparo. O Centro representa a figura do Estado para essas pessoas, e as situações de angústia acabam produzindo sintomas físicos. A mulher que vive a situação do tiroteio fica angustiada, passa mal e os vizinhos a levam a um serviço médico. Lá os médicos verificam que sua pressão está alta, a medicam apenas para a hipertensão. Toda as condições desencadeantes da hipertensão não são abordadas, em geral, nos serviços médicos no Brasil. Assim, uma questão de insegurança e medo virou um caso médico.


Por isso há um silenciamento da violência. Quando a pessoa produz sintoma como a angústia, a insegurança, o medo, eles se expressam no corpo do indivíduo. Quando isso acontece, provoca um silenciamento. Há um duplo slilenciamento na verdade. O primeiro com a produção dos sintomas e outro do modelo de atenção à saúde que não percebe e não tem na sua agenda as questões sociais incorporadas.


Como o serviço deve agir nesses casos?


Jorge: Ao atender o paciente, o médico vai procurar as disfunções no seu organismo. A pessoa está angustiada, ansiosa, nervosa e o médico dá o remédio. Apesar de o SUS falar do conceito ampliado de saúde, contemplando as questões da habitação e as questões sociais, na prática ainda predomina o modelo biomédico. Proponho que a gente pense em uma clínica ampliada ou política, política no sentido de "polis".


Está claro para o paciente que esses sintomas são resultados das condições de vida?


Jorge: Não. Mas isso fica claro com o trabalho em grupo. As mulheres se veem uma nas outras. Trabalhei em grupo para elas dialogarem entre si, pensarem em conjunto, se verem uma nas outras e coletivizarem o sofrimento. Esse jogar para o corpo é quando há o sofrimento e ele é individualizado. As consequências são os sintomas gastro-intestinais, depressão, angústia, insônia, etc. Eles são interiorizados, silenciados e isso explica o título da tese, A produção de sintomas como silenciamento da violência.


Após a defesa, como ficará o trabalho com o grupo?


Jorge: O grupo continua e pode ser ampliado no Centro de Saúde Escola da Ensp. A ideia é dar continuidade a pesquisa e ter mais material, principalmente, para essa questão da clínica ampliada. Como essa clínica pode ser construída? A ideia é que a pesquisa caminhe nesse sentido. Esse grupo terapêutico é aberto, podem entrar e sair pessoas durante o funcionamento. O limite é de oito pessoas, com encontros semanais, com mais ou menos uma hora de duração. Esse grupo será mantido.


Publicado em 12/6/2009.

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