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31/07/2017

Pesquisadora da Fiocruz alerta para perigos das infecções sexualmente transmissíveis

Tatiane Vargas (Ensp/Fiocruz)


Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que são registrados por dia no mundo mais de um milhão de casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Isso corresponde a quase 360 milhões de novas infecções ao ano. Possuir uma IST como a sífilis ou gonorreia, por exemplo, aumenta consideravelmente o risco de se adquirir ou transmitir o HIV para parceiros (a) sexuais. Na gestação, a sífilis, leva a mais de 300 mil mortes fetais e neonatais ao ano no mundo. Segundo Monica Malta, pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Saúde Pública e Direitos Humanos da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, que trabalha em pesquisas voltadas especialmente para a epidemiologia e prevenção do HIV/Aids em grupos mais vulneráveis, no Brasil, a situação é preocupante. Em 2015, foram registrados quase 66 mil casos de sífilis, sendo aproximadamente 33.400 casos em gestantes e 19.200 casos de sífilis congênita. Confira a entrevista na íntegra:

Recentemente, o Rio de Janeiro sediou o Congresso Mundial sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis e HIV. Como foram as discussões e de que forma estamos caminhando no Brasil?

Monica Malta: O debate sobre o crescimento das ISTs, a eficácia das ações, os problemas atuais e as estratégias futuras estão, mais do que nunca, superatuais. Temos um problema sério de desabastecimento e dificuldade de gerenciamento no fluxo dos medicamentos, os quais afetam quem está na ponta, ou seja, o paciente. É ele que precisa do medicamento antirretroviral para tratar a infecção pelo HIV; ele que precisa da penicilina para tratar a sífilis, o kit de testagem para ISTs. Esse é um problema muito sério. Apenas em 2017, foram registrados diversos casos de desabastecimento, inclusive no Distrito Federal, o que significa total contrassenso, pois como podem faltar testes para sífilis justamente no Distrito Federal, se os testes são comprados pelo Ministério da Saúde?

Uma questão muito importante quando pensamos em ISTs dentro da rede de serviços é: temos testes disponíveis? A testagem é rotina para pacientes sexualmente ativos e para os grupos mais vulneráveis? E para aqueles que conseguem ter acesso à testagem e recebem resultado positivo, temos disponíveis os tratamentos preconizados? Todas essas questões citadas são bem complicadas e atingem quem está na ponta nas unidades de saúde de todas as regiões do país. Diversas organizações não governamentais, organizações de pacientes e até mesmo os profissionais de saúde de inúmeros serviços têm relatado que faltam insumos. Infelizmente, não existe campanha eficaz e estratégia bem-sucedida se não temos a infraestrutura necessária para atender às pessoas, acolhê-las e oferecer o atendimento necessário.

O preconceito ainda é um grande problema a ser enfrentado. Quais outros problemas você também considera grave?

Monica Malta: Treinamento, capacitação e sensibilização das equipes também são problemas graves. No âmbito da pesquisa Divas, por exemplo, que acessa milhares de mulheres transexuais e travestis do Brasil, são inúmeros os relatos de preconceito e discriminação e até mesmo a recusa de atendimento nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Um serviço de saúde que não é acolhedor, não respeita a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa, que utiliza pronome masculino para se dirigir a uma mulher transexual, discrimina uma trabalhadora do sexo ou um jovem homossexual está fazendo um enorme desserviço, pois a chance de essa pessoa voltar a esse serviço é mínima. Esses problemas constantes refutam o próprio papel que o SUS deve assegurar, o que está escrito na Lei n. 8.080, ou seja, "que a saúde é um direito fundamental do ser humano e dever do Estado".

Quais são as maiores reclamações das participantes da pesquisa Divas? Na sua opinião, o que isso reflete e como isso se relaciona com as Infecções Sexualmente Transmissíveis?

Monica Malta: Diversas participantes da pesquisa Divas já foram destratadas no serviço público de saúde; muitas já chegaram em emergências com ferimentos sérios, dores, necessitando de atendimento imediato e tiveram que esperar por muitas horas enquanto viam outros pacientes menos graves, que não eram transexuais ou travestis, sendo atendidos. Muitas participantes já foram embora dos serviços de saúde sem terem recebido o tratamento que precisavam ou tendo sido tratadas de forma preconceituosa, desrespeitosa, sem ter sua identidade de gênero respeitada nos atendimentos e até mesmo na hora da internação.

Isso é muito grave, é uma séria violação de direitos humanos. Além disso, está diretamente ligada às Infecções Sexualmente Transmissíveis, pois quando temos grupos populacionais mais vulneráveis e historicamente discriminados e mal atendidos nos serviços de saúde, essas pessoas acabam buscando a automedicação para evitar todo o sofrimento psíquico, o constrangimento moral, preconceito e descaso que vivenciam nos serviços de saúde de forma geral. A automedicação tende a levar essas pessoas a realizar um tratamento inadequado, muitas vezes indicados por amigos, ou até mesmo atendentes de farmácias, que podem levar à resistência ao tratamento e à transmissão de vírus/bactérias multirresistentes.

A resistência aos medicamentos é hoje um problema real. Como enfrentar essa questão que já é preocupação mundial?

Monica Malta: Essa é uma questão ampla e não pode ser minimizada por meio da culpabilização do paciente. É uma questão estrutural que precisa ser abordada no âmbito da gestão (para que não faltem testes nem medicamentos) e no âmbito dos serviços (para oferecer acolhimento e atendimento sensível, respeitoso, adequado às necessidades da população que acessa esses serviços). Essa questão também passa por um aspecto extremamente importante que é o das campanhas educativas, que precisam ser elaboradas de forma cuidadosa, cultural e socialmente adequadas, sempre com participação das pessoas as quais se destinam.

É preciso falar também sobre a importância do diagnóstico e tratamento adequado para as Infecções Sexualmente Transmissíveis. Em julho deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) relatou que a resistência aos antibióticos está tornando a gonorreia – uma infecção comum transmitida sexualmente – muito mais difícil e, às vezes, impossível de tratar. É a chamada supergonorreia.

Nessa perspectiva, ainda temos um complicador econômico. O desenvolvimento de novos antibióticos para tratar doenças como a gonorreia não é muito atraente e nem lucrativo para as grandes empresas farmacêuticas. Esses tratamentos têm curto período, ao contrário dos medicamentos para doenças crônicas. Além de serem medicamentos que vão se tornando menos eficazes na medida em que a resistência se desenvolve. Com isso, o fornecimento de novos medicamentos precisa ser reabastecido constantemente.

Como prevenir a gonorreia e outras ISTs e que estratégias podem e devem ser utilizadas?

Monica Malta: Como a maioria das Infecções Sexualmente Transmissíveis, a gonorreia pode ser prevenida com o uso consistente e correto do preservativo. São importantes estratégias de informação, comunicação e educação que promovam práticas sexuais mais seguras, que melhorem a capacidade das pessoas de reconhecer os sintomas da gonorreia de outras ISTs, aumentando as chances de pessoas com os sintomas procurarem testagem, diagnóstico e tratamento adequado.

Aspectos diversos, que incluem a falta de campanhas amplas, treinamento inadequado de profissionais de saúde e o estigma em torno das ISTs são barreiras importantes que precisam ser vencidas. Para além dessas questões gerais, são necessárias também intervenções especificamente elaboradas para diferentes grupos populacionais, mas não somente elaboradas, precisam ser mantidas ao longo do ano.

São importantes ainda aspectos relacionados à questão de gênero, relações permeadas pelo poder, desigualdade e dependência econômica e aspectos mais amplos que influenciam, de forma diferenciada, a capacidade de determinadas pessoas conseguirem negociar o uso do preservativo, enquanto outras não. Isso tudo precisa ser considerado para que campanhas e estratégias diferenciadas sejam elaboradas para cada grupo e, preferencialmente, com a participação das pessoas para as quais a intervenção se destina.

Por exemplo, dados recentes da OMS alertam para o aumento mundial dos casos de Hepatite A em homens gays e bissexuais. Essa tendência também é observada no Brasil. A transmissão sexual pode ocorrer com a prática sexual oral/anal, pelo contato da mucosa da boca com o ânus de uma pessoa infectada, mas, no Sistema Único de Saúde, a vacina ainda não prioriza esse grupo, e não existem companhas ou estratégias voltadas para essa população.

Especificamente sobre a sífilis, existem diversos relatos de falta de kit para testagem e da penicilina nos serviços de saúde. Isso é muito grave, pois pacientes que não são testados podem ter complicações por sífilis não tratada, podem transmitir para seu parceiro(a) sexual, e gestantes podem transmitir para o bebê. Ou seja, uma pessoa pode sofrer uma série de complicações desnecessárias, pois a sífilis é uma doença curável e de tratamento barato.

Qual o panorama atual das ISTs no Brasil e no mundo, e o que deve ser feito para mudá-lo?

Monica Malta: Segundo dados da OMS, são registrados por dia no mundo mais de 1 milhão de casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs); isso corresponde a quase 360 milhões de novas infecções ao ano. Possuir uma IST como a sífilis ou gonorreia, por exemplo, aumenta consideravelmente o risco de se adquirir ou transmitir o HIV para parceiros(a) sexuais. Na gestação, a sífilis, leva a mais de 300 mil mortes fetais e neonatais ao ano no mundo.

No Brasil, em 2015, foram registrados quase 66 mil casos de sífilis, sendo aproximadamente 33.400 casos em gestantes e 19.200 casos de sífilis congênita. Esse é um problema sério, cuja resposta passa pela ampliação do acesso ao diagnóstico (inclusive com testes rápidos, uma estratégia muito importante do Mistério da Saúde), mas que não tenha como foco principal apenas a mulher gestante, mas toda a população, focando principalmente nos grupos mais vulneráveis. São necessárias ainda estratégias adicionais que garantam a disponibilização do tratamento, o fluxo adequado de reposição de estoque, a capacitação de profissionais de saúde e campanhas diversas.

Mas, além disso tudo, precisamos falar sim, e sempre, sobre preconceito e discriminação dentro do serviço de saúde e dentro do SUS, para que possamos reconhecer esses problemas e elaborar, junto aos grupos - mulheres profissionais do sexo, mulheres transexuais e travestis e a população LGBTQ em geral – que sofrem esses problemas, estratégias de respostas eficazes. Para se falar de Infecções Sexualmente Transmissíveis, temos que falar de sexo, de gênero, de formas mais seguras de obter prazer. Precisamos rever normatizações, políticas, lutar contra o estigma, capacitar e sensibilizar profissionais de saúde para evitar que os grupos mais vulneráveis continuem sendo excluídos das estratégias disponíveis no Sistema Único de Saúde.

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