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04/11/2003

Os estigmas de trabalhar com o lixo

por Raquel Aguiar






A figura do catador de lixo não é novidade, como ilustra a antiga imagem do garrafeiro, mas nunca tantas pessoas se dedicaram à atividade, reflexo do desemprego e empobrecimento. Lançando uma perspectiva positiva sobre o tema, que inclui o ponto de vista dos catadores sobre si mesmos, a assistente social e pós-graduanda da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) Denise Chrysóstomo de Moura Juncá estudou trabalhadores de um lixão, um aterro sanitário e uma cooperativa de catadores localizados no Rio de Janeiro, além de associações de reciclagem em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul. A partir de entrevistas, traçou um perfil dessas pessoas que tiram o sustento do lixo e analisou como percebem saúde e doença em um ambiente de trabalho onde não faltam riscos e preconceitos.O trabalho foi apresentado na 8ª Jornada Científica de Pós-graduação da Fiocruz.

 







Andy Crump/TDR/HPR/OMS


Trabalhador usa luvas para manipular o lixo em cena rara. Geralmente

os catadores improvisam proteções com panos e sacos plásticos.


"'Cair no lixo', como os catadores costumam dizer, não é uma escolha, mas uma necessidade", explica a pesquisadora. "Mas não deixa de haver entre eles a certeza de que desempenham um trabalho digno, que exige habilidades específicas, uma rotina e normas de conduta". Denise propõe uma visão crítica sobre a suposta inclusão social de pessoas que, de outra forma, estariam excluídas do mercado de trabalho. "Muitas vezes ocorre uma inclusão perversa, em que o ganho de dinheiro suficiente para sobreviver não é acompanhado pela melhoria na qualidade de vida e os vínculos mantidos com a sociedade são estigmatizantes".

Entre os trabalhadores que atuam em aterros sanitários e lixões e aqueles que fazem parte de cooperativas e associações parece haver uma diferença fundamental: a percepção do lixo como matéria prima, e não como resto. "Em cooperativas e associações, os catadores se percebem como agentes ambientais, vencendo o estigma que cerca o trabalho com o lixo", a pesquisadora observa. Mas seja em aterros, cooperativas ou associações, a noção de saúde é a mesma. "Os catadores reconhecem doenças de pele e é comum ouvir reclamações sobre dores articulares ou problemas alérgicos, mas sempre de forma vaga e sem relação direta com o lixo. O catador só se considera doente quando fica impossibilitado de trabalhar". Os acidentes provocados por materiais cortantes e pelo intenso trânsito de caminhões são reconhecidos como os maiores riscos no trabalho com o lixo. "Muitas vezes os catadores improvisam proteção para os braços e pernas, mas o acidente é atribuído, na maioria das vezes, ao descuido do trabalhador", explica.

É comum encontrar famílias inteiras trabalhando no lixo. "Já conheci mulheres que amamentavam recém-nascidos no lixão", recorda a pesquisadora. "É muito complicado atribuir a doença exclusivamente ao contato com o lixo no ambiente de trabalho. Quem trabalha nesta atividade geralmente vive em condições precárias também no que diz respeito a habitação e alimentação. Existem catadores que ganham até dez salários mínimos mensais, mas a média de ganhos é de um a três salários para o sustento de toda a família". Entre trabalhadores de cooperativas e associações o atendimento médico é mais comum, seja através de convênios de saúde ou pelo encaminhamento ao serviço médico público. Já nos lixões, não é raro encontrar o uso de medicamentos achados no lixo ou de ervas e simpatias indicadas pela sabedoria popular.

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