Início do conteúdo

05/02/2010

'Regulação da assistência médica brasileira está fragilizada', afirma sanitarista

Fabíola Tavares


Frágil, incipiente, fragmentada e capturada. Esses são os adjetivos que definem a regulação da assistência médica-hospitar do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo o pesquisador Sidney Farias. Ele estudou os interesses estruturais existentes no doutorado em saúde pública da Fiocruz Pernambuco, instituição em que trabalha, e afirma que os hospitais filantrópicos e outras unidades ligadas ao setor complementar da saúde buscam serviços rentáveis, e não o que é necessário à população. Nesta entrevista ele fala também da atuação do governo, dos usuários e dos prestadores de serviço no Conselho Nacional de Saúde.


Como foi feito o estudo em que se basearam suas análises?



Sidney Farias:
Fizemos um estudo no campo da análise de políticas de saúde. Estudamos as portarias, toda a normatização, desde a criação do SUS até 2007, e os dados de internações hospitalares de 1990 a 2007. Fizemos uma análise das atas do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Comissão Intergestores Tripartite. Todo trabalho foi baseado na Teoria dos Interesses Estruturais de Robert Alford, de 1975.


O senhor analisou a regulação da assistência no SUS. Como vem se caracterizando essa regulação ao longo dos seus 20 anos de criação?



Farias:
O estudo observou principalmente que nesses 20 anos houve uma regulação fragilizada. Em vários aspectos ela se mostra incipiente mesmo nos dias de hoje. Grande parte das normatizações ocorreu em 2006, mas elas surgiram em 2006 com as Leis Orgânicas de Saúde. A primeira foi a 8.080, de 1990. Um das conclusões do estudo é que ela é uma regulação capturada porque os interesses particulares se sobrepõem ao interesse público.


E o que mais torna a regulação frágil e incipiente?



Farias: Ela é fragilizada porque os mecanismos, por exemplo, que definiam as necessidades dos serviços não estão sendo observados, como os critérios epidemiológicos e demográficos da LOS 8.080. Na verdade, a oferta de serviços, principalmente do setor privado ou filantrópico, é que está condicionando à “compra” de serviços do setor público.


Como essa regulação se refletiu na assistência médico-hospitalar?



Farias:
Esses prestadores (de serviço) migraram sua atenção, começaram a ofertar o que o SUS melhor pagava, em detrimento da necessidade da população, a exemplo do procedimento de neurologia e o de cardiologia que o sistema paga bem. O estudo também mostrou que é balela o  fato de a tabela do SUS estar congelada. Para procedimentos de média e alta complexidade não esteve homogeneamente. Observamos falas dos ministros da Saúde, desde a década de 1990, que favoreciam esse setor e que, na prática, eles captaram recursos. O setor privado, organizado, saiu do SUS para ofertar serviços ao setor suplementar, nos planos de saúde, ou à população que tem poder aquisitivo. E o setor privado, não muito organizado, qualificado, além dos (hospitais) filantrópicos, ofertou serviços migrando a sua forma de assistência na atenção hospitalar para procedimentos de maior complexidade. Na prática isso não melhorou a qualidade nem a oferta de serviços à população.


Com a oferta de serviços de maior rendimento, o que a população perdeu?



Farias:
Na medida em que as pessoas necessitam de procedimentos que não foram de interesse da oferta do setor complementar, a população sofre com as restrições. Vão esperar em filas demoradas ou se sujeitar a ir ao setor público sucateado, em função de não ser priorizado. A condução da gestão dos hospitais públicos, a forma de organização deles, não foi priorizada. A população é punida sob vários aspectos. Infelizmente, as pessoas não escolhem do que vão adoecer e quando adoecem de problemas que o sistema complementar não dispõe de atendimento elas acabam se sujeitando a passar muito tempo na fila dos hospitais públicos e, quando são atendidas, muitas vezes é de maneira precária. 


A pesquisa analisou a atuação da Comissão Intergestores Tripartite e do CNS, instâncias formadas pelo governo, representantes dos serviços e dos usuários. Como se deu a participação desses grupos na defesa do SUS?



Farias: Os governos funcionam sob determinados interesses. Eles dizem que apóiam o sistema público de saúde mas, na prática, a destinação de recursos ou as ações são controversas. Eles recriam dificuldades como prolongar a CPMF, uma coisa que era provisória e destinada à saúde, mas que não foi direcionada ao setor. Ainda hoje não temos garantia de fonte de recursos consistentes para a saúde. Os trabalhadores têm interesse em ter uma melhor condição de trabalho, criticam o governo, mas acabam se conformando. No caso dos médicos, existem interesses maiores, por melhor salário, em detrimento de um trabalho mais integral com outros profissionais. Entre os usuários, observamos que muitos se organizam por doenças específicas e a defesa do SUS fica precária.


Uma forma de posição radical e de poder dentro do Conselho Nacional de Saúde é o das entidades prestadoras de serviço. Matérias de interesse eram agilizadas, como o aumento da tabela do SUS e a definição de alguns critérios de interesses. Outras, como a regulação através de contrato de prestação de serviço, corriam lentamente para ser definidas. Quando não poderiam mais ser proteladas, sempre favoreciam os interesses das entidades. O CNS funciona de uma maneira capturada por esse setor de entidades prestadoras de serviços porque eles conseguem colocar, por exemplo, o relator nas comissões que estão analisando determinadas matérias. O voto da plenária às vezes é pelo voto do relator. Isso favorece seus interesses.        


O estudo evidencia que os interesses dominantes no setor público são marcados pela lógica de mercado?



Farias:
Parte dos hospitais filantrópicos ou do setor complementar olham o que dá mais dinheiro. Ofertam serviços de acordo com o que é mais rentável. A população não pode estar sujeita a esse tipo de lógica, daí a necessidade de intervenção do Estado, para definir o que é prioritário, o que pode ofertar pelos serviços próprios e o que precisa comprar porque não tem capacidade. Na prática, o Estado está comprando o que se oferta e não o que é necessário. Isso é muito grave, porque a lógica mercantil não pode se sobrepor ao interesse público.


Publicado em 5/2/2010.

Voltar ao topo Voltar