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29/06/2017

Pesquisador alerta sobre os malefícios dos antidepressivos

Eliane Bardanachvili (CEE/Fiocruz)


Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão. Por se tratar de problema para o qual não há um índice padrão de detecção, a depressão tornou-se um conceito maleável, posto a serviço dos interesses da indústria farmacêutica, para incrementar a venda de medicamentos. “Elegeu-se a depressão como doença a ser cada vez mais alargada, para abarcar situações da vida, como conflitos, desgosto, desemprego, separação, luto, e formatar como doença”, analisa nesta entrevista ao blog do CEE/Fiocruz o sanitarista Paulo Amarante, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e presidente honoris causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

"Medicalizar problemas cotidianos faz mais mal a saúde do que a depressão", comenta o pesquisador (foto: CEE/Fiocruz)

 

Paulo alerta quanto aos malefícios das drogas prescritas, em especial os antidepressivos, que podem ser mais prejudiciais do que aquilo que buscam combater. “Começou-se a observar que esses medicamentos geram dependência e que sua suspensão e retirada é tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. E praticamente não há serviço especializado no mundo nesse tipo de desintoxicação”, aponta.

Os laboratórios farmacêuticos, no entanto, denuncia Paulo, encomendam e financiam pesquisas que patologizem o comportamento das pessoas diante de dificuldades cotidianas. Ele cita, entre as investigações realizadas nesse sentido, a do jornalista americano Robert Whitaker, vencedor em 2010 do Investigative Reporters and Editors Book Award, pelo livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. O livro será lançado no Brasil em 3/7/2017, pela Editora Fiocruz.

Co-editor, com o pesquisador Fernando Freitas, do site Mad in Brasil (versão brasileira do site Mad in America), para integrar a comunidade de língua portuguesa à rede internacional, ampliando o diálogo voltado à construção de um novo paradigma de assistência psiquiátrica, Paulo também está concluindo um novo livro Lugares da memória: causos, contos e crônicas, sobre loucos e loucuras. O livro reunirá relatos de situações que ele recolheu ao longo de sua trajetória e terá prefácio do antropólogo italiano Massimo Canevatti e Eduardo Torre.

O tema dos medicamentos prescritos será discutido em seminário internacional, a ser realizado pelo Laps com apoio do CEE/Fiocruz, de 30/10 a 1º/11/2017, no auditório da Ensp. Robert Whitaker está entre os nomes já confirmados, ao lado de Lisa Cosgrove, professora de Psicologia Clínica da Universidade de Massachussets-Boston, co-autora com o jornalista do livro Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma, e Jaakko Seikkula, da Finlância, à frente da experiência do Diálogo Aberto (Open Dialogue), abordagem que reduziu os diagnósticos de esquizofrenia no país. “A vida não é uma norma. Cada vida é muito pessoal”, observa Paulo. “O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades”.

Confira a entrevista:

CEE/Fiocruz: De que forma as drogas prescritas são um problema de saúde pública, e como está esse entendimento por parte da sociedade?

Paulo Amarante: A questão das drogas prescritas tem sido levantada há alguns anos. Tinha-se a concepção de que o uso das drogas psiquiátricas como tratamento para os transtornos mentais era um grande avanço da medicina, da bioquímica, da indústria farmacêutica. Isso vem desde os primeiros tratamentos, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o primeiro antipsicótico, a clorpromazina. De lá para cá, vieram sendo produzidos antipsicóticos de segunda e terceira gerações, antidepressivos etc. A ideia de avanço estava no imaginário dos profissionais. Isso, no entanto, passou a ser duramente questionado por psiquiatras que começaram a ver que não eram só as drogas psiquiátricas que possibilitavam uma ressocialização, como argumentava a indústria farmacêutica. A superação do modelo manicomial, da prática asilar, com a adoção de outras práticas de participação social, coletivização, resgatando os sujeitos, sem submetê-los a constrangimentos, segregação e exclusão, surtia efeito muito importante. Uma das marcas da ciência moderna é romper com essa explicação simplista de causa efeito, e, nesse caso, de que a causa do transtorno é uma alteração bioquímica. O homem é um ser complexo, e as alterações bioquímicas não seriam causa, nem necessariamente efeito. É algo simultâneo; o homem pensa a partir de processos simbólicos e neuroquímicos ao mesmo tempo. A teoria do distúrbio neuroquímico vem sendo criticada desde a década de 1970, e só não cai devido a um forte interesse mercadológico. No caso dos antidepressivos, principalmente, pesquisas muito sérias mostram que eles têm efeito igual ou inferior ao placebo, à psicoterapia ou a outras abordagens não científicas, como as religiosas. Há ainda os grupos comunitários que se organizam para dar suporte, os amigos etc.

CEE/Fiocruz: Que pesquisas vêm sendo feitas nesse sentido?

Paulo Amarante: No âmbito da própria medicina, temos o Peter Gotzsche [ver aqui e aqui], um dos fundadores da Biblioteca Cochrane, que reúne pesquisas baseadas em evidências, e Joanna Moncrieff, da University College London, uma das fundadoras da Rede de Psiquiatria Crítica [ver aqui]. Há também as pesquisas realizadas por formadores de opinião, como o jornalista Robert Whitaker, que ganhou o prêmio de jornalismo investigativo, em 2010, com o livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, e a professora Lisa Cosgrove, da Universidade de Massachussets-Boston. A eficácia dos medicamentos passou a ser questionada, mostrando-se que podem ser auxiliares, paliativos, opcionais em alguma situação, mas não permanentemente, não exclusivamente. Mais recentemente, começou-se a levantar, ainda, que os antidepressivos causam dependência química, levando a uma síndrome de abstinência quando retirados, confundida com recidiva da depressão. Sem o medicamento, a pessoa volta a ter um quadro depressivo, como se fosse um retrocesso. Como, ao receber o antidepressivo novamente, ela melhora, essa melhora é associada ao medicamento, como se fosse a mesma coisa que uma infecção, que pode voltar se o antibiótico for suspenso. Na verdade, o que há é uma situação de abstinência.

CEE/Fiocruz: Essas questões foram trazidas à tona pela OMS, que definiu a depressão como tema de campanha pelo Dia Mundial da Saúde de 2017, em abril...

Paulo Amarante: A OMS chamou atenção para o uso indiscriminado de antidepressivos, sua suspensão e retirada, tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. As pessoas não podem parar de imediato; têm sintomas de abstinência, como insônia, irritabilidade, palpitações, um mal estar por vezes insuportável. E não há serviço especializado no mundo em desintoxicação de antidepressivos; não há técnicas, estudos para lidar com isso, porque durante muito tempo a psiquiatria negou que esses medicamentos causariam síndrome de abstinência nesse nível. A OMS agora reconheceu pela primeira vez em dois relatórios importantes que os antidepressivos causam dependência e que seu uso da forma como se dá no mundo inteiro é um problema maior que a depressão em si. É como se disséssemos que o uso de antibiótico causa mais problemas que a infecção.

CEE/Fiocruz: O problema das drogas prescritas representa, então, mais um embate entre saúde e mercado?

Paulo Amarante: É sempre a política de mercado versus a política de saúde. O trabalho de Robert Whitaker mostra como a indústria farmacêutica e a classe psiquiátrica estão mancomunadas para produzir, com pesquisas, uma elasticidade no conceito de depressão de forma a abarcar situações da vida cotidiana como conflitos, desemprego, desgosto, separação, luto. Essas situações começaram a ser formatadas como depressão. De fato, é possível moldar um comportamento. Como o ser humano é muito sugestionável, se dissermos que o que ele tem é depressão, ele passa a ter. Se a mídia mostra depoimentos de pessoas importantes  que dizem “fui depressivo”, “tenho toque”, “tenho pânico”, isso causa um efeito...

CEE/Fiocruz: O que é depressão, afinal? Ela existe como doença?

Paulo Amarante: Não temos um critério definitivo. Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão, não há um índice padrão ou um índice médio permanente. Trata-se de um conceito, e, exatamente por ser tão maleável, tão subjetivo, tornou-se propício a que se elegesse a depressão como a doença a ser cada vez mais alargada. Pânico, obsessão-compulsão, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)... No caso dessa última, os pais são levados a mudar seu olhar para ver na criança não alguém rebelde, em crescimento, mas alguém com uma patologia. Problemas cotidianos, escola fracassada – não apenas a escola pública brasileira, mas o modelo de ensino, sua proposta já superada –, pobreza, falta de recursos, baixos salários, tudo contribui para uma piora do quadro. Há também as situações de crise evolutivas, como entrada na terceira idade, iniciação na vida sexual, incapacidade de realização de ato sexual, saída da primeira infância para a puberdade, entrada na vida adulta, crises de identidade que podem vir acompanhadas de uma certa situação depressiva. E o comportamento das pessoas diante das dificuldades acaba sendo patologizado. O livro de Allen Frances, Salvando o normal [Saving the normal], é uma crítica a essa ampliação do conceito de anormalidade.

Continue a leitura da entrevista no blog do CEE/Fiocruz

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