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29/06/2017

Pesquisadores condenam liberação de inibidores de apetite

Ensp/Fiocruz


A Lei 13.454, de 23 de junho de 2017, que autoriza a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica, dos anorexígenos sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol, derrubou uma medida da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2011, que havia proibido a comercialização de medicamentos desse tipo, e transformou em "decisão política" uma resolução que deveria ser estritamente técnica e baseada em evidências científicas. Em termos gerais, essa é a visão dos pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Os especialistas vão além: afirmam que o Estado tem o dever de proteger a saúde, e que cabe à Anvisa determinar, ou não, o uso de qualquer medicamento.

O Informe Ensp ouviu especialistas da área de toxicologia, epidemiologia, vigilância sanitária, assistência farmacêutica e segurança do paciente sobre a questionável decisão do Congresso Nacional. Todos os pesquisadores refutaram a sanção da lei, lembraram que esse tipo de aprovação pelo congresso brasileiro é única no mundo e questionaram os possíveis interessados na liberação dos inibidores de apetite.

Uma decisão política e única

Chefe do Laboratório de Tóxicologia da Ensp/Fiocruz, o pesquisador Francisco Paumgartten questiona a dimensão política do assunto em detrimento às evidências científicas do uso dos anorexígenos. Para ele, além da gravidade de contrariar uma decisão do órgão regulador, o Congresso Nacional não está preparado e não tem a competência necessária para realizar análise técnica das evidências de segurança eficácia dos inibidores de apetite.

“A lei de iniciativa parlamentar, do deputado Felipe Bornier, sancionada sem vetos pelo Executivo, transformou em decisão política a autorização para produção e comercialização de determinado medicamento no país, o que deveria ser (mas não foi) uma decisão baseada na melhor evidência científica de que o medicamento em questão é eficaz e seguro para a indicação terapêutica proposta, o que requer uma análise essencialmente técnica.

Trata-se um caso único – sem precedentes no cenário internacional – um Parlamento assumir a função de órgão nacional de regulação de medicamentos. Não se tem notícia de que o Congresso Americano tenha deliberado sobre o registro de determinado medicamento e tenha revogado decisão da agência de drogas e alimentos (FDA). Não há registro de que o Parlamento Europeu tenha decidido sobre medicamentos específicos e desautorizado a Agência Europeia de Medicamentos. O mesmo pode ser dito dos parlamentos da Alemanha, França, Reino Unido, Japão, Austrália, e respectivas agências nacionais de regulação.

Infelizmente, o Congresso Brasileiro não só foi único no mundo a assumir o papel da Agência reguladora e ceder ao lobby de grupos de pressão política. Mas essa atitude é reincidente. No ano passado, contra a recomendação da Anvisa, o Congresso aprovou lei (também sancionada pela então presidente da república sem vetos) autorizando o uso e dispensação de medicamento (a “pílula fosfoetanolamina”) cujas alegadas propriedades anti-câncer não haviam sido estudadas e demonstradas por ensaios clínicos.    
É claro que o Congresso Nacional não está preparado e não tem a competência necessária para realizar essa análise técnica das evidências de segurança eficácia dos inibidores de apetite, e de fato não examinou os estudos e dossiês técnicos. E o que é mais grave, contrariou uma decisão do órgão (Anvisa) que tem as competências técnica e legal (Lei 9782/99 que cria a Anvisa) para decidir se este ou aquele medicamento é eficaz e seguro (Lei 6360/1976, Art 16, inciso II, “...através de comprovação científica...”) e que, em virtude deste fato, autorizar o acesso ao mercado consumidor, e determinar em que condições o medicamento pode ser dispensado e utilizado com segurança”.

Reações adversas e instabilidade política

Suely Rosenfeld, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Ensp/Fiocruz, chama atenção para três aspectos sobre a aprovação da Lei: as reações adversas dos inibidores de apetite, o modelo de sociedade presente no país e a quem interessa essa aprovação:

“A decisão de autorizar a comercialização desses medicamentos pelo Congresso Nacional é muito preocupante para os profissionais de saúde. Em primeiro lugar, é bom lembrar que a Anvisa, depois de muito debate, cancelou três dos quatro produtos liberados agora pela ineficácia e periculosidade. São ineficazes porque provocam uma perda de peso miúda e reversível; e perigosos porque podem provocar fibrilação atrial, resultar em hipertensão arterial, nefrite intersticial e alguns outros efeitos adversos graves e não graves. A Lei reverte uma decisão correta da Anvisa, de anos atrás, que obteve amplo apoio dos profissionais de saúde.

Em segundo lugar, essa atitude se insere em um modelo de sociedade que não queremos, ou seja, uma sociedade de Estado mínimo, na qual o mercado ‘resolve’ todos os problemas. Há pessoas que defendem abertamente essa linha, mas ela não é a da saúde pública. É preciso ter Estado, ter regulação e ter proteção por parte dos órgãos de governo para que a população possa se sentir segura em relação à tecnologia de da qual da qual é usuária.

Por último, uma pergunta fica no ar: vivenciamos semanas muito críticas na política geral do país. O questionamento é: até que ponto deputados e senadores lobistas, ou seja, que representam interessem de agentes econômicos - e são pagos para isso -, fazem pressão e chantagem para vender sua aprovação para manutenção do presidente golpista?”

Papel da Anvisa é constitucional

Vera Pepe, pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento e Saúde e do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária da Ensp/Fiocruz, lembra que não é a primeira vez que o Congresso Nacional delibera sobre questões exclusivas da saúde. Para ela, a Anvisa cumpre um papel, previsto na Constituição, de proteger a saúde da população. E a Lei contraria essa medida.

“Há um certo perigo quando o Legislativo delibera sobre questões de saúde. Ocorreu o mesmo com a fosfoetanolamina, quando o congresso aprovou uma Lei que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), suspendeu. O Supremo Tribunal Federal (STF) alegou, na ocasião, necessidade de comprovação cientifica e afirmou que existe uma atribuição legal da Anvisa para controle dos medicamentos no país.

Alguns autores consideram a aprovação da Lei 13.454 uma grave contrariedade a uma legitima decisão da Anvisa, que possui relatório técnico sobre o tema, recebeu orientação da Câmara Técnica de Medicamentos, promoveu consultas e audiências públicas. Portanto, a proibição de 2011 passou por processo democrático de consulta à sociedade. Se o legislativo passar a fazer aquilo que não é de sua competência, e pior, contrariando o que é de competência do órgão que, por lei, deveria fazer isso, cria-se um problema para democracia direta. Por isso, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) pensam em uma Adin.

O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária tem o dever constitucional de proteger a saúde da população. No Sistema Único de Saúde (SUS), essa ação cabe à Anvisa e, frente às evidencias cientificas que não corroboram a existência de uma boa relação benefício x risco desses medicamentos e à retirada desses medicamentos nos mercados de países europeus e dos EUA, ela tem a obrigação de proteger a saúde da população. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária cumpre o dever constitucional de proteção da saúde."

A segurança do paciente

Victor Grabois, do Centro Colaborador para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Proqualis), afirma que a liberação desses produtos afeta diretamente a segurança do paciente o Brasil.

"Esse assunto diz respeito à segurança do paciente. Não somente pela ausência de efetividade desses produtos, mas também pelos danos que provocam à saúde. Se sabemos, de antemão, da ineficácia de um medicamento, é claro que isso afeta a segurança do paciente. Várias dessas medicações contidas na lei não foram aprovadas ou tiveram sua venda proibida nos EUA e Europa.

Outro aspecto é que não diz respeito ao Congresso Nacional, e sim à Anvisa, definir sobre aquilo que deve ser introduzido no mercado. São aspectos de natureza técnica. É absurdo que algo que não possa ser usado os EUA e Europa sirva para a população brasileira. Somos cidadãos que merecem usar produtos danosos à saúde?”

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