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17/08/2012

As mulheres e o direito de escolha do parto

Informe Ensp


No mês de julho, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) proibiu médicos de atuarem em partos domiciliares, além de coibir a participação de obstetrizes, parteiras e doulas (profissionais que dão apoio físico e emocional à mulher em trabalho de parto) em partos hospitalares. A proibição, segundo especialistas, foi um movimento retrógrado, que vai de encontro aos preceitos básicos da humanização do parto e do nascimento. Gerada a crise, o Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ) afirmou que tal determinação não impediria que os partos em casa cessassem, uma vez que o enfermeiro obstetra é amparado por lei a realizar o parto, mas que a equipe de apoio ficaria desfalcada, pois faltaria um integrante – seja médico, enfermeiro, doula ou psicólogo –, prejudicando o parto humanizado. Em contrapartida, é importante ressaltar que o Brasil é o país campeão na realização de partos de cesariana, com cerca de 90% dos partos realizados na rede privada nesta modalidade.

 

Instituições médicas, academia, organizações não governamentais, grupos de direitos humanos entraram no debate em defesa das mulheres, até que a 2ª Vara Civil Pública do Rio de Janeiro revogou a decisão. O Cremerj lamenta o fato e afirma que recorrerá da determinação judicial. Mas será o parto domiciliar seguro? Qualquer mulher pode optar por este tipo de parto? Por que uma mulher pode escolher fazer uma intervenção cirúrgica (cesariana), mas não ter seu filho em casa de forma humanizada? As questões foram surgindo e o Informe Ensp ouviu as coordenadoras do Grupo de pesquisa Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Maria do Carmo Leal e Silvana Granado, e o integrante Marcos Augusto Dias, pesquisador do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), para esclarecer melhor essas questões.

 

Vamos começar com a principal questão, que é dúvida de muitas mulheres. O parto em casa é seguro?

 

Marcos Dias:
Nós devemos compreender melhor a situação. Usando como exemplo o sistema de saúde inglês – que é público e voltado todo o tempo para o que é melhor para as mulheres e qual o melhor custo-benefício para a situação –, só 3% dos partos na Inglaterra eram domiciliares. Então, em 2010, especialistas quiseram entender por que tão poucas mulheres tinham acesso ao parto domiciliar e se realmente ele é seguro.


Porém, não adianta você ter uma coisa que é muito boa, mas que não tem para todo o mundo. Eles fizeram um estudo com 63 mil mulheres comprovando que o parto em casa tem os resultados, em termos de mortalidade materna praticamente iguais ao parto hospitalar. Em relação ao bebê, para as mulheres que têm o primeiro filho, o parto domiciliar pode ser mais arriscado para o bebê. Então, como lá são feitas recomendações para o sistema de saúde, os pesquisadores estudaram o parto no hospital, nos centros de parto e o domiciliar e chegaram à conclusão que, na verdade, o lugar mais seguro para a mãe e para o bebê é o centro de parto, um ambiente sem médico, só com enfermeira, com os mesmos resultados que o hospital, mas com menos intervenção.

 

Ou seja, nos centros de parto, um número menor de mulheres pede anestesias, tem episiotomia e sofre aceleração do trabalho de parto. Além destes benefícios, existe uma relação custo-benefício favorável.

 

Mas essa avaliação é só para o primeiro filho ou os dados valem para todos?

 

Marcos Dias:
O que os dados mostram que, no caso do primeiro filho, o melhor lugar são os centro de partos conduzidos por enfermeiras obstétricas. Quando analisam as mulheres que já têm um filho de parto normal, não existe diferença entre o parto em casa e o parto no centro de parto, sendo estes dois melhores que o hospital.

 

Silvana Granado: É importante ressaltar que essa pesquisa foi feita com mulheres com risco controlado.

 

Marcos Dias: O sistema de saúde inglês, quando faz um movimento grande do tipo que envolve todas as mulheres, cria protocolos específicos a partir da opinião de especialistas. Então se reuniram o Colégio Real dos Obstetras, o Colégio Real dos Pediatras, o Colégio Real dos Anestesistas e o Colégio Real das Enfermeiras Obstetras. Esses quatro mandam seus especialistas para construir um consenso e fazer as recomendações para o governo. Assim, não existe a possibilidade, por exemplo, de uma mulher, no sistema inglês, dizer que quer ter o bebê em casa e o governo dizer que o problema é dela, que não cuidará do parto, jogando essa gestante para fora do sistema. O sistema é totalmente inclusivo.

 

Esta revisão está sendo feita agora em 2012. O estudo chamado Birthplace in England terminou em outubro de 2011. Os resultados estão em fase de publicação, e, com isso, novas orientações estão sendo escritas para o sistema. Mesmo na Inglaterra, país que tem tradição de as mulheres serem consumidoras ativas do parto, a maioria delas não quer parto domiciliar. Agora, o que estamos vendo é que esse movimento mundial de humanização mostra que as mulheres querem ter maior controle do seu trabalho de parto, querem o parto menos medicalizado porque sabem que o médico trabalha de forma a querer acelerar a fisiologia ou adequar o trabalho de parto ao modo de funcionamento do hospital, por exemplo.

 

Mas isso ocorre na Inglaterra e nós estamos no Brasil. Há uma diferença enorme nos sistemas de saúde públicos dos dois países.

 

Maria do Carmo Leal:
Exatamente, e é importante traçarmos um paralelo apontando a diferença desses dois sistemas. Ambos são públicos, de acesso universal, mas, na Inglaterra, não existe o contrato privado como aqui. Em relação à questão do parto domiciliar, todas as decisões tomadas são feitas baseadas em evidências científicas. Aqui no Brasil acontece algo diferente. O que está acontecendo hoje? O Cremerj resolveu baixar uma regra dessas e tentar impingir uma norma de funcionamento ao parto sem nenhuma evidência no Brasil sem saber se isso é ruim. Porque as evidências que existem sobre esse tema na literatura internacional dizem o contrário, isto é, que este tipo de parto é benéfico. Não existe evidência no Brasil de que isto seja ruim. Logo, se não é mal, por que eles têm de legislar sobre uma coisa que é contra a mulher? A doula é boa porque relaxa, dá apoio e conforto para a mãe. Por que proibir uma doula de entrar no hospital? Outra coisa, a obstetriz é a profissional que faz o parto na Europa e em boa parte dos Estados Unidos, com resultados bem superiores ao nosso.

 

Em vez disso, os Conselhos de Medicina deveriam estar prestando atenção no que está acontecendo com o parto hospitalar no Brasil, que tem mortalidade materna absurda. Eu penso que isso é que deveria ser o objeto de análise e preocupação, porque quem conduz a maioria dos partos são os médicos, os resultados são muito ruins, e temos de compreender o que está acontecendo. Eles deveriam se preocupar com isso, e não apenas legislar sobre acompanhantes, sobre profissionais, porque, na verdade, a doula nem atende o parto, ela é um suporte para a mulher.

 

Silvana Granado: A doula é uma voluntária para atuar nesse momento específico. Outro problema que temos visto é o aumento de internação dos recém-nascidos em UTIs. Embora os índices de mortalidade infantil tenham caído, a internação em UTI de crianças tiradas antes do tempo vem aumento muito, especialmente em partos realizados em hospitais privados.

 

Marcos Dias: Se os estudos internacionais mostram que a iniciativa do parto em casa é boa para a mulher e o bebê, apesar de não ser tradição brasileira, a verdade é que nossos números são muito ruins. As taxas de cesarianas são as maiores do mundo. A mortalidade materna é incompatível com o investimento em saúde que o país faz. A mortalidade neonatal – mortalidade das crianças até 28 dias de vida – é inadmissível. O que temos de mortes pós-parto de crianças acima de 2,5 kg equivale a um campo de extermínio nazista na Segunda Guerra Mundial. Morrem 4,5 mil crianças com mais de 2,5 kg nesse país por ano, e ninguém se preocupa com isso. Mas isso parece não incomodar o Conselho de Medicina e deveria sim ser objeto de estudo.

 

A título de curiosidade, os obstetras são os médicos mais processados nos conselhos do mundo inteiro, mais que anestesistas, e disputam, em alguns lugares, com cirurgiões plásticos. Então, a situação é que, em vez de entender essa proposta de humanização do cuidado, trabalhar para que seja aplicada aqui para que as mulheres tenham um parto menos medicalizado, com menos cesáreas e mortalidade, e uma gravidez com mais cuidados, o sistema está preocupado em perpetuar um modelo que se prova falido.

 

Podemos afirmar, então, que o nosso modelo assistencial é frágil?

 

Maria do Carmo Leal:
Nosso modelo é ruim. Não é porque nós achamos isso, são os resultados obstétricos e perinatais que mostram essa realidade. Temos taxas de cesarianas tão ruins e elevadas que equivaleriam a um país com nível de renda muitas vezes abaixo do Brasil. Existe um grande descompasso entre a taxa de mortalidade materna e o que se alcançou com as crianças. A taxa de mortalidade infantil nossa é mais ou menos três vezes as taxas médias dos países desenvolvidos, e a de mortalidade materna é mais de 10 vezes se comparada aos países desenvolvidos. Então temos um atendimento péssimo ao parto.

 

A discussão que deveria estar em evidência seria o que temos de fazer para isso melhorar e não fazer esse tipo de decisão contra os partos em casa, uma vez que ela não pode vir à frente do interesse da saúde da população. Um conselho profissional existe para cuidar da ética profissional e do bom desempenho profissional da categoria pela qual ele responde.

 

Os índices de mortalidade materna no Brasil também podem ser explicados pela má qualidade do pré-natal realizado ao longo da gestação?

 

Marcos Dias:
A maioria das mulheres morre no momento do parto ou no pós-parto, algumas por complicações que não foram observadas pela qualidade do pré-natal, algumas pela qualidade na assistência ao parto e muitas vezes pelo abandono da mulher no pós-parto. Por exemplo: a mulher pariu, acabou o trabalho, a equipe médica a deixa sangrando, sem que ninguém perceba que ela está numa enfermaria passando mal.

 

Maria do Carmo Leal: Outro componente que ajuda neste mal resultado do óbito no momento do parto, seja da mulher ou do bebê, é exatamente do acesso ao sistema de saúde. Isso sim é um assunto para ser cobrado do sistema de saúde, para que melhore, porque boa parte destes óbitos tem contribuição importante na má qualidade do acesso.

 

Nós observamos dados das regiões Norte e Nordeste do país em que gestantes de risco têm 2,5 vezes chances de ter óbito do seu recém-nascido reduzido, em cidades pequenas, se isso for observado no pré-natal. Entretanto, se essa gestante de risco precisar procurar mais de uma maternidade, o risco de ela perder o bebê dobra, mostrando que o acesso adequado para o atendimento ao parto é fundamental, principalmente se ela for de risco. Esses são assuntos para serem debatidos na intenção de diminuir os índices de mortalidade materna, neonatal, perinatal ou fetal. Agora, isso que o Conselho está tentando apresentar, ninguém sabe se afeta as mães ou as crianças, porque não existe na literatura referência, e eu penso que o Conselho deveria explicar para a sociedade porque tomou esta decisão.

 

Sobre a questão do parto domiciliar, nem todas as mulheres podem fazer essa opção?

 

Marcos Dias:
Na verdade, existe um protocolo que diz qual o melhor lugar para a mulher ter o seu bebê. No próprio sistema inglês, existe este protocolo dizendo quem é melhor ter parto no hospital e quem tem mais liberdade para optar pelo parto em casa. O que sabemos é que só 40% da população se qualificaria para ter seu bebê em casa. As outras 60% são mulheres que deveriam ter o bebê num centro de parto normal ou ao lado do hospital. O que faz diferença é que um sistema que olha para o desejo da mulher garante a ela, mesmo que tenha optado por ter o parto em casa, o acesso a esse sistema em caso de algum problema. Quando ela está em trabalho de parto, comunica o hospital, conversa com a parteira; quando chega em determinada hora, a parteira vai para a casa dela, o hospital fica de sobreaviso, porque pode ser necessário pegar uma ambulância e fazer a transferência desta mulher. Existe uma preparação e infraestrutura completa pensada para isto.

 

Aqui no Brasil normalmente, as poucas mulheres que querem ter o parto em casa acabam fazendo isso combinando com seu profissional, seja ele um médico ou uma enfermeira obstetra que a está acompanhando. Se o trabalho é feito por uma enfermeira, há sempre um médico que faz a cobertura da necessidade de alguma coisa. Quando a mulher entra em trabalho de parto, o hospital fica avisado. Entretanto, isso só acontece no sistema privado, não acontece no sistema público. No privado, toda essa rotina, de certa maneira, acaba sendo providenciada pela própria equipe, para que a mulher que está em casa tenha seu trabalho de parto em paz. Se tudo ocorreu bem, ótimo. Se precisar de transferência, caso tenha havido algum problema, a equipe sabe perfeitamente o que está acontecendo. A enfermeira, ao ver que o parto não está evoluindo, entende que é melhor acabar o parto no hospital com toda a segurança. Quando a pessoa tem experiência, e essa é a chave do sucesso, e no caso do profissional médico, ele sabe qual o momento certo. Dos partos domiciliares, de 30 a 35% dessas mulheres acabam sendo transferidas para o hospital.

 

O medo do risco de complicações que possam vir a acontecer em um parto em casa é quase uma unanimidade para a decisão de não fazer este tipo de procedimento. E isso ocorre por falta de informação correta sobre o procedimento. Há riscos como em qualquer tipo de parto?

 

Marcos Dias:
Sim, existe o risco, mas este risco é controlado e pequeno.

 

Maria do Carmo Leal: Quando uma mulher não é uma gestante de risco, o risco para este procedimento é pequeno. Pode acontecer? Pode. Mas, no Brasil, os grupos que fazem o trabalho de parto em casa são formados por profissionais muito competentes. E quando algo não vai bem, existem médicos que dão apoio. Esses grupos compreendem que a mulher tem o direito de escolher o que ela quiser, claro que respeitando os riscos desse tipo de procedimento. Esses médicos dão suporte e têm como referências maternidades para atender em casos específicos. O que está sendo proibido é esse tipo de procedimento. O médico não pode ser criminalizado porque vai dar suporte a uma mulher que decidiu ter parto em casa. É proibido a um médico se negar a prestar atendimento.

 

Silvana Granado: Por que o Cremerj justifica o excesso de cesarianas pela cesárea pedida pela mulher? Por que a mulher pode escolher ser submetida a uma cirurgia e, por outro lado, não pode escolher ter seu filho em casa? São questões que precisam ser explicadas.

 

Então, o debate é o direito de escolha da mulher na hora do parto.

 

Silvana Granado:
Exatamente, desde que a mulher atenda a protocolos clínicos de risco.

 

O parto em casa é uma escolha particular, não ocorre pelo sistema de saúde público brasileiro. E no interior do país? O que temos visto na mídia são pessoas com condições de arcar com essas despesas, mas essa não é a realidade brasileira. Como controlar isso fora dos grandes centros urbanos?

 

Maria do Carmo Leal:
O que acontece é que ninguém está preocupado com isso, pois 1% dos partos no Brasil são domiciliares. Fizemos um estudo no Norte e Nordeste, em áreas mais pobres do Brasil, em municípios pequenos que têm uma cota de parto domiciliar, que mostrou que o risco de morte, quando o nascimento acontece em casa, sem atenção, pode ter tido uma parteira, mas uma parteira provavelmente leiga, é muito maior e não tem nenhuma ligação com o sistema de saúde. A mulher pare em casa quase desassistida, a não ser quando há uma parteira da comunidade, mas quase sempre sem formação para salvar essa mulher de uma complicação ou saber indicar a hora certa de transferi-la para um hospital. Este é outro mundo que o Brasil tem, mas que está diminuído, e, é claro, não é bom que este tipo de parto aconteça. Aí sim o risco de morte é muito grande caso haja uma complicação. Mas estamos falando de coisas distintas.

 

Esse tipo de parto sempre houve no Brasil, mas nunca foi preocupação dos Conselhos de Medicina. A briga agora é por causa dos partos que estão acontecendo nas grandes cidades, com mulheres informadas que querem ter parto sem intervenção, como nos países desenvolvidos. São mulheres que viajam, com nível superior, pós-graduação, leem sobre isso, sabem que é assim no resto do mundo e desejam esse tipo de parto. É nesse grupo que estamos vendo esse problema.

 

Por estar na mídia, isso não vai acabar refletindo no sistema de saúde? Por exemplo, com mulheres humildes, sem plano privado, vendo que existe essa possibilidade de parto em casa? O governo não pode pensar, no futuro, nesse tipo de estratégia ou fazer campanhas elucidativas para explicar melhor que tipo de procedimento é este?

 

Maria do Carmo Leal:
Eu penso que as mulheres não farão isso se não possuírem um suporte adequado.

 

Marcos Dias: Nós temos desafios enormes para reduzir os índices de mortalidade materna. Eu penso que só depois que tivermos um sistema mais maduro que garanta outras coisas, como um pré-natal de qualidade, que é fundamental para saber se essa mulher que vai ter o parto em casa teve todo o cuidado durante a gravidez, que não vai ter nenhum risco, pois fez um acompanhamento regular. Então, existem outras prioridades neste momento.

 

Prioridades que estão sendo trabalhadas por meio da Rede Cegonha.

 

Marcos Dias:
Quando o governo lança um programa do tamanho da Rede Cegonha, claramente ele sabe quais são as prioridades. A área técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde tem um diagnóstico que o modelo de cuidado hoje no Brasil é ruim, porque, no público, o sistema ainda acolhe mal as mulheres. São partos com muitas intervenções, há uma taxa de cesariana alta e resultados maternos e neonatais ruins. No sistema privado, é a mesma coisa. A grande maioria das mulheres tem melhores condições de saúde, alimentação, moradia, mais estudo e, no entanto, temos taxas de cesariana de 90%, que acabam complicando a saúde das mulheres e dos bebês que são tirados antes da hora.

 

Então, o diagnóstico do Ministério é: temos problemas públicos de uma natureza, no sistema privado de outra natureza, e a proposta da Rede Cegonha é mudar o modelo de cuidado, estabelecer Centros de Parto Normal, em que as mulheres possam ter seus filhos como se estivessem parindo em casa, sem intervenção, com a presença de uma doula, igual a uma casa de parto, garantido qualquer risco.

 

Eu penso que, se daqui a 20 anos, tivermos uma mortalidade materna de 20/100 mil habitantes, que é o nível aceitável, uma mortalidade neonatal metade que a que temos hoje, se tivermos leitos de CTI, acesso a sangue, todas essas coisas junto com um pré-natal de qualidade, pode ser que a gente possa vir a discutir a possibilidade de parto em casa na rede pública.

 

Maria do Carmo Leal: As mulheres hoje, que são do sistema público, não têm a possibilidade de optar por um parto domiciliar porque o SUS não está estruturado para responder a essa demanda e não fará isso tão cedo. Existem outras questões mais sérias para responder antes. Se ainda temos problemas de deslocamento da mulher para o hospital, imagina levar o hospital até a mulher?

 

Então as Casas de Parto são uma boa alternativa.

 

Marcos Dias:
As experiências das Casas de Parto mostram que existe uma clientela para isso. No Rio de Janeiro, temos uma Casa de Parto comunitária, que tem um hospital de referência, e já fez mais de 2 mil partos. Para algumas mulheres, o momento do parto tem um significado diferente, e elas querem ser protagonistas nesse momento e procuram uma assistência diferente. Existem várias Casas de Parto espalhadas pelo Brasil. Esses lugares têm resultados muito bons, possuem uma clientela, ainda que seja muito diferenciada, ou porque mora perto e conhece o trabalho, ou são mulheres mais instruídas, que acabam procurando esses locais. Todas as Casas de Parto são do SUS.

 

Maria do Carmo Leal: Mas uma mulher do SUS que queira esse tipo de parto, mais humanizado, terá realmente de ir para uma Casa de Parto.

 

Vamos trabalhar com a hipótese de uma mulher humilde, moradora de alguma comunidade carioca, tomar conhecimento do parto domiciliar e resolver, por conta própria, ter o filho com uma amiga parteira, por exemplo. O que fazer?

 

Maria do Carmo Leal:
Isso é ruim. Nós não somos contra as parteiras leigas. A questão é que parteira hoje nós chamando de obstetriz ou enfermeira obstetra, uma profissional formada, com nível universitário.

 

Marcos Dias: De maneira geral, as parteiras leigas não conseguem se incluir no sistema de saúde. Elas trabalham à margem do sistema; quando têm uma complicação, elas não conseguem entrar. Então isso traz risco para as mulheres.

 

Maria do Carmo Leal: É importante sinalizar que o parto em casa só ocorre com toda a segurança possível. Nós não recomendamos esse tipo de assistência para qualquer mulher.

 

Silvana Granado: Temos de mudar também um pouco essa cultura de que a cesariana é mais segura. Pelo contrário. Por exemplo, se ocorre um óbito fetal ou neonatal, o médico tentou tudo no parto, fez até uma cesariana, não teve jeito, e o bebê morreu. Agora, se a criança morre num parto normal é porque o médico não fez uma cesariana. Aqui parece que o uso da tecnologia é que seria a salvaguarda, mas não foi este o caso.

 

Maria do Carmo Leal: Com relação à segurança da decisão da cesariana, muitas vezes acontece sem que as mulheres tenham informações completas. É fundamental que elas se informem sobre os benefícios e malefícios dos partos, seja normal ou cesariana. Recentemente, um artigo publicado no Lancet destaca, segundo o autor, que uma cirurgia tão espetacular como a cesariana pode ter se tornado um produto de morbidade. Porque o encontrado, após análise de vários países, inclusive o Brasil, foi uma completa relação de cesarianas com péssimos resultados. Infecção, uso de antibióticos, óbitos maternos, óbito do recém-nascido, uso de UTI para o bebê em larga escala. Está consagrado na literatura que a cesárea é realmente um risco para a mãe que não precisa dela. Para aquela que precisa, pode ser sua salvação e a do bebê. Mas é impressionante porque é uma tecnologia fantástica que está sendo utilizada incorretamente, provocando adoecimento e óbito.

 

Silvana Granado: Principalmente porque os médicos não esperam as mulheres entrarem em trabalho de parto. A cesárea ocorre com data marcada. A mulher vai à sua primeira consulta de pré-natal, faz a conta a partir da data da última menstruação, e o médico já marca a data do parto.

 

Até agora, olhamos o lado da mãe, mas e para o recém-nascido? No caso de um nascimento de cesariana, a pediatra já examina o bebê, coloca tubo dentro dele, faz exames logo após o parto etc. Qual o risco para o bebê que nasce em casa?

 

Marcos Dias:
O bebê que nasce em casa é um bebê de baixo risco. Nos partos hospitalares que eu assisto, ninguém faz isso com o bebê, isso pode ser desnecessário.

 

Maria do Carmo Leal: Esse tipo de coisa deve ser feita quando o bebê tem algum problema.

 

Marcos Dias:
Quando o bebê nasce de parto normal, a vagina faz uma compressão e ajuda o bebê a sair junto com um líquido. Quando ele nasce de cesariana, ele tem de ir para o colo da mãe do mesmo jeito, só que, às vezes, ele tem um pouco mais de dificuldade para colocar esse líquido para fora, sendo possível que enjoe ou tenha dificuldade de se alimentar e até mesmo vomitar. Nessa circunstância, você aspira o bebê. Mas muitos bebês que nascem de cesárea não precisam fazer nada. Agora, a mãe que passa por uma cesárea tem mais dificuldade. A cesariana é a única cirurgia com dor, com a barriga cortada, com o útero cortado, cheia de ponto que a mulher levanta de madrugada para dar peito, para trocar fralda etc.

 

Maria do Carmo Leal: Apenas 12% dos bebês têm contato imediato com a mãe quando o parto é uma cesariana. A mãe vê o bebê, mas não fica com ele.

 

Marcos Dias: E isso hoje é um problema. Os bebês que nascem de cesárea correm mais riscos de ter alergias, porque, quando ele passa pela vagina da mãe, se contamina todo, boca, narina, intestino, tudo é ocupado pela flora da mãe. Essa flora o protege. A natureza sabe tudo, e por isso temos de desconfiar de quem quer mudar alguma coisa que tem 300 mil anos para ser planejado. Não é algo dos últimos 50 anos. A obstetrícia é uma especialidade de 150 anos. Então, temos de respeitar isso. Estudos mostram que bebês nascidos de cesariana têm mais alergia, mais asmas e vários outros problemas porque acabaram não tendo essa proteção da flora humana vinda da mãe.

 

Sou contra a coisa do determinismo tipo: “Ah, nasceu de cesárea vai ter isso.” A gente tem de olhar para essa questão do ponto de vista da saúde pública. É claro que estamos falando de crianças nascidas de parto normal que também terão asma. Mas não podemos nos debruçar sobre o indivíduo. Nós nos debruçamos sobre o coletivo.

 

Maria do Carmo Leal: A experiência do médico não consegue ver isso. É caso a caso. A maioria dos casos não tem problema, mas tem de olhar o conjunto. Não se pode fazer nenhuma intervenção que traga dano, e essa é a primeira regra da Medicina.

 

Marcos Dias: Por trás da questão da cesárea, há uma enorme questão econômica que não será resolvida se você aumentar a remuneração do médico com o parto normal. Porque ele vai querer continuar ganhando mais em menos tempo.


Publicado em 17/8/2012.

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