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20/08/2005

Sorriso indígena comprometido

Sarita Coelho


A idéia usual de que os índios não apresentam cáries e outros problemas dentários por conta de uma alimentação baseada na caça, na pesca, em frutas e em raízes está com os dias contados. Uma tese de doutorado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) revelou que a introdução de alimentos industrializados como refrigerantes, biscoitos, macarrão, farinha de trigo, suco em pó, arroz e salgadinhos provocou um aumento na prevalência de cáries entre a população indígena. Escrito na forma de artigos científicos, o estudo apresenta dados epidemiológicos do grupo indígena xavante e propõe medidas preventivas para controlar os danos à saúde bucal.

"Muitos habitantes de terras indígenas passaram a ter cargos assalariados, o que possibilitou acesso ao dinheiro e ao consumo. As mudanças na dieta e nos hábitos dos xavantes trouxeram danos à saúde bucal e problemas como obesidade, desnutrição, hipertensão e diabetes. No entanto, estas transformações variam muito de grupo para grupo, de modo que não se pode generalizar esses resultados para todos os índios do Brasil", explica o dentista Rui Arantes, autor da tese.


Um dos maiores grupos indígenas do Brasil, os xavantes têm uma população constituída por aproximadamente 11 mil índios, distribuídos em sete territórios localizados na Amazônia Legal no estado do Mato Grosso. O pesquisador coletou dados da saúde bucal nas terras indígenas de Pimentel Barbosa, Areões, Sangradouro e Marechal Rondon.


A análise de dados disponíveis em 1980 revelou que os xavantes tinham uma saúde bucal melhor do que a da população nacional no início do contato com o homem branco. De lá para cá, índios e não índios tiveram tendências opostas. Campanhas preventivas de fluoretação das águas e do uso de flúor nas pastas de dente ajudaram a reverter essa situação entre a população não indígena. Dados da tese mostram que o número médio de dentes permanentes cariados, perdidos ou obturados por criança de 12 anos em 2004 era de 4,10 entre os xavantes e de 2,78 entre a população brasileira não indígena. "Esta é uma situação de desigualdade, os índios não têm acesso às medidas preventivas, o que caracteriza uma exclusão social. A cárie está mutilando estas populações", diz o especialista.


No entanto, o pesquisador adverte que a idéia de que a mudança de hábitos indígenas levou o problema das cáries para as aldeias não se aplica para todas as comunidades. "Há um grupo no Mato Grosso chamado Enawenê-Nawê que já apresentava problemas de cáries antes do contato com os não índios em função da alimentação rica em mingau de milho, banana, mel e peixe, que é um tipo de dieta que não promove a autolimpeza dos dentes", explica.


O estudo também mostrou que dentro de um mesmo grupo indígena existem diferenças marcantes. A comunidade de Pimentel Barbosa apresenta um quadro de saúde bucal melhor do que o diagnosticado nas outras terras indígenas. O grupo conseguiu preservar muitos de seus hábitos tradicionais e possui um território maior, o que possibilita uma diversidade de caça, de pesca e de outros alimentos naturais. Com 135 habitantes, a aldeia Batovi, no território de Marechal Rondon, liderou a prevalência de cáries com uma média de 105,25 superfícies cariadas, perdidas ou obturadas. Em seguida vieram as terras indígenas de Sangradouro, com média de 90,45; Areões, com 81,27; e Pimentel Barbosa, com média de 47,39. "Os resultados variam mesmo quando se leva em conta populações indígenas de etnias iguais", diz Arantes.


De acordo com o pesquisador, por questões culturais, os índios de Pimentel Barbosa já partiram de uma situação melhor no que diz respeito à saúde bucal. Mas um programa preventivo desenvolvido na comunidade como parte da tese de doutorado garantiu o acesso dos índios ao creme dental com flúor - de forma geral eles não costumavam escovar os dentes. O dentista ainda destaca outras medidas de prevenção, como a aplicação de flúor e a criação de oficinas e materiais educativos.


"Os programas de atenção à saúde bucal da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] e do Dsai [Departamento de Saúde Indígena] quase não contemplam as questões da prevenção e da educação. Os dentistas chegam com um enfoque muito curativo", diz Arantes. "É preciso ter uma visão de saúde pública: ao se pensar no coletivo você percebe a importância da prevenção. A assistência sozinha não vai mudar o aspecto epidemiológico na comunidade. A prevenção é um trabalho de longo prazo".


Apesar de ter terminado o doutorado na Fiocruz, o pesquisador dará continuidade ao projeto de prevenção de problemas dentários nas comunidades indígenas graças ao apoio de uma empresa privada. Os trabalhos preventivos continuam a acontecendo nas quatro terras xavantes estudadas e nas áreas do médio e do baixo Xingu, no Parque Indígena do Xingu, região que conta com a parceria de especialistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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