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08/05/2012

Livro busca as origens da medicalização do não patológico

Fernanda Marques


A subjetividade está ligada à alma, à essência humana? Ou ela pode ser traduzida em termos de complexas relações envolvendo o cérebro, células e moléculas? A problemática pode ainda ser expressa de outra forma: tristeza profunda, estado de angústia, dificuldade de aprendizagem e sentimento de fracasso são percalços que fazem parte da condição humana ou são patologias que necessitam de tratamento médico? Dado o elevado consumo de medicamentos psicoativos observado hoje, no Brasil e no mundo, parece que a visão dominante é a dos múltiplos diagnósticos e síndromes psiquiátricas. Essa visão, porém, pode ter consequências prejudiciais. “Limitar nossos sofrimentos decorrentes de problemas sociais a explicações neurológicas ou hereditárias contribuirá para obscurecer os problemas concretos que, em muitos casos, provocaram os sofrimentos”, destaca a doutora em filosofia Sandra Caponi na apresentação de seu mais novo livro – Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada, lançamento recente da Editora Fiocruz.






É crescente a lista de problemas que se transformaram em objeto de intervenção da psiquiatria: os conflitos da vida social são agora pensados em termos médicos. “As explicações reducionistas levarão a minimizar a capacidade de refletir sobre nós mesmos e restringirão as possibilidades de criar estratégias efetivas para dar resposta a nossos problemas”, continua a autora, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na pesquisa que originou o livro, Sandra foi buscar na história os elementos que ajudam a entender como se naturalizaram essas explicações biológicas para as mazelas humanas, expandindo a psiquiatria e tornando-a uma estratégia biopolítica, segundo o referencial teórico de Michel Foucault. Ou seja: administrar e, sobretudo, prevenir a loucura passa a ser uma questão de ordem social.


Ao contrário dessa psiquiatria ampliada, a psiquiatria clássica se negava a reduzir as alienações mentais a explicações materialistas – era o que defendia Philippe Pinel (1745-1826). Tese oposta era a de Jean Pierre George Cabanis (1757-1808), que via uma articulação indissolúvel entre o físico e o moral. Cabanis pegou o conceito de degeneração, originário da história natural, e aplicou-o à medicina. Essa teoria da degeneração teve desdobramentos nos trabalhos de Benedict August Morel (1857) e, posteriormente, Emil Kraepelin (1908), que contribuíram para a ampliação da psiquiatria.


Nessa expansão, a psiquiatria passou a ser um lugar não só de definição do que é normal e do que não é, mas também de intervenção social: na medida que em que o anormal (ou o degenerado) constituía um desvio do padrão e uma ameaça à ordem, era preciso curá-lo ou, antes, prevenir suas condutas indesejáveis. A atuação dos psiquiatras deixou de ser restrita aos muros dos asilos e englobou todos os setores da sociedade: ficava sob a gestão da psiquiatria resolver as síndromes da degeneração. Em consequência, acentuou-se o risco de estratégias higiênicas e eugênicas, como homofobia e outros racismos. “Assim, a transformação epistemológica que permitiu, na segunda metade do século 19, que a psiquiatria expandisse seu espaço de intervenção para a quase totalidade dos assuntos humanos parece persistir – ainda que profundamente transfigurada – nos atuais esforços para consolidar uma psiquiatria ampliada que se relaciona com a medicalização do não patológico”, resume Sandra.


Publicado em 4/5/2012.

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