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09/08/2006

Anvisa recebe sugestões sobre propaganda de medicamentos

Ricardo Valverde


A Agência Fiocruz de Notícias (AFN) conversou com o jornalista Álvaro Nascimento sobre o debate travado no âmbito da consulta pública 84/2005 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que visa alterar o modelo regulador da propaganda de medicamentos no Brasil. A consulta pública receberá sugestões de toda a sociedade até 18 de março. Na entrevista a seguir, Nascimento discorre sobre os principais problemas do atual modelo regulador (a RDC 102/2000 da Anvisa); analisa propostas de alteração que estão em debate; trata de alguns números das intoxicações humanas causadas pelo uso incorreto, inconsciente e abusivo de medicamentos; compara a legislação brasileira com a de outros países; e explica a posição dos que defendem a suspensão da propaganda de medicamentos para o grande público - ou a sua aprovação prévia - no futuro modelo regulador.








Peter Ilicciev


Nascimento trabalha no Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fiocruz, é mestre em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Uerj e representante da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) na Câmara Setorial de Propaganda da Anvisa. Em 2005 ele lançou o livro "Ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado". Isto é regulação?, fruto de sua dissertação de mestrado.


Agência Fiocruz de Notícias: A Anvisa promoveu a consulta pública 84/2005, com o objetivo de alterar o atual modelo regulador da propaganda de medicamentos no Brasil. Quais os maiores problemas hoje verificados no setor?


Álvaro Nascimento: Além de um conjunto de leis, decretos e portarias que passaram a vigorar nos últimos 30 anos com o objetivo de estabelecer limites à propaganda abusiva de medicamentos, no ano 2000 a Anvisa - após consulta pública - editou a RDC 102, que pode ser considerada o modelo regulador mais recente. Entretanto, passados cinco anos, existem pelo menos quatro grandes lacunas que a tornam um instrumento frágil quando se busca proteger o cidadão. A primeira grande fragilidade está na própria opção de modelo regulador, que não difere do parâmetro adotado no Brasil para regular outras áreas. É uma regulação sempre feita a posteriori, isto é, a Agência só atua após a infração ter sido cometida, no caso a veiculação da peça publicitária irregular, quando a população já foi exposta a risco sanitário. Entre a colocação do anúncio no mercado, a identificação da irregularidade e a tomada de medidas no âmbito do modelo regulador, transcorre um período de tempo de mais de um mês, o que faz com que a ação reguladora se realize quando o mal já está feito. Para se ter uma idéia do que isso significa em termos de risco, o artigo mais infringido nas propagandas feitas hoje é o que obriga a citação das contra-indicações e dos eventuais riscos que aquele determinado produto oferece à população. O segundo problema está no fato das multas efetivamente arrecadadas pela Anvisa, quando ocorrem as irregularidades, terem um valor irrisório frente ao total de gastos com propaganda realizados no setor. Em um ano e meio de regulação, a Anvisa recolheu, em multas, valores equivalentes a apenas dois anúncios no horário nobre da TV, ou cerca de 0,1% do total de gastos em publicidade de medicamentos no mesmo período, apesar da própria Agência admitir que é grande o número de irregularidades. A terceira fragilidade está no fato de que não há qualquer instrumento que impeça que mesmo os ínfimos valores das multas aplicadas sejam transferidos pela indústria e pelo comércio varejista para o preço dos medicamentos - o que já é feito com o conjunto dos gastos com publicidade de seus produtos-, sendo pagos pelo próprio consumidor. Finalmente, o quarto problema: ao estampar a frase "AO PERSISTIREM OS SINTOMAS O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO" ao final de cada propaganda, a pretendida regulação na verdade estimula o consumo irracional, incorreto ou inconsciente pelo menos do primeiro medicamento, quando caberia ao Estado cumprir justamente a tarefa oposta, de acordo com o preconizado pela Política Nacional de Medicamentos, educando a população no sentido de "ANTES DE CONSUMIR QUALQUER MEDICAMENTO, CONSULTAR UM MÉDICO". Na prática, a mensagem final da atual regulação deseduca e presta inestimável papel à indústria e ao comércio, e não à sociedade a quem deveria proteger. Levados em consideração estes quatro aspectos, não é exagero afirmar que o atual modelo regulador beneficia o infrator.


AFN: Como analisa as propostas feitas pela própria Anvisa na consulta pública 84/2005 para alterar o modelo regulador?


Nascimento: Achei as propostas de mudança insuficientes e limitadas para dar conta da magnitude das irregularidades hoje cometidas. Para se ter uma idéia, nenhuma destas quatro fragilidades que aponto são superadas no texto colocado pela Anvisa em consulta pública, na medida em que a regulação, de acordo com o novo texto, permanecerá sendo feita a posteriori, as multas permanecerão ínfimas, nada impede que elas sejam repassadas aos custos e pagas pelo consumidor de medicamentos, além de permanecer a frase final, estimulando o primeiro consumo. E há pontos do novo modelo proposto absolutamente inaceitáveis, como o Artigo 15, que permite a entrega de brindes aos profissionais de saúde que fazem prescrição ou dispensa de produtos. Há, ainda, os artigos que serão sabidamente desrespeitados, como o 27, que determina que a publicidade no rádio e TV deve deixar claras quais são "as indicações; as contra-indicações referentes à faixa etária, condições fisiológicas e disfunções orgânicas; cuidados e advertências, por ordem de freqüência e gravidade (contemplando as reações adversas, interações com medicamentos, alimentos e álcool)". Alguém acredita que a indústria e as agências de publicidade gastarão vários minutos para fazer isso de forma correta? Não farão como não fizeram nos últimos 30 anos de tentativas de regulação, pois isso entra em choque com o objetivo maior da publicidade, que é a divulgação ampla dos benefícios do produto.


AFN: Diante disso, o que está sendo feito?


Nascimento: Em novembro do ano passado, semanas antes de a consulta pública ser posta na internet pela Anvisa, a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz e o Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro realizaram em conjunto, durante dois dias, uma oficina de trabalho para debater a regulação da propaganda de medicamentos, com vistas a elaborar uma nova proposta de regulação. Resumidamente, o evento - que contou com palestras, mesas-redondas e grupos de trabalho - concluiu que há uma grande necessidade de se estabelecer novos, efetivos e mais rigorosos mecanismos de controle da propaganda de medicamentos no Brasil.


AFN: Quais as principais propostas que surgiram na oficina e como elas poderão ser incorporadas ao processo de consulta pública?


Nascimento: A proposta mais importante - e ao mesmo tempo a mais polêmica - propugna que a Anvisa deve, por intermédio de dispositivo legal adequado, garantir a proibição da propaganda de medicamentos para o grande público em todos os meios de comunicação. Esta proposta já foi aprovada na 1ª Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, realizada em Brasília de 26 a 30 de novembro de 2001. O medicamento não deve continuar a ser tratado como um produto qualquer, através da publicidade comercial para grande público, tendo em vista suas características especiais, por ser um dos principais meios terapêuticos, mas ao mesmo tempo incorporar enormes riscos, dependendo da forma como seja utilizado, mesmo no caso dos produtos de venda livre. A análise do conteúdo, a forma de apresentação das mensagens e as imagens da maioria das peças publicitárias mostram uma tendência a superestimar as qualidades dos produtos e omitir seus aspectos negativos e perigosos. As propagandas enaltecem exclusivamente os benefícios dos medicamentos, mas exageram suas qualidades, às vezes duvidosas, e o colocam numa posição central na terapêutica, sem apresentar argumentos com base em dados científicos considerados válidos. E a ausência das contra-indicações nas propagandas só piora este quadro. A segunda proposta, caso a proibição seja rechaçada pela Anvisa, defende o estabelecimento de mecanismos que permitam que o Estado brasileiro passe a aprovar previamente as peças de propaganda, como forma de proteger a população dos anúncios enganadores e prevenir o uso irracional de medicamentos. Caso as duas propostas sejam rechaçadas, a oficina propôs que a Anvisa estabeleça, então, que a propaganda de medicamentos para o grande público só seja realizada entre meia noite e seis da manhã. Outra proposta determina que só poderão ser feitas propagandas de produtos cuja eficácia e segurança estejam comprovadas cientificamente com a melhor relação benefício-risco, com base em periódicos científicos classificados como tipo A no Sistema Qualis da Capes, exigência que deve ser feita já no processo de registro do produto. Na propaganda para prescritores, não poderão ser utilizadas referências bibliográficas que não cumpram este critério e a referência deve estar traduzida para o português e anexada à peça publicitária distribuída ao prescritor. Há outras propostas, num total de 19, e a contribuição da oficina à consulta pública 84 já foi subscrita por mais de 80 especialistas de todo país e mais de dez instituições, como o Instituto de Defesa do Consumidor, a Sobravime, a Accion Internacional por la Salud, a Abrasco, o CRF-RJ e outras. A íntegra da contribuição pode ser acessada na página eletrônica da Ensp (www.ensp.fiocruz.br).


AFN: Você desenvolveu algum estudo mais aprofundado sobre o conteúdo da propaganda de medicamentos?


Nascimento: Sou jornalista de formação e há 17 anos trabalho na área da informação e comunicação em saúde. Sempre me incomodou a forma e o conteúdo dos anúncios de medicamentos, que além de prometerem resultados questionáveis acabam estimulando o uso irracional de um produto que, além de caro, é perigoso para a saúde, dependendo de quem o tome e em que circunstâncias. Ao terminar as disciplinas do mestrado no Instituto de Medicina Social da Uerj em 2003, elaborei minha dissertação verificando, dois anos depois da implantação da RDC 102, o seu cumprimento. Infelizmente, o resultado de minha pesquisa confirmou que a legislação continua incapaz de evitar os abusos. Analisei 100 peças publicitárias recolhidas nas principais redes de TV, rádio e jornais, concluindo que todas feriam a legislação em pelo menos um artigo. Mas havia anúncios que feriam a RDC 102 em até dez artigos.


AFN: É possível quantificar o prejuízo que a propaganda abusiva traz à população?


Nascimento: Para se ter idéia da magnitude deste problema, de 1995 a 2003, isto é, por nove anos seguidos, o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox) da Fiocruz identificou nos medicamentos o principal agente de intoxicação humana registrado no SUS. Em 2003, foram registrados um total de 13.859 casos, já excluindo as tentativas de suicídio, quando o próprio indivíduo decide usar o medicamento como instrumento de agravo à sua saúde. Pois mesmo excluindo os suicídios, tivemos 38 casos por dia registrados, cerca de um caso a cada 40 minutos. Se levarmos em conta a subnotificação e o fato de que as pessoas só procuram ajuda médica nos casos mais graves de intoxicação, concluímos que este número pode ser ainda maior. Claro que a propaganda abusiva não é a única responsável pelas intoxicações por medicamentos, mas sem dúvida ela é parte importante do problema. Em boa parte dos casos, a propaganda voltada para o grande público se utiliza de apresentadores de programas de rádio e televisão, artistas e atletas famosos, como forma de induzir o consumo de determinado medicamento, seja pelo padrão de beleza, pela confiabilidade ou pelo desempenho físico demonstrado por eles. Os argumentos mais usados na propaganda de medicamentos ressaltam, principalmente, a eficácia, a segurança, o bem-estar, a comodidade na administração, a rapidez da ação do medicamento, além do bom humor, da energia, do prazer e da felicidade que eles trazem, minimizando ao máximo, ou simplesmente excluindo, qualquer referência a riscos, possíveis interações medicamentosas ou contra-indicações. Estas, quando aparecem, em geral são exibidas em letras minúsculas, que surgem muito rapidamente, na maioria das vezes frisando apenas que aquele determinado medicamento "é contra-indicado para as pessoas com hipersensibilidade aos componentes da fórmula", evitando-se determinar quais os grupos populacionais que não devem tomar o medicamento.


AFN: Como a propaganda de medicamentos é tratada internacionalmente?


Nascimento: Uma comparação entre algumas legislações internacionais que tratam do tema aponta que vários países mais avançados já optaram pela análise prévia das peças publicitárias antes delas poderem ser veiculadas. A própria Organização Mundial de Saúde elaborou um documento denominado "Critérios éticos para a propaganda de medicamentos". Portanto, esse é um problema mundial e vários países já estão restringindo a propaganda como forma de proteger a saúde pública.


AFN: Vislumbra algum tipo de modelo de disseminação de informação sobre medicamento que substitua a propaganda?


Nascimento: A propaganda de medicamentos hoje é basicamente feita pela indústria farmacêutica, por meio de agências de publicidade, grande mídia e comércio varejista, isto é, por entes com interesses econômicos diretamente ligados ao aumento do consumo dos produtos farmacêuticos, com todos os problemas que isso traz. Este sistema pode vir a ser substituído, por exemplo, por um outro voltado exclusivamente para os prescritores, onde se assegure a isenção dos dados frente aos interesses comerciais envolvidos. Este sistema poderia ser alimentado por informações estritamente científicas, recolhidas por universidades e instituições de pesquisa de referência.


AFN: Mas a proposta de proibição ou mesmo autorização prévia da propaganda para grande público não significaria censura?


Nascimento: Já disseram isso, mais de uma vez. Representantes das agências de publicidade chegam a afirmar que essa proposta significaria um retrocesso aos tempos da ditadura, uma censura aos meios de comunicação. Vale lembrar que, recentemente, a própria União Européia recomendou a seus Estados-membros o estabelecimento de meios adequados para o controle da propaganda de medicamentos, sendo que estes meios podem se basear inclusive no controle prévio. E pelo que consta não há nenhuma ditadura entre os países que compõem a União Européia. Hoje já fazem controle prévio da publicidade países como Espanha, França, Reino Unido, Austrália, Suíça e outros. Pode-se ter vários questionamentos em relação às formas de representação nestas sociedades, mas afirmar que lá existe ditadura beira o ridículo. No caso do Brasil, se é verdade que a nossa Constituição diz, em seu artigo 220, que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição", também é verdade que, nos parágrafos 3 e 4 do mesmo artigo, está explícito que "compete à Lei Federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão (...) bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente" e que "a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais". Portanto, o debate sobre esta questão está devidamente respaldado na nossa Constituição e não tem nada a ver com censura à liberdade de expressão, mas sim com a criação de instrumentos de proteção da sociedade contra os abusos do poder econômico, instrumentos que existem em qualquer sociedade democrática.


AFN: Acredita que com um maior controle da propaganda haverá uma nova realidade em relação à política de uso correto do medicamento?


Nascimento: Tenho participado de debates sobre este tema em congressos como o Riopharma e em outros eventos ligados à assistência farmacêutica. E cada vez fico mais convencido de que se faz necessário o que tenho denominado de um amplo choque civilizatório nesta delicada e socialmente estratégica área do medicamento e da assistência farmacêutica no Brasil. Acredito que não será apenas uma medida isolada, como um maior controle da publicidade de medicamentos, que trará automaticamente uma nova realidade no que diz respeito ao uso correto, racional e consciente do medicamento. Outras iniciativas são também essenciais, entre elas a necessidade de uma revisão do número de registros; um maior estímulo ao uso e produção de genéricos; uma revisão na Lei de Patentes; a garantia de acesso, através do sistema público, aos medicamentos essenciais; mais investimento em pesquisa e desenvolvimento e outras ações que não são nenhuma novidade, pois estão contempladas na Política Nacional de Medicamentos aprovada há sete anos, mas infelizmente não implementada até hoje. Um maior controle da propaganda, portanto, não resolverá tudo, mas não há dúvida de que é necessário, também nesta área, um choque civilizatório que traga mais dignidade e respeito ao cidadão.


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