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11/12/2006

Oswaldo Cruz: homem e mito

Fábio Iglesias


Ciência e política unidas como vocação, como está escrito na orelha do livro Oswaldo Cruz, a construção de um mito na ciência brasileira, é a idéia-chave extraída do esforço interpretativo e narrativo da historiadora Nara Azevedo, autora da publicação e diretora da Casa de Oswaldo Cruz (unidade da Fiocruz responsável pelo estudo, documentação e divulgação da história das ciências e da saúde). O livro, que foi relançado nesta quinta-feira (14/12), na Biblioteca de Manguinhos, trata da construção do mito e do lugar que o cientista ocupa no imaginário nacional.


Também nesta quinta-feira a Editora Fiocruz lançou mais quatro títulos: Difíceis decisões: etnografia de um centro de tratamento intensivo, de Rachel Aisengart Menezes; Genes: fatos e fantasias, de Eloi S. Garcia; Recursos críticos: história da cooperação técnica Opas-Brasil em recursos humanos para a saúde (1975-1988), de Fernando A. Pires-Alves e Carlos Henrique Assunção Paiva; e Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco, organizado por Nísia Trindade Lima e José Paranaguá de Santana, com co-edição da Abrasco. Os lançamentos ocorrerão às 16h30, no hall da Biblioteca de Manguinhos, no campus da Fiocruz (Avenida Brasil 4.365, Manguinhos, Rio de Janeiro). Abaixo, a entrevista com a diretora da COC para a Agência Fiocruz de Notícias (AFN).


Agência Fiocruz de Notícias: Com que fim foi construído o mito de Oswaldo Cruz?

Nara Azevedo:
Segundo a pesquisa que fiz, o movimento sanitarista da Primeira República tinha interesses políticos de afirmação diante do governo e das elites dirigentes. A principal bandeira era reformar a área de saúde. Oswaldo Cruz serviu, então, como mote. E naquele tempo o alvo desses sanitaristas, que estavam na Diretoria Geral de Saúde Pública e no Instituto Oswaldo Cruz, era combater doenças como malária e doença de Chagas, consideradas enfermidades causadoras do atraso do país, que impediam, conforme os termos da época, o progresso e a civilização.


AFN: Por que os sanitaristas daquele período acreditavam que essas doenças expressavam atraso brasileiro?

Nara:
Segundo eles, essas eram as doenças da miséria, moléstias que assolavam principalmente as populações rurais, que ficavam para o trabalho. Desde o final do século 19, o meio intelectual se mobilizou em torno da questão da construção da nação, debate que se ampliou com o advento da República, e sobretudo após a 1ª Guerra Mundial. Perguntava-se como poderíamos nos tornar um país civilizado com a herança que nos deixara o passado colonial e escravocrata. Nesse ambiente, em que floresceram as idéias eugenistas, os médicos e sanitaristas vinculados à Liga Pro-saneamento do Brasil – liderada por Belisário Pena – começaram a difundir uma outra opinião, tensionando os argumentos de natureza eugênica ao afirmar que o problema brasileiro era econômico, social, educacional, e que a população – situada, na época, majoritariamente no campo – vivia em condições miseráveis, marcada pela ausência de saúde.


AFN: Mas como, efetivamente, foi construído o mito?

Nara:
Os mitos são construídos de diferentes maneiras. No caso que estudei, analisando principalmente biografias e revistas médicas, trata-se principalmente da produção de um imaginário idealizado sobre Oswaldo Cruz, alçado nesse discurso ideológico – propagandeado inicialmente pela Liga Pro-Saneamento, e posteriormente difundido por várias gerações de médicos e sanitaristas – a galeria dos heróis nacionais como o representante da ciência. A imagem que se constrói de Oswaldo Cruz está baseada fundamentalmente em sua ação pública


AFN: Só após a morte é que começa o esforço de mitificação?

Nara:
  Oswaldo Cruz foi uma figura muito polêmica até a hora da morte (11 de fevereiro de 1917). De acordo com os auto-denominados discípulos – os pesquisadores com quem trabalhava em Manguinhos –,  no dia de sua morte, ele, agonizando, percebeu, à frente de sua casa em Petrópolis, que se desenrolava uma manifestação liderada por críticos e oponentes de sua gestão como prefeito da cidade. Só depois de sua morte foi possível construir uma figura consensual, despessoalizada. A meu ver não é possível descolar Oswaldo Cruz da iniciativa de legitimação política e científica do movimento pelo saneamento do Brasil. Ou seja, o mito refere à relação entre ciência e política.


AFN: No seu trabalho é mencionado que o médico Abreu Fialho contestava algumas posições de Oswaldo Cruz. A Revolta da Vacina não deixou de ser uma manifestação explícita de quão polêmicas eram suas idéias. Que outras ações de Oswaldo Cruz repercutiram dessa forma?

Nara:
A começar pela campanha contra a febre amarela, centrada no combate aos mosquitos. É bem conhecida essa história. Ele foi bastante ousado em adotar uma teoria que ainda era controversa no meio científico a respeito da transmissão da febre amarela por um mosquito. Existem outros exemplos de resistência as suas propostas para a saúde pública e para a ciência. Mas como mostrei no trabalho, o grande problema era que suas idéias e o Instituto de Manguinhos, pouco a pouco, introduziram uma cunha no campo médico, abrindo uma disputa com a tradicional Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que detinha o monopólio da autoridade médico-científica da época. Então, parte das reações provinha dessa chamada elite médica da capital federal, mas que diante da crescente importância científica dos trabalhos de Manguinhos, sobretudo no campo das doenças tropicais, acabou se rendendo a fatos que não poderia ignorar, como por exemplo a identificação da doença de Chagas, pelo jovem Carlos Chagas, que havia se formado na Faculdade, mas procurara Oswaldo Cruz para desenvolver, no então denominado Instituto Soroterápico Federal, sua tese sobre malária. Outra parte da oposição a Oswaldo Cruz residia no meio político, relacionado a sua atividade na Diretoria Geral de Saúde Pública, onde permaneceu como diretor de 1903 até 1909. Ali não foram pequenas as criticas e as pressões que sofreu, diante de iniciativas pouco ortodoxas para o conhecimento médico estabelecido então.


AFN: Quando falamos de mitificação ou heroificação, sempre esbarramos em imagens-força. Quais eram a imagens de Oswaldo?

Nara:
Pela relativamente extensa pesquisa e leitura documental que fiz ficou evidente que Oswaldo Cruz, quer dizer, o mito, simboliza dois aspectos centrais de sua trajetória, acentuando a sua ação pública: o fundador da medicina experimental e a o saneador do capital federal. Essas são as duas grandes imagens que acentuam a sua face pública, isto é, a relação entre ciência e vida pública, marca de grande parte do campo intelectual da época.


AFN: Que outras imagens você identificou do homem histórico que contrastariam com essas, do homem mítico?

Nara:
Acho que essas são símbolos que sintetizam tantos outros adjetivos com os quais se pretendeu investir a figura de Oswaldo Cruz, sempre nessa perspectiva de cultivar o herói da ciência nacional.


AFN: Qual é a imagem contemporânea de Oswaldo Cruz dentro da Fundação?

Nara:
Acho que ainda é a mesma, a do patrono que alcançou projeção nacional e até mesmo a imortalidade, decorrente do reconhecimento de suas ações a favor do desenvolvimento da saúde pública e da ciência brasileiras. E mais. Essa não é apenas uma imagem cultuada pela instituição. Foi e continua sendo um emblema que organiza o projeto institucional. Esse foi o legado deixado pelas várias gerações de pesquisadores de Manguinhos, e que, notavelmente, foi continuado por aqueles que passaram a integrar a Fundação Oswaldo Cruz, criada em 1970. O compromisso com a saúde pública está presente em todos nós. Isso para mim é Oswaldo Cruz.

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