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21/11/2011

Genoma completo da vacina brasileira contra tuberculose é desvendado

Marcelo Garcia


A variante da vacina BCG utilizada no Brasil para imunização contra tuberculose – a BCG Moreau RDJ – teve o seu código genético integralmente desvendado por especialistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O estudo publicado na edição de outubro do periódico Journal of Bacteriology foi liderado pela pesquisadora Leila Mendonça Lima, do Laboratório de Genômica Funcional e Bioinformática do IOC, e realizou a descrição do DNA completo da cepa vacinal. Esta é a terceira variante da BCG a ter seu genoma completamente sequenciado no mundo. Os dados obtidos são fundamentais para avanços futuros, como o aprimoramento da vacina e o desenvolvimento de novos imunizantes combinados. A sequencia genômica completa com anotação detalhada foi tornada pública no banco de dados EMBL/Genbank.


 Esta é a terceira cepa vacinal de BCG a ter seu genoma totalmente descrito. O estudante de doutorado Leonardo Ferreira Gomes é um dos envolvidos no projeto. Foto: Gutemberg Brito

Esta é a terceira cepa vacinal de BCG a ter seu genoma totalmente descrito. O estudante de doutorado Leonardo Ferreira Gomes é um dos envolvidos no projeto. Foto: Gutemberg Brito


A identificação de todas as sequências de nucleotídeos e genes que formam o DNA da cepa de Mycobacterium bovis atenuada, utilizada na fabricação da vacina brasileira contra a tuberculose, representa um passo fundamental na luta contra a doença no país. “Foram necessários anos de trabalho minucioso e detalhado, quase artesanal, em que foi preciso estudar e descrever cada pequena e complexa região do genoma, além de comparar nossos resultados com a literatura, para predizer com exatidão os genes e as diferenças em relação a genomas de referência”, descreve Leila. “A partir de agora, temos uma grande quantidade de informação sobre a cepa vacinal brasileira, com um alto grau de detalhamento, que poderá ser utilizada para fortalecer e diversificar as linhas de pesquisa desenvolvidas no Brasil e no mundo sobre a doença”, comemora. O projeto, financiado pela Fundação Ataulpho de Paiva e pela Fiocruz, através do programa PDTIS, resultou também em ferramentas para a rastreabilidade da cepa vacinal.


Os resultados obtidos no IOC abrem caminho para o aprimoramento da própria vacina, a sua identificação clínica e microbiológica, e o desenvolvimento de novos imunizantes. “Podemos usar estas informações para estudos que visem melhorar a imunoproteção, reduzir os possíveis efeitos colaterais e melhorar o controle de qualidade da vacina brasileira, por exemplo”, enumera a pesquisadora. “Também será possível pensar em vacinas recombinantes de DNA que imunizem contra tuberculose e outros agentes causadores de doenças, como protozoários, vírus e bactérias, promovendo alterações no DNA da BCG Moreau”, cogita.


BCG Pasteur e M. tuberculosis


Além de descrever o genoma completo da BCG Moreau, o Laboratório também comparou seu código genético com o de outra cepa de BCG, a Pasteur. Esta variante, apesar de pouco utilizada mundialmente na vacinação, é referência para a maioria dos estudos internacionais, tendo sido a primeira cepa de BCG a ter o seu código genético integralmente descrito. “Conhecer a sequência completa do genoma nos permitiu observar onde estão todas as diferenças entre as duas variantes. As maiores deleções [perdas de pedaços da sequência genética] já podiam ser identificadas por outros métodos, mas agora foi possível avaliar até perdas ou trocas de um único nucleotídeo. Ou seja, avaliamos todo o potencial de diferenciação entre o genoma da BCG Moreau e o de outros organismos”, explica Leila. “A partir daí, conhecendo estas diferenciações de forma tão detalhada, poderemos explorar todos os seus impactos nas duas variantes, no que se refere a fisiologia bacteriana e eficiência vacinal.”  


A especialista acredita que a publicação do genoma completo da BCG Moreau poderá estimular avanços nas linhas de pesquisas que estudam diversos aspectos da tuberculose e vai chamar atenção de especialistas de outras partes do mundo para a cepa vacinal brasileira. “Ao ter sua sequência genética inteiramente disponível para a comunidade científica, a BCG Moreau RDJ passa a ser uma cepa referência para novas pesquisas comparativas com variantes da vacina usadas em outros países, o que poderá gerar ainda mais conhecimento sobre nosso próprio imunizante”, afirma. “A descrição também representa um passo importante na geração de conhecimento sobre a tuberculose e sobre o genoma da bactéria causadora da doença, M. tuberculosis, além de tornar possível comparar seu DNA com o de outras micobactérias de importância médica ou ambiental que também tenham seu código genético totalmente descrito, identificando as consequências de cada pequena diferenciação genética na virulência, na resposta imunológica e nas demais características bioquímicas da bactéria. Por outro lado, este conhecimento poderá estimular o aprofundamento de outras áreas de estudos sobre a tuberculose, como a imunologia”, prevê.

 

Sequenciamento completo


Em todo o mundo, somente duas outras cepas vacinais de BCG tiveram seu genoma totalmente descrito: a BCG Pasteur, em 2007, e a BCG Tóquio, em 2009. Outras cepas de BCG já tiveram seu genoma parcialmente analisado, mas apenas pela metodologia shotgun, uma descrição mais simplificada, como uma espécie de rascunho fragmentado do genoma.

“Como a BCG Moreau praticamente só é utilizada no Brasil, é fundamental obtermos a maior quantidade de informação possível sobre ela”, acredita.


O próprio Laboratório de Genômica Funcional e Bioinformática do IOC já havia realizado, em 2006, o sequenciamento do tipo shotgun do DNA da BCG Moreau. “Este tipo de sequenciamento sobrepõe pequenos pedaços do genoma, gerados randomicamente, para montar o genoma. Pode-se dizer que funciona como um rascunho do trabalho que concluímos agora”, analisa Leila. “Depois desta primeira fase, foi necessário aprimorar e detalhar a sequência, direcionando nossa atenção para as regiões mais difíceis de analisar. Depois veio a análise computacional detalhada, a anotação minuciosa e a análise comparativa. Atualmente, alguns projetos do Laboratório são direcionados para uma melhor compreensão do impacto de inserções, deleções e mutações pontuais nos genes e nas sequências regulatórias, realizando estudos de genômica comparativa e funcional.”


A tuberculose e a BCG


Além da BCG Moreau, utilizada para vacinação contra tuberculose no Brasil, diferentes cepas vacinais de BCG são utilizadas em outros países. Existem significativas diferenças genéticas entre elas. “Quando a primeira cepa atenuada de BCG foi obtida, no início do século XX, não havia técnicas de preservação e ela foi repassada para diversos laboratórios do mundo”, relata a pesquisadora. “Até o desenvolvimento de métodos de preservação e produção de lotes-semente, na década de 1960, o mundo atravessou guerras e crises políticas e econômicas, situações que podem, por exemplo, ter dificultado a obtenção de todos os componentes dos meios de cultura. Assim, as cepas acabaram sofrendo modificações, de forma natural, uma das razões pelas quais existe hoje grande variabilidade na resposta imune ao BCG em diferentes populações do mundo.”

 

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, por ano a tuberculose causa cerca de 8,5 milhões de novos casos no mundo, sendo 85 mil deles no Brasil. Mais de dois milhões de pessoas ainda morrem em decorrência da doença no planeta, seis mil delas em terras brasileiras. A vacina contra a tuberculose já faz parte do calendário nacional básico de vacinas, sendo recomendada para crianças até 4 anos. Apesar dos esforços de imunização, o país integra o grupo dos 22 países que concentram 80% dos casos de tuberculose registrados no mundo.



Publicado em 21/11/2011.

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