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17/10/2016

Pesquisador fala sobre álcool, saúde e sociedade em conferência internacional na Fiocruz

André Costa (Agência Fiocruz de Notícias)


Estudioso do abuso de álcool e de outras drogas há mais de 40 anos, Thomas F. Babor é considerado uma das maiores autoridades do mundo no tema. Seu livro Alcohol: No Ordinary Commodity (Álcool: uma commodity não ordinária, em tradução livre), editado pela primeira vez em 2003 e reeditado em 2010, é considerado um marco para a compreensão do álcool como um problema de Saúde Pública. Baseando-se inteiramente em evidências científicas, a obra analisa quais políticas públicas são eficazes e quais não são para reduzir os problemas relacionados ao alcoolismo.

Segundo Babor, leis rígidas tendem a ter efeitos benéficos sobre a população contra o abuso do álcool; a aplicação destas leis, contudo, enfrenta um lobby poderoso de corporações transnacionais, que se valem de expedientes pouco corretos em sua busca pelo lucro. Abaixo, o professor da Universidade de Connecticut fala um pouco sobre este e outros temas. Babor ministrará a conferência de abertura do Seminário Internacional: Álcool, Saúde e Sociedade, dia 24/10, na Fiocruz.

"Cada sociedade reage de modo particular a mudanças em políticas do álcool", afirma Babor (foto: Global Alcohol Policy Alliance)

 

AFN: 13 anos se passaram desde o lançamento da primeira edição de seu inovador livro Alcohol: No Ordinary Commodity, obra que definiu o campo de estudo dos problemas ligados ao álcool como uma questão de Saúde Pública. Como vê os avanços na área desde 2003? Podemos dizer que o livro teve impactos não apenas em estudos acadêmicos, mas também sobre políticas públicas? Em caso positivo, como? E quais são os novos desafios que surgiram no mesmo período?

Thomas Babor: Muito mudou desde a publicação da primeira edição do livro. Novas pesquisas produziram cada vez mais evidências implicando o álcool a uma série de problemas de saúde; ao mesmo tempo, novos estudos documentaram que políticas sobre o álcool baseadas em evidências científicas podem ter efeitos positivos para evitar as mortes, as doenças e os males causados pela bebida. Foi demonstrado que estabelecer preços de venda mínimos, por exemplo, diminui o número de admissões em hospitais relacionadas ao álcool.

Outras mudanças, contudo, não foram tão promissoras. A indústria do álcool, especialmente o setor cervejeiro, tornou-se mais concentrada em um pequeno número de corporações multinacionais. O marketing delas mira jovens e outros grupos vulneráveis; para alcançar estes grupos, são desenvolvidos novos produtos, por exemplo. Felizmente, os responsáveis por políticas públicas ao redor do mundo começaram a prestar mais atenção às evidências científicas, adotando políticas capazes de reduzir mortes e desastres relacionados ao álcool. Espero que o livro tenha ajudado a traduzir as evidências científicas em ações significativas. Um relatório recente publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) é um bom exemplo de como a pesquisa descrita no livro pode ser usada para desenvolver políticas que protejam as populações vulneráveis dos efeitos danosos da publicidade do álcool.

AFN: Você e outros pesquisadores abordam as políticas sobre o álcool sob uma perspectiva científica, buscando os modos mais efetivos de combater o alcoolismo. Você poderia brevemente descrever quais são estes modos?

Thomas Babor: De acordo com a Organização Mundial de Saúde, há três estratégias de melhor custo-benefício que os legisladores podem adotar para reduzir os efeitos danosos do álcool e de suas consequências. Elas têm a melhor relação entre custo e eficácia, e são as seguintes: restrições sobre a disponibilidade do álcool (como, por exemplo, limites sobre as horas e os lugares onde se vende bebida); políticas de preço e impostos que evitem que álcool barato inunde o mercado; proibições da publicidade e de outras formas de marketing do álcool. Outras políticas que são eficazes, mas mais caras, são o reforço de leis punindo quem bebe e dirige, programas de tratamento para alcoólatras e testes e intervenções rápidas para o consumo de risco em ambientes de atenção primária em saúde.

AFN: É possível prever quais seriam os efeitos na sociedade se todas as medidas que o senhor recomenda fossem adotadas? Quais seriam as mudanças mais significativas que veríamos?

Thomas Babor: Cada sociedade reage de modo particular a mudanças em políticas do álcool, mas há alguns exemplos de grandes mudanças em mortes e acidentes relacionados ao álcool que aconteceram devido à adoção de conjuntos de políticas como as descritas acima. No Brasil, a taxa de homicídios em Diadema caiu drasticamente quando os bares começaram a fechar às 23h. Na antiga União Soviética, as reformas instituídas por Michael Gorbachev na década de 1980 foram associadas com um aumento na expectativa de vida masculina de vários anos, após uma queda brusca no mesmo índice na década anterior devido a suicídios, homicídios e doenças coronárias ligadas ao álcool. Em 1984, o congresso americano aprovou um ato estabelecendo o padrão mínimo de 21 anos para a venda de álcool. O número de jovens mortos em acidentes de carro com a participação de um motorista intoxicado caiu quase 63%, evitando milhares de mortes desnecessárias em um período de 30 anos.

AFN: A indústria do álcool é muito globalizada hoje, com grande parte das receitas concentrada em um pequeno número de corporações transnacionais. A indústria está mais agressiva em relação a países renda média e baixa nos últimos anos? Que estratégias a indústria adotou para se expandir para regiões do mundo além dos países desenvolvidos? E qual seria a melhor maneira de se resolver este problema, isto é, como a comunidade internacional pode cooperar para diminuir o poder da indústria?

Thomas Babor: Países em desenvolvimento são muito atraentes para a indústria graças a suas populações jovens e a suas classes médias crescentes. A indústria se expandiu para regiões como a África e a América Latina não apenas por meio de mergers e de aquisições, mas também valendo-se de integrações verticais, com os produtores assumindo diversos papéis na cadeia de produção. Foi descoberto que, em quatro países africanos, a indústria promoveu “parcerias” com governos para determinar as políticas nacionais de álcool.

Com os ganhos financeiros obtidos por meio da concentração, os grandes produtores transnacionais de álcool reinvestiram seus lucros em intensas campanhas de marketing em países em desenvolvimento e de renda média. Uma dessas estratégias é alcançar pessoas jovens por meio de parcerias, especialmente de eventos esportivos. No Brasil, 58 atléticas universitárias têm contratos formais com a indústria do álcool. Eventos de esporte atraem públicos significativos, especialmente de jovens homens, que são os usuários mais pesados de álcool, e também aqueles que têm o maior número de problemas com a bebida. Ao patrocinar jogos ou uma equipe, a indústria consegue associar o hábito de beber com uma atividade recreativa, encorajando as pessoas a beber mais. O maior evento esportivo patrocinado pela indústria do álcool é a Copa do Mundo, realizada no Brasil em 2014 e patrocinada em parte pela AB InBev. Mais de um bilhão de pessoas assistiram à final na televisão. Dentro do Brasil, a InBev realizou mais de 80 mil eventos em 700 cidades pelo país, alcançando mais de 15 milhões de pessoas de acordo com dados dos relatórios de dividendos de 2014 da companhia. Nos nove meses seguintes ao evento, o volume de vendas de álcool da indústria cresceu 6% no Brasil. O marketing da indústria também mira mulheres, que tradicionalmente compõem a maioria dos abstêmios. A classe média emergente também é outro alvo, e para conquistá-la são desenvolvidas estratégias “premium”, nas quais a indústria tenta convencer os consumidores a “subir de nível” e comprar produtos mais caros.

A melhor maneira para combater a tentativa da indústria de aumentar o consumo excessivo de álcool entre mulheres e homens jovens é banir o marketing do álcool, como acontece na França, na Finlândia e em muitos outros países. A Opas recentemente emitiu um relatório destacando a necessidade de fortalecer mecanismos de controle do marketing, para prevenir que milhões de jovens sejam expostos a mensagens favoráveis à bebida.

A comunidade de saúde pública internacional recentemente publicou um comunicado afirmando que a indústria do álcool não deve ter papel no desenvolvimento ou na implantação de políticas sobre a bebida. Governos, a comunidade de saúde pública, universidades e outras organizações da sociedade civil também deveriam ser encorajadas a adotar políticas de conflito de interesse, e recusar parcerias com a indústria do álcool, ou com organizações de aspecto social, mas a seu serviço.

Além disso, pesquisas independentes sobre as práticas da indústria devem ser apoiadas e promovidas. Uma compreensão detalhada das práticas da indústria, especialmente das atividades políticas corporativas da indústria do álcool, tem o potencial de promover a transparência e de fortalecer mecanismos de responsabilização.

AFN: A indústria do tabaco por décadas financiou pesquisas e tentou disseminar informações falsas sobre problemas relacionados ao fumo. Podemos dizer que a indústria do álcool adota as mesmas táticas? Em caso positivo, que táticas são essas?

Thomas Babor: Sim, a indústria do álcool adota táticas parecidas. Na verdade, um dos maiores think tanks da indústria do álcool foi criado pela Philip Morris quando a empresa de tabaco era dona da cervejaria Miller. O envolvimento da indústria na ciência do álcool acontece de múltiplas maneiras: por meio do financiamento direto de pesquisas, do patrocínio de organizações de financiamento, do financiamento direto de pesquisadores universitários e de esforços para influenciar a percepção pública da pesquisa. O envolvimento da indústria em atividades de pesquisa é crescente, mas não objetiva levar a grandes descobertas científicas ou a reduzir doenças relacionadas ao álcool. Ao invés disso, a indústria tenta deslocar o debate desde a redução nos níveis populacionais de consumo de álcool à meta mais limitada de se mudar apenas padrões individuais. As atividades científicas da indústria geram confusão no debate público sobre questões de saúde e sobre quais são as opções de políticas públicas existentes. Além disso, levantam dúvidas sobre a objetividade dos cientistas financiados pela indústria, e fornecem a esta meios convenientes de demonstrar “responsabilidade corporativa” em suas tentativas de evitar impostos e regulações.

AFN: O Brasil adotou suas próprias medidas para prevenir o abuso de álcool nas últimas décadas – poderíamos citar outra vez o já mencionado programa em Diadema, assim como a política de tolerância zero aplicada ao álcool ao volante. O senhor é familiar com estas (e possivelmente outras) políticas instituídas no Brasil? O que pensa delas?

Thomas Babor: Sim, as conheço, e elas servem como grandes exemplos sobre como políticas baseadas em evidências podem evitar problemas ligados ao álcool e melhorar a saúde pública. Leis rígidas contra o álcool ao volante também podem ajudar a mudar atitudes, mas elas só serão de fato eficazes para reduzir fatalidades se forem cumpridas. Outra lei brasileira que recentemente recebeu muita atenção foi a proibição da venda de álcool em estádios, que foi suspensa durante a Copa do Mundo graças à pressão da Fifa e da AB InBev.

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