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31/08/2011

Sujeitos em sofrimento psíquico são protagonistas de livro

Fernanda Marques


Quando se olha para o paciente psiquiátrico somente dentro dos muros do hospital ou de outro serviço de saúde, a visão que se tem é parcial, fragmentada. Aquele paciente, ou melhor, aquela pessoa em sofrimento psíquico tem múltiplas vivências. Mais: é um sujeito com capacidade para erigir suas experiências na amplitude da cidade – e não apenas num espaço controlado e disciplinado como o dos serviços psiquiátricos. Olhar para a pessoa em sofrimento psíquico e ver nela não o doente, mas o ser com liberdade e criatividade: este é o desafio que propõe a enfermeira Bernadete Maria Dalmolin no livro Esperança Equilibrista, que acaba de ganhar sua primeira reimpressão. O título, que pertence ao catálogo da Editora Fiocruz desde 2006, é fruto de uma pesquisa de campo desenvolvida pela autora – ela mergulhou no universo desses sujeitos para compreender suas relações cotidianas. 



O trabalho de Bernadete é um estudo científico e, ao mesmo tempo, um relato emocionante. Desde a aproximação da pesquisadora com as pessoas em sofrimento psíquico – os protagonistas do livro – até o desenrolar de sucessivos encontros, tudo foi feito com extrema sensibilidade. “Como desenvolver um estudo que pretenda trabalhar as relações interpessoais quando essas relações, geralmente, são marcadas mais pela violência do que pela argumentação, mais pelo silêncio do que pela comunicação, mais pela postura arredia do que pela possibilidade de exercer trocas? Foi preciso, então, tomar algumas precauções para não invadir suas vidas, nem criar constrangimentos que pudessem piorar suas condições de saúde, já tão fragilizadas”, conta a autora.


 Moradores de um mesmo bairro de uma cidade gaúcha de médio porte, os sujeitos da pesquisa, cujas identidades foram preservadas, são tratados no livro por nomes de pássaros – João-de-Barro, Beija-Flor, Pomba-Rola, Sabiá e Bem-Te-Vi. Desconfiados num primeiro momento, temendo que Bernadete fosse mandá-los de volta para o hospital ou para o Centro de Atenção Psicossocial (CAP), os sujeitos logo se entusiasmaram com o contato da pesquisadora, que também conversou com os familiares. Os encontros aconteciam na casa dos participantes ou mesmo pelas ruas do bairro, como no caso de Beija-Flor, um ‘andarilho’ de cerca de 40 anos, que sofria convulsões desde os seis meses de idade e há 14 anos era frequentemente internado. Pomba-Rola, por sua vez, não saía de casa – numa situação de isolamento social e extrema dependência aos 37 anos de idade. Antes de apresentar os primeiros problemas psíquicos, aos 22 anos, trabalhara como operadora de caixa no maior supermercado do bairro e tivera um namorado.

 

 As crises – descritas como episódios de explosão e perda do controle – também causaram sérias transformações para João-de-Barro, como a separação da mulher e, consequetemente, do filho e o afastamento do trabalho como auxiliar de pedreiro. “Com o estreitamento das relações, percebi que ele tinha um relativo controle sobre si e sobre suas diferentes situações de vida e que os episódios de agressividade, além de ocorrerem em momentos de maior fragilidade de sua saúde, não aconteciam em qualquer circunstância, mas, muito mais, pela falta de um lugar de abertura para a subjetivação”, conta Bernadete. “Construir essa relação com os protagonistas fez-me perceber não apenas sua positividade no processo do estudo, mas a importância de interações propícias à escuta psicológica”, completa.


 Foi com esse espírito – disposta a ouvir o que os sujeitos em sofrimento psíquico tinham a dizer – que a autora construiu a pesquisa e o livro que dela se originou. Com experiência em serviços de saúde mental, Bernadete se revela atenta às dificuldades e aos desafios enfrentados por esses serviços, marcados, muitas vezes, pela ênfase na medicalização dos sintomas, por relações de dominação ou mesmo por mecanismos de contenção física. Sem negar a necessidade de serviços de saúde mental, a autora destaca as contradições do atual modelo de atenção, onde, apesar das mudanças e dos avanços, o sujeito e sua subjetividade são ainda, em geral, desconsiderados. Dessa forma, Esperança Equilibrista traz importante contribuição “sobre os sofredores psíquicos e de como eles, em suas criatividades humanas, nos ajudam a perceber que as instituições especializadas na atenção psicossocial estão longe de compreender as necessidades e o sentido de liberdade como central aos seres humanos”, avalia a professora Maria da Penha Costa Vasconcellos, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que assina o prefácio do livro.



Publicado em 29/08/2011.

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