A manhã do segundo dia (2/7) do seminário Maconha: usos, políticas e interfaces com a saúde e direitos contou com uma mesa dedicada a Regulação da Maconha Medicinal. O debate promovido no evento, realizado pela Fiocruz e a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), levantou questões sobre a possibilidade de a Fundação contribuir ainda mais para estudos sobre tema. “Conversei com Francisco Inácio Bastos, coordenador do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas (PACD) da Fiocruz, e com Hayne Felipe, o diretor de Farmanguinhos [Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz], e verifiquei que não temos hoje na Fundação pesquisadores que estudem especificamente essa questão do uso medicinal da maconha. Mas este e outros debates no seminário apontam para a necessidade de estimularmos e estabelecermos o compromisso de criar uma rede conjunta com outras instituições para desenvolvimento desse trabalho”, destacou Valcler Rangel, vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz.
Mediada pela juíza Isabel Coelho, presidente do Fórum de Direito e Saúde da Emerj, a mesa contou com quatro palestras. A primeira foi conduzida por Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. "A Fiocruz estar envolvida nesse movimento com os juristas é fundamental para decidirmos o que pode acontecer com o Brasil”, comentou Carlini, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O palestrante apresentou um breve histórico da luta no país pelo uso medicinal da substância. “Até o século 19, a maconha era considerada um excelente medicamento. Foi em 1961, durante uma assembleia da ONU [Organização das Nações Unidas], que a maconha ficou oficialmente conhecida como perigosa e entrou para a lista de substâncias proibidas, devido a uma colocação equivocada de um brasileiro. Até hoje estamos tentando fazer com que ela deixe de ser satanizada”, explicou.
Carlini destacou ainda que tem sido comuns afirmações ideológicas na imprensa, que não contribuem para um debate sério sobre a questão do uso medicinal, por parte de representantes de instituições importantes no cenário nacional. “Nós temos aqui no Brasil conhecimento científico para fazer declarações mais fortes e fundamentadas sobre o uso medicinal da maconha. Não estamos fazendo e nem estamos usando o poder da população para fazer o necessário. A ciência brasileira já fez muita coisa. Para que serve nosso trabalho científico? Para nada?”, questionou Carlini.
A segunda palestra foi feita por João Lacerda Menezes, doutor em Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O pesquisador abordou as consequências para o uso medicinal da proibição sem uma maior reflexão. “A proibição é alardeada como método de prevenção, mas não temos e nunca foi feito um estudo de eficácia dessa proibição”, afirmou. “O que eu aprendi com meus amigos ativistas é o senso de urgência: temos pressa. Essa proibição é absurda e tenta acabar com um uso tradicional de milhares de anos da maconha como medicamento”.
Menezes também falou sobre as diferenças entre a prática médica e o autocuidado, que influencia diretamente no uso da maconha como fitoterápico ou como planta medicinal. “Algumas pessoas são capazes de perceber aquilo que faz bem para elas a partir de um autocuidado. A planta medicinal é produzida pela natureza; seu uso deve ser livre, é um direito”, esclareceu. “No caso dos fitoterápicos ou medicamentos, ainda é necessário um acesso seguro para o uso da substância, além da fiscalização da pesquisa, da produção e do comércio”. Mas ele ressaltou: “Já existem inúmeros estudos que sustentam o uso da substância como medicamento”.
Sidarta Ribeiro, neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), abriu a terceira palestra da manhã destacando que ainda existem muitos mitos sobre o uso da maconha e seus efeitos no cérebro. “É preciso dizer que o uso medicinal é extremamente seguro pois os receptores da substância no cérebro estão localizados no cerebelo. Se aumentarmos a dose ou frequência de uso, o máximo que pode ocorrer é uma sedação prolongada”, explicou Ribeiro. Ele também lembrou que estudos tem indicado que o uso da substância pode ser benéfico mais do que apenas para o combate de sintomas, como dores crônicas. “A maconha tem seu uso reconhecido para o combate dos sintomas do câncer, mas estudos têm revelado que ela pode auxiliar na redução de tumores quando associada a irradiação: a mistura é mais eficaz do que quando os métodos são separados”, apontou. “É um dado a ser tratado com seriedade”.
O pesquisador ainda mencionou que o proibicionismo tem gerado problemas no âmbito da pesquisa. “No Brasil, existem casos de estudos que não podem ser conduzidos por pesquisadores porque os próprios pares recriminam o uso de maconha de forma experimental”, alertou Ribeiro. “Por causa das loucuras do proibicionismo, o pensador está cerceado do direito de saber”. O neurocientista também reforçou a necessidade do interromper esse processo e investir em mais estudos sobre a questão. “Existe uma urgência porque as pessoas estão sofrendo”, ressaltou. “Embora a gente esteja aqui debatendo se deve ou não legalizar o uso medicinal, sabemos que vai ser legalizado. Vamos ganhar essa briga com racionalidade e compaixão pelo ser humano”.
Encerrando a mesa da manhã de quinta, Ricardo Ferreira, diretor da Associação Brasileira para Cannabis (Abracannabis), falou sobre sua experiência com o uso da maconha como medicamento em pacientes com dores crônicas. Representando Eduardo Faverett, do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, que não pode comparecer ao evento, o médico assistencialista contou que, em janeiro deste ano, recebeu permissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para usar o canabidiol em 73 pacientes que não tem apresentado melhoras com outros medicamentos ou procedimentos cirúrgicos.
“Vejo há anos pacientes que se submetem ao uso clandestino da substância para manipular a doença e ter melhores resultados contra suas dores. Se você abre o jogo com eles sobre a possibilidade de uso, eles admitem. Mas isso ainda não pode ser registrado como parte de pesquisas por motivos óbvios”, explicou. “Além disso, a cannabis a que eles têm acesso no mercado não é manipulada para o uso medicinal. O uso do remédio manipulado faz a diferença em casos mais graves”. Ferreira ainda comentou que mesmo os pacientes que estão recebendo a terapia com o medicamento têm grandes dificuldades, sobretudo, para ter acesso à substância. “Eles passam por muita burocracia para a importação e o custo é bastante elevado”, afirmou. “É preciso baratear o custo. A produção nacional sem fins lucrativos para popularizar o uso do medicamento é muito importante”.