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12/03/2010

Livro conta história de pessoas e lugares de Manguinhos


Dar voz aos moradores das comunidades do Complexo de Manguinhos, bairro onde está instalada a Fiocruz, a fim de reconstituir a sua história, foi a estratégia adotada pelos pesquisadores Tânia Maria Fernandes e Renato Gama-Rosa Costa para desenvolver o livro Histórias de pessoas e lugares - Memórias de Manguinhos. A publicação é fruto do projeto Laboratório Territorial de Manguinhos (LTM), da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que visa à produção compartilhada de conhecimento e de informação, buscando criar bases conceituais e operacionais para uma promoção da saúde emancipatória. A coordenadora do LTM e pesquisadora do Centro de Estudo em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) Fátima Pivetta e o arquiteto da Casa de Oswaldo Cruz (COC) Renato Gama-Rosa Costa contam, em entrevista ao Informe Ensp, como surgiu a ideia do livro e seu desenvolvimento e apontam algumas perspectivas do território.


 Costa: Logo no início, percebemos que se tratava de um registro inédito. A história de Manguinhos nunca havia sido contada profundamente como aconteceu agora (Fotos: Virginia Damas/Ensp)

Costa: Logo no início, percebemos que se tratava de um registro inédito. A história de Manguinhos nunca havia sido contada profundamente como aconteceu agora (Fotos: Virginia Damas/Ensp)


Quando se iniciou o projeto e de que maneira foi desenvolvido?


Fatima Pivetta: O livro teve início em 2003, quando procuramos a então diretora da Casa de Oswaldo Cruz, Nísia Trindade Lima, que prontamente acolheu a nossa ideia. A partir de então, Renato e Tânia Maria começaram esse trabalho valendo-se da gravação e análise de depoimentos orais e gravações em vídeo com moradores da região, fotografias, consultas à legislação, documentos oficiais, cartas e jornais da época bem como entrevistas com profissionais ligados ao tema, pessoas que trabalham em órgãos públicos, técnicos da Prefeitura que atuaram em projetos nas favelas cariocas nas últimas décadas.


Foram realizadas entrevistas com pelo menos dois moradores de cada comunidade. Entre lembranças e vivências narradas, apareciam as configurações desse típico bairro de periferia que retrata uma triste realidade de exclusão social e discriminações.


A publicação está divida em quatro capítulos, os quais apresentam bases teóricas de estudo com questões sobre urbanismo, história e memória, a problemática das favelas, os projetos de urbanização e habitação em favelas de uma maneira geral, a demarcação e a ocupação dos territórios, além de uma discussão acerca da memória, da narrativa e do processo de transcrição e edição de entrevistas.


 Fatima: Nesse trabalho de reconstituição da história, com o olhar crítico sobre a própria história, vimos a repetição de políticas que não se concretizam e moradores desacreditados

Fatima: Nesse trabalho de reconstituição da história, com o olhar crítico sobre a própria história, vimos a repetição de políticas que não se concretizam e moradores desacreditados


Renato Costa: Desde que fomos convidados, eu e Tânia ficamos muito interessados no projeto. Logo no início, percebemos que se tratava de um registro inédito. A história de Manguinhos nunca havia sido contada profundamente como aconteceu agora. Achamos apenas poucos relatos de um levantamento feito no ano 2000 pela Fundação Bento Rubião. Partimos desse levantamento para investigar mais profundamente a história dessas comunidades, mas não em um contexto apenas de Manguinhos, especificamente, e sim em um contexto da própria evolução urbana do Rio de Janeiro, da formação da cidade e também das políticas públicas voltadas para a área de extrema pobreza.


Sempre tivemos acesso à história de favelas do Rio de Janeiro, detalhes de criação, evolução etc., mas é curioso perceber que nenhum desses levantamentos históricos abordava ou considerava Manguinhos. Por isso consideramos esse livro como um trabalho de vanguarda, pioneiro.


Trabalhar com a história oral também foi uma estratégia pensada para colher os relatos, pois valoriza a história dessas pessoas. Buscar o olhar dos moradores, suas vivências e experiências com o lugar enriqueceu as pesquisas. Procuramos associar a história deles ao lugar e também fizemos ligações com a história urbana e políticas públicas em relação às favelas no Rio.


De acordo com os relatos, como se desenvolveu a história de Manguinhos?


Fatima: O nome Manguinhos foi dado por ser uma região formada por manguezais. Originalmente era um bairro industrial e serviu como área de transição para alocação de removidos. Foi então que se iniciou o processo de urbanização e logo depois a favelização desse território. O Estado removia pessoas e, com a promessa de ser uma situação provisória, as alocavam em Manguinhos. Um dos primeiros conjuntos habitacionais da área se chama até hoje CHP2, que significa Conjunto Habitacional Provisório. Talvez por isso Manguinhos não tenha uma história oficial. Além de relatos da Fundação Bento Rubião, na página eletrônica do Instituto Pereira Passos, órgão da Prefeitura, aparecem apenas 7 comunidades cadastradas, quando Manguinhos já totaliza 13. São pouquíssimas informações sobre o território - e as que existem estão defasadas.


Nesse trabalho de reconstituição da história, com o olhar crítico sobre a própria história, vimos a repetição de políticas que não se concretizam e moradores desacreditados. A própria prefeitura fez um diagnóstico no início dos anos 2000 para implantar um plano de desenvolvimento urbanístico, e esse relatório apontou diversas irregularidades na urbanização desse território. Entre os principais fatores estava a proibição de se construir em área de mangue.


Os moradores destacam que políticas de remoção, que trouxeram as pessoas para Manguinhos, prometiam moradia provisória. Quando conversamos com moradores mais antigos, eles lembram que esse era apenas um lugar de passagem, nem os governantes nem as próprias pessoas investiam em suas moradias. O problema é que o provisório se tornou permanente. A região não estava inserida em nenhum planejamento urbano, e praticamente não existiam investimentos.


Em algumas conversas, percebemos que isso fez com que os moradores não se apropriassem do lugar. Eles criaram uma relação com o território, mas não se sentiam parte integrante dele, principalmente depois da nova organização do território, nas últimas décadas do século 20, quando a violência e o comércio ilegal de drogas tomaram vulto.


Por isso, uma das vertentes do nosso trabalho no LTM é também a memória, a história do lugar, de vida e dos moradores. Uma das dimensões centrais dessa abordagem ecossistêmica e ecossocial é compreender a evolução dos sistemas, dos ecossistemas e dos sistemas ecossociais para poder compreender as razões e os problemas do atual estado do território. Não queremos que a história seja contada apenas pelas vozes oficiais ou pelas tradicionais vozes dos vencedores das grandes batalhas. Conhecer as histórias de vida e do lugar onde você vive também é um processo de construção de identidade como cidadão. Só sendo cidadão o ser humano é capaz de refletir sobre o passado e traçar novos caminhos para transformar o futuro.


A partir daí, será possível pensar alternativas viáveis para a melhoria da qualidade de vida nesse território. É um trabalho de mobilização da cidadania apoiada em fatos, pois de nada vale entrar em uma comunidade e tentar implementar políticas sem conhecer a sua realidade local, suas singularidades. Na linha do tempo disponível no sítio eletrônico do LTM, podem ser vistos fatos como a construção da Fiocruz e também estão registrados fatos marcantes para os moradores dessa localidade, como grandes chuvas, enchentes e incêndios.


As transformações são processos, construções históricas. Não existe um ponto predeterminado para onde esse território chegará. Essa é uma versão ideológica. Nesse processo real, nós do LTM queremos trazer a área da história para dentro da promoção da saúde. A reconstituição histórica do lugar deve ser uma dimensão da promoção da saúde, da valorização da vida dessas pessoas, para que a partir disso se consiga pensar num futuro emancipador. O livro conta 100 anos de história até o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), iniciado em 2009, no Complexo de Maguinhos. Abordamos as várias dimensões que os diversos atores com diferentes interesses têm naquele território. Isso se constitui em um olhar crítico sobre o território, e não apenas num relato de tempo passado, de passagem de tempo.


O que se espera com a publicação do livro?


Costa: No início, tínhamos a ideia de que Manguinhos ainda era um lugar de transição e que os moradores não criavam vínculos. Mas vimos que existem pessoas que moram aqui há bastante tempo, e até se deslocam de uma comunidade para outra, mas sempre dentro de Manguinhos. Não é uma relação com um local específico, mas sim com o território. Então, esperamos que esse livro já esteja dando bons frutos. Que seja um importante instrumento para a valorização do território, da história dessas comunidades e de cada morador; que ele fomente a valorização cultural da memória e da identidade com o local.


Fatima: O livro conta 100 anos de história até o início das obras do PAC. Baseados em seu conteúdo, temos que continuar a registrar e acompanhar as transformações ocorridas no território de Manguinhos, pois ainda não temos como avaliar os impactos do PAC na comunidade. Achei muito interessante o livro ficar pronto exatamente na mesma época em que Manguinhos está passando pela maior transformação já sofrida.


O PAC também é uma grande incerteza para os moradores. Se analisarmos as histórias das favelas do Rio, encontramos relatos sobre os grandes bolsões de miséria, que migraram dentro daquele mesmo espaço e formam novas periferias de miséria. Em Manguinhos não é diferente. Antigamente, esse bolsão se localizava na comunidade da Varginha, por volta da década de 1980. Depois, foi o CHP2. O último local mais miserável aqui em Manguinhos era a comunidade Mandela de Pedra, que foi quase completamente desapropriada pelo PAC.


O que nós nos perguntamos é: para onde eles vão agora? O PAC vai tirar essas pessoas de uma moradia muito precária para colocar em uma um pouco melhor - que não é a metragem prometida - com relógio d'água e relógio de luz. O problema é que muitas dessas pessoas, que não estão acostumadas a ter esse tipo de gasto não vão ter condições de manter essas contas e, com certeza, vão vender as casas e voltar a formar novos bolsões de miséria. Se não existir continuidade nos investimentos é impossível manter os equipamentos públicos. Além disso, sem um acréscimo de cidadania concreta esses problemas vão continuar persistindo. Estamos vendo isso acontecer em diversas outras favelas.


Com esses relatos teremos condições de continuar observando e registrando a evolução, o decorrer da história desse território. O que muda agora é que além de nós do LTM, os próprios moradores também estão prestando atenção em Manguinhos, pois valorizam seu local de moradia e exigem seus direitos. Acompanhar esse processo desde o seu nascimento está sendo bastante interessante.


Além do livro, essa pesquisa na comunidade promoveu a elaboração do vídeo-documentário Manguinhos: história de pessoas e lugares e o sítio eletrônico do LTM, Conhecendo Manguinhos. A partir das obras do PAC, estão sendo desenvolvidos um vídeo-documentário, ainda sem título, e um relatório fotográfico de acompanhamento das obras e das mudanças de Manguinhos com diversos olhares baseados nas mudanças ocorridas, o cotidiano da falta de respeito com os moradores, as impossibilidades oficiais e marginais do registro e os entraves do comitê de acompanhamento das obras. Tudo estará registrado nesses projetos.


Publicado em 12/3/2010.

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