Início do conteúdo

19/02/2010

'Universalizar a seguridade social é questão político-ideológica'

Bruno Dominguez


Este ano o Brasil sediará a 1ª Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, em Brasília. Integrante da comissão organizadora, na qual representa o Movimento de Saúde dos Povos, o epidemiologista Armando de Negri diz em entrevista à revista Radis que o objetivo do evento é ampliar a discussão sobre o universalismo, reforçando a necessidade de um sistema de seguridade social. Delegados de 80 países discutirão extensa agenda, que inclui políticas de proteção relacionadas a trabalho, previdência social, assistência social e saúde. Os ministérios da Saúde, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Previdência Social dividem a organização, que ocorrerá em dezembro.


 Negri: O Brasil se cacifou e criou condições de respeitabilidade pela forma como vem trabalhando as questões de ordem econômica, política e social

Negri: O Brasil se cacifou e criou condições de respeitabilidade pela forma como vem trabalhando as questões de ordem econômica, política e social


Por que o Brasil convocou essa conferência mundial?


Armando de Negri: Consideramos que a hegemonia do neoliberalismo nas últimas décadas eliminou o debate sobre o universalismo. A palavra de ordem era focalização: dar respostas aos mais excluídos, sempre numa tentativa de reduzir o alcance das políticas sociais. Não se falava mais na noção de direito. Agora, temos um momento histórico muito oportuno. A crise trouxe a necessidade de um papel diferente do Estado, de um outro tipo de proteção das populações. Sinalizou que as políticas econômicas devem proporcionar o avanço das políticas sociais, em vez de se submeter a política social à possibilidade econômica. É hora de instalar no cenário internacional uma agenda para que o universalismo ganhe força, reivindicando para isso o conceito dos direitos humanos como sistema.


Como foi o processo de organização?


Negri: Começamos a pensar o direito à saúde em 2002, no 1º Fórum Internacional em Defesa da Saúde dos Povos, antecedendo o Fórum Social Mundial. Em 2005, o evento foi transformado no Fórum Social Mundial da Saúde; em 2007, se incorporou ao Fórum Social Mundial. Mas o FSM é um espaço da sociedade civil em que os governos são convidados. Para convocar uma reunião em que governos estivessem em pé de igualdade com a sociedade, optamos pelo formato de conferência. Em geral, os espaços de diálogo internacionais são dos governos com participação periférica da sociedade civil ou da sociedade civil com participação secundária dos governos. Notando que temos um certo número de governos com apostas universalistas, concluímos que seria importante uma troca entre eles.


De que modo se dará a participação?


Negri: Serão 1 mil delegados de 80 países. As delegações são compostas por segmento governo e segmento não-governo, inscritos separadamente. Acreditamos que, assim, induziremos a discussão sobre o tema já na escolha dos delegados. Para equilibrar a participação internacional, adotamos critério demográfico, dando mais peso aos países menores. A intenção é que os debates repercutam na ação dos governos e também na dos movimentos sociais.


Como ocorrerão os debates?


Negri: No primeiro dia, abriremos espaço para que delegados encontrem seus pares de outros países — por exemplo, em reuniões de parlamentares, de lideranças camponesas. À noite, haverá a abertura oficial. Nos três dias seguintes, trataremos de cada um dos três blocos temáticos em painéis com palestrantes convidados, mesas de trabalho sobre os subeixos e encontro por regiões.


Do que tratam os blocos temáticos?


Negri: O primeiro trata das razões e oportunidades para a construção dos sistemas universais em seus imperativos democráticos e éticos. Entendemos que, hoje, o principal obstáculo para se terem sistemas universais de seguridade social é de ordem político-ideológica. O próprio conceito de universalização é objeto de disputa: para alguns significa todos incluídos num determinado sistema, mas com acesso diferenciado aos benefícios; para nós quer dizer integralidade e equidade. Ou seja, primeiro queremos estruturar a compreensão do universalismo sobre o qual estamos falando. Depois, perceber como ele se expressa no mundo e apontar quais políticas o garantem.


E os demais blocos?


Negri: O segundo trata dos desafios para alcançar a universalização da seguridade social, como a relação público-privado e o financiamento. Um dos principais argumentos contra a universalização é o de que não é factível economicamente. Queremos desmontar esse argumento. O terceiro bloco é dedicado aos caminhos políticos para a construção dos sistemas universais. Vamos debater o papel dos governos e dos movimentos sociais. No último dia, haverá plenárias regionais, para fecharmos uma ata de recomendações, e plenária geral, para que se aprove o documento final. A intenção não é votar propostas, mas ir construindo um conjunto de consensos. O que não for consenso fica documentado como perspectivas a serem amadurecidas.


Como o Brasil se insere no debate?


Negri: O Brasil é uma referência importante por apresentar alternativas, apesar do choque entre política social mais ambiciosa — embora não transformadora — e política macroeconômica bastante vinculada ao neoliberalismo. O país se cacifou e criou condições de respeitabilidade pela forma como vem trabalhando as questões de ordem econômica, política e social. Hoje, é um porta-voz autorizado de algumas alternativas. Tem argumentos, razões e prestígio para convocar uma conferência desse tipo.


Publicado em 19/2/2010 (e originalmente publicado na revista Radis nº 90).

Voltar ao topo Voltar