Início do conteúdo

23/02/2007

O direito dos nossos cientistas de pesquisar a nossa biodiversidade

Ruy José Valka Alves e Hélcio Gil Santana*


Esta é a íntegra da carta, de 30 de janeiro, enviada à SBPC e a sociedades científicas sob o título de "Estudo da biodiversidade brasileira: fogo amigo!". A questão é da maior atualidade e tem sido objeto de debates e mobilizações da comunidade científica


Freqüentemente, para que os naturalistas possam obter amostras de material biológico, têm que mergulhar em cavernas escuras e nas profundezas dos mares, escalar montanhas e árvores, atravessar geleiras e desertos, enfim, enfrentar desconfortos e perigos dignos de filmes de aventura. O mundo natural já se encarregou de plantar grandes obstáculos em seu caminho. Não raro morrem em serviço, mas não desistem por terem certeza do potencial que suas descobertas representam para o bem-estar da Humanidade.


 O tucano-toco é encontrado no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia (Foto: Brazil Nature)

O tucano-toco é encontrado no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia (Foto: Brazil Nature)


O Governo do Brasil é o primeiro signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que aprovou pelo Decreto Legislativo nº 2, de 03/02/94, publicado em 08/02/94. Pelo Artigo 12º da CDB, "Pesquisa e Treinamento", "as Partes Contratantes, levando em conta as necessidades especiais dos países em desenvolvimento, devem: (a) Estabelecer e manter programas de educação e treinamento científico e técnico sobre medidas para a identificação, conservação e utilização sustentável da diversidade biológica e seus componentes, e proporcionar apoio a esses programas de educação e treinamento destinados às necessidades específicas dos países em desenvolvimento; (b) Promover e estimular pesquisas que contribuam para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, especialmente nos países em desenvolvimento, conforme, entre outras, as decisões da Conferência das Partes tomadas em conseqüência das recomendações do Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico, Técnico e Tecnológico; e (c) Em conformidade com as disposições dos artigos. 16, 18 e 20, promover e cooperar na utilização de avanços científicos da pesquisa sobre diversidade biológica para elaborar métodos de conservação e utilização sustentável de recursos biológicos".


Já pelo Artigo 13, "Educação e Conscientização Pública", "as Partes Contratantes devem: a) Promover e estimular a compreensão de importância da conservação da diversidade biológica e das medidas necessárias a esse fim, sua divulgação pelos meios de comunicação, e a inclusão desses temas nos programas educacionais; e b) Cooperar, conforme o caso, com outros Estados e organizações internacionais na elaboração de programas educacionais de conscientização pública no que concerne à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica" (www.lei.adv.br/02-94.htm).


Legislação brasileira em vigor - A Constituição de 1988, Lei Magna, obriga a que toda legislação infra-constitucional se harmonize com a mesma...

O Art. 1º define o Brasil como "Estado Democrático de Direito":

"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)

- Inciso II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

- Inciso IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

- Inciso XL – a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

- Inciso XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

- Inciso LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação."

"Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

§ 1º A pesquisa científica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem pú-blico e o progresso das ciências."

"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."


Liberdade de ação - A idéia magna constitucional de um Estado Democrático de Direito como o nosso, segundo a própria Constituição é a da permissão, da liberdade de atuação. Dessa forma, uma atividade justa como de estudar a natureza deveria receber pleno apoio e não tantas dificuldades.

Por outro lado, temos a interpretação do Art. 225, em que alguns órgãos federais tentam respaldar seus excessos, emperrando ou mesmo impossibilitando o livre exercício da pesquisa.

Diz o Art. 225: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético."


Estagnação - Na prática, os órgãos federais de proteção à natureza e patrimônio genético estenderam essa definição de modo a abranger qualquer manipulação não-comercial de material biológico, excetuando as de cunho comercial tradicional como a pesca e atividades agropecuárias. Isso se deu, mesmo quando no mais das vezes tal pesquisa ou manipulação de material biológico não envolve nenhuma pesquisa, manipulação ou prospecção de material genético. A repercussão quase imediata da Medida Provisória 2.052, de 29 de junho de 2000, foi a estagnação do intercâmbio de material biológico entre instituições brasileiras e estrangeiras, acarretando incalculável prejuízo às relações cordiais seculares entre instituições e aos avanços de conhecimento sobre a biodiversidade.


Excluir estudantes - A legislação sobre o patrimônio genético prevê o licenciamento de acesso ou qualquer contato ou uso científico ou didático de material biológico apenas para profissionais vinculados a instituições governamentais, excluindo, por exemplo, instituições de ensino particulares e quaisquer alunos. Isso representa o fim de qualquer atividade didática ou científica básica convencional pertinente aos estudos da biodiversidade, como a observação de pequenos organismos em aulas de Biologia nas escolas secundárias, por exemplo. Como podem os legisladores e órgãos ambientais, num país "megadiverso" negar ou esquecer, por exemplo, que alunos de escola primária e secundária também necessitam (e deveriam) estudar espécimes naturais em suas aulas práticas?! Não há previsão de licenciamento para isso.


Desmatar pode - Apesar disso, qualquer pessoa que possua um CPF pode obter autorização para desmatar uma área, destruir parte da natureza local em definitivo, mas esse documento não lhe garantirá de forma alguma, em vista da regulamentação proposta, poder estudar cientificamente, como profissional, autônomo ou amador, nem um pequeno invertebrado que encontre morto na beira da estrada...


Se o meio ambiente é bem de uso comum do povo, por que isso só inclui sua destruição e não o seu estudo autônomo ou amador? Por que tantas dificuldades para os "profissionais"?

Tanto mais se considerarmos que o estudo não só é inócuo à natureza como a médio e longo prazos será benéfico tendo em vista o incremento do conhecimento e bom manejo da biodiversidade nacional!


Fogo amigo - Quando distintas entidades, embora aliadas na luta por uma mesma causa, se atingem mutuamente, falamos de friendly fire, ou "fogo amigo". Quando o mesmo governo paga um pesquisador para coletar e catalogar espécies novas da nossa biodiversidade também lhe impõe obstáculos burocráticos e emprega dez outras pessoas, cuja principal atividade é prender e incriminar qualquer cientista toda vez que ele não estiver carregando uma mala de autorizações de coleta, transporte e salvaguarda nas costas. Isso é fogo amigo.


Caso do pau-brasil - Não há exemplo mais brasileiro do que o pau-brasil (Caesalpinia echinata), que consta das listas de espécies ameaçadas (por exemplo, Portaria Ibama 37/92 e Listagem da Fundação Bio-di-versitas 2005). O pau-brasil se tornou símbolo popular da ecologia. Todos os viveiros que se prezam vendem mudas, prefeitos as plantam em praças públicas... De acordo com a Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, as listas da fauna e flora ameaçadas são instrumentos de conservação da biodiversidade para o Governo brasileiro. Ali se apontam as espécies cuja existência está, de alguma forma, em risco. Para elaboração das listas, o setor acadêmico, composto por pesquisadores, usou como base os critérios da União Internacional para a Conservação da natureza (IUCN, na sigla em inglês). Legalmente o acesso às espécies listadas como ameaçadas, seja na forma de sementes, comércio e cultivo de mudas, etc. está atrelado a uma base burocrática sem fim e sem sentido, havendo ainda distinção entre seu uso comercial regida pelo Cites e uso não-comercial. Se você comprar uma muda de pau-brasil num supermercado, levar para seu sítio e plantar, ainda que esteja agindo em evidente socorro a uma espécie em extinção, estará sujeito a várias sanções previstas na legislação pertinente.


Caso da mosca - Imaginem uma mosca do berne caída em uma estrada rural. Pela lógica do licenciamento proposto, um estudante não pode pegá-la para ser estudada na aula de ciências ou biologia da escola primária, secundária nem da faculdade; um amador de insetos também não, nem o assistente do professor de entomologia, nem um veterinário, médico, muito menos estudantes dessas faculdades e por aí vai. Quem poderia pegá-la? — Um cientista, com emprego na área pertinente, que estude aquele grupo e tenha uma licença para coletar aquele grupo de dípteros (depois de uma baita e enfadonha burocracia). Por outro lado, um carro pode passar por cima, esmagá-la e pronto! (Até que o Código de Trânsito Brasileiro seja alterado para considerar ilícito o ato de atropelar um inseto – o que não seria nada surrealista na conjuntura atual – é só pensar analogicamente sobre as exigências para destruir hectares de floresta e as de coletar um único invertebrado no mesmo local...!).


Ao submeter trabalhos para publicação em periódicos científicos com corpo editorial, todo pesquisador tem suas ações criteriosamente e constantemente julgadas por seus pares. O sucesso não é garantido em nenhum trabalho científico, mesmo que este seja feito com metodologia impecável. Acaba ainda sendo julgado pelos órgãos de fomento que adotam critérios equivocados, baseados em número de citações, etc. Esse já é um alto preço a pagar. Se a comunidade cientifica suspeita de alguma ação danosa ao meio ambiente ou de um erro deliberado de procedimento, o trabalho acaba recusado na hora da publicação ou, se publicado, sofre duras críticas e cai no esquecimento, ficando o nome do autor publicamente comprometido. A ciência é o juiz mais imparcial e impiedoso.


A exigência proposta pelos órgãos governamentais de tornar obrigatória a publicação do número da licença de coleta em todos os artigos científicos envolvendo material biológico desconsidera o fato de que 95% das coleções em Instituições oficiais foram obtidos sem licenças numeradas, e mesmo para aqueles materiais obtidos com licença, o número nem sempre foi arquivado. Tal número em publicações será inexigível para materiais coletados antes da vigência da norma que traga tal determinação, seja por impossibilidade absoluta da sua obtenção (como um coletor já morto poderia fazê-lo?), seja, pela previsão explícita do inciso XL do art. 5º da CF que prevê a irretroatividade legal para tal desiderato. É o que sucede amiúde com todas as exigências tributárias ou regulamentares em geral que só passam a serem exigíveis para os atos ou fatos cujo fato gerador da obrigação (in casu, a coleta) se dê após a vigência da nova norma legal ou regulamentar.


Censura - Crescente número de normas e regras censura os pesquisadores naturalistas, antes, durante e depois de qualquer atividade, obrigando-os a elaborar complexos planos e relatórios, preencher ilógicos formulários, assinar contratos e termos de compromisso e perder tempo precioso que poderia ser aplicado na pesquisa em si.


Engana-se quem considera a falta de recursos financeiros o maior entrave aos avanços da pesquisa sobre biodiversidade. Na verdade, o maior obstáculo atual à geração do conhecimento são os mecanismos burocráticos do Governo, que, embora almeje proteger a natureza, por exercerem ações equivocadas em relação à pesquisa, resultam no uso infrutífero de recursos públicos em muitos casos. Diante das crescentes barreiras burocráticas, muitos pesquisadores de Instituições Brasileiras se vêm impossibilitados de executar seus projetos em Território Nacional, acabam tendo que devolver verbas de pesquisa já captadas para projetos de estudos de biodiversidade (que conquistaram em editais de fomento à pesquisa ou conservação da natureza). Para evitar a sobrecarga burocrática, alguns até começam a trabalhar no exterior.


Considerações finais - A Constituição nos define de uma forma (Estado Democrático de Direito), mas nossos órgãos governamentais teimam em nos fazer sentir presos numa ditadura. Nesta última, qualquer manifestação intelectual, cultural, artística ou científica que não estivesse naquelas estritamente aprovadas pelo partido era considerada como crime. A urgência dos levantamentos de biodiversidade é considerada crítica pelos países membros da ONU. Todo inventário de flora ou fauna realiza coletas periódicas em campo, sendo o material triado e determinado mais tarde num laboratório. Até mesmo em países não megadiversos da Europa a biodiversidade é tão rica que um único pesquisador não consegue reconhecer todas as espécies em campo (o que permitiria evitar a coleta acidental de exemplares das espécies consideradas ameaçadas). Entretanto, no Brasil (país megadiverso), mesmo com todas as licenças obtidas (suponhamos que isso fosse viável para a maioria dos pesquisadores) há o eterno perigo de se coletar um exemplar de uma espécie ameaçada! Surge a dúvida do que deve ser feito nesse caso: reportar o ocorrido e sofrer sanções, ou eliminar a amostra por esta ter se revelado ilegal? O tratamento legal dado às espécies listadas como ameaçadas é completamente incompatível com o desenvolvimento da pesquisa científica sobre biodiversidade.


Da mesma forma, quando o Artigo 225 prevê que o meio ambiente é bem de uso comum do povo, fica implícita a lógica de que o mesmo possa ser alterado para plantações e áreas urbanas, por mais que isso destrua florestas e habitats naturais.


Incoerência - Então, se as florestas podem ser derrubadas, os peixes pescados às toneladas, os pântanos drenados, tudo para servir a uma população que cresce a ritmos quase exponenciais, por que aos poucos indivíduos que querem coletar alguns espécimes naturais, conservá-los e estudá-los, atividade que, em princípio, em nada agride a manutenção das espécies nativas, são impostos tantos óbices, limitações e exigências? Por que para destruir de vez parte da natureza se exige tão pouco ou se permite tão fácil? Por que multar e processar alguns poucos indivíduos que depois de tentarem licenças e autorizações, acabaram por ter que tirar algumas árvores nativas em condomínios de luxo sob pena de perderem suas construções e, literalmente, "fazer vista grossa" para as multidões, que, anualmente, invadem encostas e áreas de proteção ambiental para construírem enormes favelas? São "dois pesos e duas medidas"!


Os órgãos administrativos brasileiros fazem justamente o contrário do previsto na Constituição: transformam o exercício do direito pelo indivíduo em verdadeira via crucis. Veja a enorme dificuldade burocrática para alguém se estabelecer ou ter um comércio ou atividade produtiva. É a perene inversão de valores no país. O marginal criminoso acaba sendo mais respeitado, mercê de invocar os "direitos humanos" que indiscutivelmente a Constituição lhe garante, do que o cidadão produtivo e honesto que, na prática, é visto como um "potencial suspeito" de estar em falta com alguma coisa (tributo, documento, etc.). Dessa forma, somos tratados quando vamos a repartições onde deveríamos, no mínimo, receber um bom atendimento, pois somos a parte da sociedade que trabalha, produz, estuda e carrega o imenso (cada vez maior) fardo social do nosso país.


Se a meta inicial da CDB era a de intensificar os estudos, no Brasil se fez o contrário, criando novas barreiras. A perseguição aos pesquisadores por órgãos de proteção à natureza, que persiste através de vários governos de orientações políticas distintas, demonstra uma alarmante falta de sensibilidade das autoridades federais para as reais prioridades na busca do conhecimento e da defesa do meio ambiente e do patrimônio biológico da nação.


Proposta - Propomos à SBPC e às Sociedades Brasileiras de Ciência, Conselhos Federais e Regionais (de Agricultura, Botânica, Ficologia, Microbiologia, Zoologia etc.) que atuem com veemência junto ao Governo Federal e todas as instâncias envolvidas (Cgen, MMA, Ibama, Ministério da Agricultura, Funai, IEFs etc.), ONGs, para promover radical simplificação e desburocratização do acesso às coletas de material biológico (vegetais, animais, fungos e microorganismos etc.) por parte de todos os cidadãos brasileiros, independente de nível de instrução formal ou vínculo institucional.


Exortamos deputados, senadores e demais membros de Poder do país a oferecem propos-tas de alteração da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) para que ela preveja em seu bojo, como atividade lícita, a coleta para fins de estudo e pesquisa científica, em todos os níveis de ensino, por autônomos ou profissionais, instituições públicas e privadas, no território nacional.


Ruy José Valka Alves (ruyvalka@mn.ufrj.br) é vice-diretor e curador do Herbário do Museu Nacional e Hélcio Gil Santana (helciogil@uol.com.br) é colaborador do Departamento de Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz. Este texto foi originalmente publicado no Jornal da Ciência de 9 de fevereiro de 2007.

Voltar ao topo Voltar