Início do conteúdo

11/11/2011

Paleoparasitologia: uma jovem ciência que estuda as doenças no passado

Fernanda Marques


Existem hoje no mundo pouco mais de 100 pesquisadores e alunos de pós-graduação dedicados exclusivamente à paleoparasitologia (ou ao estudo dos parasitos no passado). No entanto, a expectativa é um interesse crescente na disciplina, com o consequente aumento do número de grupos envolvidos na pesquisa, como desdobramento da obra Fundamentos da Paleoparasitologia, lançamento da Editora Fiocruz. Iniciativa inédita, o livro é o primeiro no mundo a compilar o conhecimento disponível sobre o assunto e apresentar o estado da arte em paleoparasitologia – termo cunhado há cerca de 30 anos por um brasileiro, o pesquisador da Fiocruz Luiz Fernando Ferreira, pioneiro da disciplina. Não por acaso Ferreira é um dos organizadores da obra, ao lado do também pesquisador da Fiocruz Adauto Araújo e do pesquisador da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, Karl Jan Reinhard. "A publicação é uma síntese do que nós e muitos outros pesquisadores fizemos na área de paleoparasitologia nesses 30 anos", resume Ferreira.






“Com este livro, queremos atingir especialistas dos mais diversos campos e interesses, assim como estudantes que já estão na pós-graduação e também aqueles que iniciam ou pretendem iniciar uma carreira de pesquisa, seja na área que for, porque a paleoparasitologia é multidisciplinar por essência – se não fosse assim, ela seria impossível”, afirma Araújo, graduado em medicina, mestre em biologia parasitária e doutor em saúde pública. “Temos um trabalho muito próximo ao da arqueologia, da paleontologia, da medicina tropical. Recebemos contribuições de cientistas sociais, biólogos, historiadores, médicos e tantos outros profissionais, sejam da área biomédica ou das humanidades”.


Mas, afinal, do que trata a paleoparasitologia? Com o olhar voltado para o passado, seja um passado relativamente próximo ou bem distante, de centenas a milhões de anos atrás, a disciplina busca vestígios de parasitos que infectavam animais ou humanos. As matérias-primas para estudo incluem coprólitos (fezes), ossos e tecidos preservados em corpos mumificados. Ao examinarem esses materiais, os pesquisadores procuram os mais variados tipos de parasitos: helmintos (vermes); artrópodes (piolhos, por exemplo); protozoários (entre eles o Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas); bactérias; e, em alguns casos, até vírus. “Ao estudarem a múmia do faraó Ramsés, identificaram na face cicatrizes sugestivas de varíola. Depois, por microscopia eletrônica, partículas virais de varíola foram identificadas”, conta Araújo. “Os parasitos encontrados são sempre inertes, inviáveis. Exceções só foram relatadas até agora para certos esporos (formas latentes) de bactérias em material de 2 mil anos, não de milhões de ano”, explica.



As técnicas em paleoparasitologia dependem do tipo de material em análise. Quando os coprólitos estão mineralizados, utilizam-se processos químicos para separar ovos de helmintos e cistos de protozoários, posteriormente identificados por visualização ao microscópio. Quanto o material está mumificado, isto é, preservado organicamente, as opções de estudo aumentam. Nesse caso, além da microscopia, pode-se utilizar a sorologia, para detectar proteínas de um determinado parasito, ou mesmo lançar mão da biologia molecular, para pesquisar fragmentos do material genético do parasito.


“As técnicas de biologia molecular aplicadas à paleoparasitologia abriram a possibilidade de recuperação de material genético de parasitos que infectavam populações do passado. Trata-se, portanto, de uma oportunidade ímpar para o estudo da evolução ‘ao vivo’, isto é, para a observação de aspectos evolutivos que anteriormente eram totalmente ‘invisíveis’”, destaca Adauto. Em outras palavras, um pesquisador da doença de Chagas, por exemplo, pode comparar um T. cruzi que infectou um indivíduo há 7 mil anos com um T. cruzi da atualidade e com protozoários de períodos intermediários. Essa comparação pode revelar genes que foram ‘deletados’, que permaneceram ou que sofreram mudanças, sinalizando o caminho evolutivo trilhado por aquele parasito.


Outra aplicação consagrada da paleoparasitologia é no estudo das migrações, pois a dispersão dos parasitos pelos continentes diz muito sobre a movimentação dos grupos humanos pelos territórios. Seguindo a trilha dos parasitos – que convivem com o homem há muito mais tempo do que o senso comum imagina –, os pesquisadores da Fiocruz reuniram uma coleção de resultados significativos sobre o povoamento das Américas. “Nossas pesquisas em paleoparasitologia forneceram a constatação de que nem todo o povoamento das Américas se deu pelo Estreito de Bering, entre a Ásia e a América do Norte. Algumas populações tiveram que vir de barco, o que seria mais adequado para explicar a introdução no continente americano de parasitos que não completam seu ciclo reprodutivo no frio”, comenta Araújo.


As descobertas da paleoparasitologia, no entanto, não dependem apenas dos resultados laboratoriais. “Esse é um trabalho que envolve todo o contexto arqueológico. Nossa equipe, com frequência, viaja para os sítios arqueológicos. Precisamos entender o contexto em que as populações viviam e, para isso, lançamos mão do que for possível”, diz Adauto. “Nós trabalhamos com três corpos mumificados do período colonial brasileiro encontrados em Minas Gerais, na cidade de Tacambira. Procuramos associar os achados de laboratório com os vestígios culturais, por exemplo, a roupa que os indivíduos usavam e os atestados de óbito guardados nos arquivos da prefeitura”, exemplifica.


A ideia de escrever o livro surgiu em 2002, quando Araújo, Ferreira e Reinhard foram convidados a ministrar um curso sobre paleoparasitologia na pós-graduação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “Começamos a conversar sobre o projeto durante o voo do Rio de Janeiro para Campo Grande”, lembra Araújo. Os muitos esforços empreendidos para a produção do volumoso Fundamentos da Paleoparasitologia renderam outros frutos, como uma edição especial da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz dedicada ao tema e um pequeno livro, com cunho de divulgação científica, chamado Paleoparasitologia, publicado pela Editora Fiocruz, em 2008, dentro da Coleção Temas em Saúde. “Esse livrinho foi escrito durante a preparação do livrão”, brinca Araújo. “Ele funciona como uma espécie de introdução”, completa.


Fundamentos reúne autores de vários países, como Argentina, Estados Unidos, Alemanha e França, e tem capítulos dedicados aos achados em todos os continentes: Américas, Europa, Ásia, África e Oceania. “Mesmo sendo um livro editado em português, ele certamente terá o seu mercado e despertará interesse em pessoas que leem em espanhol. Nos Estados Unidos, muitos pesquisadores que estudam múmias já trabalharam em sítios arqueológicos na América do Sul e sabem espanhol”, aposta Araújo.


Publicado em 11/11/2011.

Voltar ao topo Voltar