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23/05/2016

Livro da Editora Fiocruz aborda transexualidade, interação e cuidado em saúde

Fernanda Marques (Editora Fiocruz)


Bianca e Leandro formavam um casal. “Bianca exibia um corpo com formas arredondadas decorado por vestidos, maquiagem e saltos altos, mas ainda tinha o pênis; Leandro usava faixas para apertar os seios e uma meia enrolada na cueca para fazer volume nas calças. Uma mulher com pênis; um homem sem? Um menino vira mulher e namora uma menina que vira homem? Ela é ele? Ele é ela?”. Do choque inicial veio a motivação para o trabalho de doutorado sobre candidatos/as ao processo transexualizador em um serviço de um hospital público. Nessa pesquisa – vencedora do Prêmio Capes de Tese 2015 na área de Letras e Linguística –, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rodrigo Borba encontrou um flagrante descompasso entre o que os serviços de saúde entendem como transexualidade e as variadas formas como as pessoas transexuais efetivamente vivenciam suas identidades no cotidiano. Como consequência, persistem obstáculos discursivos para uma atenção integral e humanizada à saúde de sujeitos transexuais, conforme Rodrigo chama atenção no livro O (Des)Aprendizado de Si: transexualidades, interação e cuidado em saúde, lançamento da Editora Fiocruz.

Durante 13 meses o pesquisador acompanhou mais do que ‘de perto’ – acompanhou ‘de dentro’ – um serviço do SUS onde se realiza o processo transexualizador, que envolve as mudanças corporais, a terapia com hormônios e a cirurgia de transgenitalização (popularmente chamada ‘cirurgia de mudança de sexo’). Ele conviveu com os/as usuários/as, a psicóloga, o psiquiatra e o cirurgião, atento às relações entre eles e mais: atento às conexões entre linguagem, sociedade, gênero, sexualidade e cuidado em saúde. Gravou consultas, fez entrevistas, elaborou notas de campo, registrou inclusive momentos informais, tudo com o propósito de melhor compreender o que se passava na perspectiva daqueles e daquelas que ali se encontravam. “O resultado é uma intravisão única do processo”, resume o também professor da UFRJ Luiz Paulo da Moita Lopes, orientador da tese.

Embora fosse um pesquisador da linguagem, Rodrigo avançou por outras áreas do conhecimento – como a antropologia, a sociologia, a filosofia e a saúde pública – para construir sua pesquisa. “Descobri que a transexualidade não tem necessariamente a ver com sexualidade, mas sim com gênero”, conta. “À medida que me aproximava das vivências trans, conheci pessoas transexuais hetero, homo, bi e assexuadas; o ponto que aproxima essas experiências é a divergência entre suas experiências de gênero e os caminhos identitários predeterminados que sua genitália supostamente traça”, afirma.

Dessa divergência surge o incômodo com o órgão genital, a sensação de inadequação, de monstruosidade até, e a necessidade de se tornar mulher ou homem ‘de verdade’, para ter reconhecimento social. Isso explica o anseio de participar do processo transexualizador. Muitas vezes, porém, ter esse desejo realizado exige que a pessoa transexual renuncie o entendimento que ela tem si própria em favor das normas médicas. Essa é uma contradição que a pesquisa de Rodrigo revela.

Para ter acesso ao processo transexualizador, o/a usuário/a precisa cumprir uma série de pré-requisitos para ser diagnosticado como portador de um transtorno mental, enquadrado como um ‘transexual verdadeiro’ e considerado apto à cirurgia – um trâmite que segue não só os protocolos da ciência médica, mas também as convenções historicamente fixadas sobre o que é gênero e sexualidade. Portanto, se o objetivo é ser conduzida ao centro cirúrgico, a pessoa transexual precisa convencer os especialistas de que ela sofre daquela patologia – um convencimento que, com frequência, passa pela elaboração e repetição de uma narrativa de transexualidade simulada, ensaiada, falaciosa.

Evitar os exageros das travestis; parecer um pouco triste; chorar às vezes; afirmar que já pensou em suicídio; contar que sempre se sentiu diferente dos outros meninos desde muito pequena; não confessar, sob hipótese alguma, prazer advindo do uso do pênis: são conselhos que os/as candidatos/as ao processo transexualizador recebem uns dos outros na própria sala de espera, enquanto aguardam suas consultas. Em outras palavras, para não colocar em risco seu desejo de transformação corporal, o/a usuário/a, no consultório médico, abdica de sua história de vida particular e opta por uma narrativa ‘ideal’, pretensamente ‘universal’, sobre ser um ‘transexual verdadeiro’.

Como o saber médico tem o poder de decidir os rumos das vidas de sujeitos transexuais, estes aprendem a fazer o que se espera que seja feito para que tenham sucesso em sua demanda pela cirurgia. Trata-se de uma performance com “a participação ativa tanto de pessoas transexuais quanto de profissionais da saúde, que, conjuntamente, retroalimentam um processo de (des)aprendizagem do que é ser uma pessoa transexual para os propósitos do processo transexualizador”, explica Rodrigo. Mas essa imposição de um diagnóstico psiquiátrico, “em vez de garantir a classificação dos/as usuários/as como ‘transexuais verdadeiros’, contraditoriamente, se apresenta como um obstáculo para a construção de relações intersubjetivas baseadas em confiança mútua e no efetivo cuidado à saúde de pessoas transexuais”, alerta o autor.

Como conclusão, Rodrigo defende que se reaprenda a cuidar da saúde de sujeitos transexuais, respeitando-os efetivamente como pessoas e valorizando as formas particulares de se vivenciar a transexualidade. Respeitando e valorizando, em especial, “quem podemos ser, para além das normas convencionalizadas sobre nossos corpos: um desafio cotidiano em nossos tempos”, conforme lembra o professor Luiz Paulo, no prefácio do livro. 

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