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02/08/2016

Manuais autoinstrutivos ajudaram a conectar medicina acadêmica e popular no Brasil Imperial

Fernanda Marques (Editora Fiocruz)


Ao se encontrarem no Brasil Imperial, a medicina acadêmica e a popular não entraram em rota de colisão. Apesar das tensões e dos distanciamentos entre os dois domínios, havia entre eles vários pontos de intersecção e convivência. Entre os elementos que contribuíram para que as fronteiras não fossem tão rígidas, destacam-se os manuais ou livros de medicina autoinstrutivos, como os de autoria do médico polonês Pedro Luis Napoleão Chernoviz (1812-1881). O papel desses compêndios é analisado pela médica Maria Regina Cotrim Guimarães em seu livro Civilizando as artes de curar: Chernoviz e os manuais de medicina popular do Império, lançamento da Editora Fiocruz.

Na obra, que integra a coleção História e Saúde, a autora descortina meandros da medicina no século 19. “Apresento uma medicina oficial que não se enclausurou nos debates internos da Academia Imperial de Medicina ou nas publicações de médicos para seus pares, e tampouco teria tomado de assalto os lares da sociedade patriarcal, definindo e fiscalizando normas de higiene. Paralelamente, procuro esclarecer que a medicina popular não se restringiria apenas a ervas e benzeduras”, resume a autora, doutora em história das ciências e da saúde e pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz).

Foi somente no início do século 19, com a vinda da Corte portuguesa para a Colônia, que o ensino e a organização profissional da medicina acadêmica começaram a se estabelecer no Brasil. Mas essa medicina encontrou aqui outras tradições de cura. Barbeiros, sangradores, herboristas, curandeiros e curiosos praticavam a arte de curar para uma vasta população sem acesso à assistência médica oficial. O livro de Regina Cotrim mostra que a medicina acadêmica não se impôs simplesmente. Ela se tornou herdeira de uma multiplicidade de práticas terapêuticas populares e por estas foi, igualmente, apropriada e ressignificada. Os dois domínios, portanto, se entrecruzaram no Brasil Imperial e, nesse processo, desempenharam um importante papel os compêndios de medicina popular.

“Ao contrário do ocorrido nos Estados Unidos, onde esses manuais eram expressão de um movimento de afirmação de setores da medicina popular contra os privilégios reivindicados pela profissão médica, no Brasil esse tipo de literatura era produzido por médicos vinculados à Academia Imperial de Medicina”, afirma o historiador Flavio Coelho Edler, que assina o prefácio do livro. No Brasil, um desses médicos, cuja obra alcançou especial popularidade, foi o polonês Chernoviz. O Formulário e Guia Médico, publicado pela primeira vez em 1841, tornou-se um best-seller, com 19 edições até 1924. O Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias, de 1842, foi outro sucesso editorial, com seis edições. O Chernoviz, como esses manuais ficaram conhecidos, contribuiu para a difusão informal do saber médico acadêmico durante o Império.

Os Chernoviz e outros livros de medicina autoinstrutivos serviam, por exemplo, para que proprietários rurais mantivessem, com um mínimo de custo, a saúde de seus escravos. De modo mais geral, eram utilizados pelos poucos letrados que, em circunstâncias variadas, realizavam práticas terapêuticas populares voltadas para a população pobre. A obra de Chernoviz “servia, portanto, como subsídio científico aos autodidatas e aos que exerciam os ofícios de cura, muitos dos quais foram titulados pelos médicos acadêmicos de charlatães e curiosos”, conforme Regina Cotrim explica na apresentação do livro. De acordo com a autora, houve uma interação entre o conhecimento leigo e aquele oriundo da leitura dos compêndios, com consequências nem sempre previstas por Chernoviz. Esse processo, repleto de ambiguidades, se desdobrou em “uma medicina acadêmica em versão popular (e vice-versa)”.

Quanto mais os manuais se disseminavam e popularizavam, mais eram despidos de seu caráter de obra científica ‘pura’ e mais se misturavam ao repositório de crendices e saberes tradicionais. Ilustra bem esse movimento o caso de famílias abastadas cujos filhos saíam de casa para estudar. “Afinal, o sinhozinho que retorna à fazenda após anos de ausência, com seu anel de esmeralda e o título de doutor em medicina, teria mesmo afrontado o saber secular de sua mãe, usurpando-lhe o amplo domínio sobre a arte de curar?”, provoca Flavio Edler. Civilizando as artes de curar traz respostas para essa e outras perguntas, em um instigante percurso pela história da medicina, do livro e da leitura.

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