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21/01/2009

Há 25 anos, pesquisadora descrevia o duplo ciclo de multiplicação do agente etiológico da doença de Chagas

Bel Levy


Mais que uma cientista pioneira, Maria Deane foi uma mulher à frente de seu tempo: na década de 30, formou-se em medicina, tornou-se cientista e desbravou o interior do país para investigar doenças até hoje negligenciadas. A protozoologista que contribuiu intensamente para a trajetória do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no qual atuou como pesquisadora, registrou significativas descobertas sobre leishmaniose visceral, malária e doença de Chagas durante a carreira científica iniciada em 1936, no Pará, sua terra natal.


 Maria Deane desbravou o Brasil para investigar diferentes problemas de saúde pública

Maria Deane desbravou o Brasil para investigar diferentes problemas de saúde pública


Uma das mais importantes descobertas da pesquisadora foi registrada em 1984, quando Maria Deane atuava como chefe do então Departamento de Protozoologia do IOC. O estudo descreve pela primeira vez o duplo ciclo de multiplicação do agente etiológico da doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi, no gambá, reservatório do parasito. Os resultados esclarecem a dinâmica de transmissão oral do parasito por este animal e representam contribuição fundamental para a compreensão da epidemiologia da doença em áreas livres de barbeiros domiciliados.


Uma trajetória condizente à sua produção científica extremamente original, que até hoje levanta discussões. Decidida, dona de personalidade forte, Maria Deane não tolerava injustiças. Em sua vida pessoal e durante toda a carreira científica, sempre optou pela defesa de valores como humildade, solidariedade e honestidade.


 Decidida e de personalidade forte, Maria usou todos os meios para realizar suas pesquisas

Decidida e de personalidade forte, Maria usou todos os meios para realizar suas pesquisas


“Percebi minha vocação para ciência quando, ainda criança, passava tardes inteiras nos laboratórios da Universidade de São Paulo (USP), onde Maria e Leonidas Deane trabalhavam. Cresci com uma visão idealizada do cientista, formada a partir das características que observava em meus tios: o apreço pelo trabalho e o comprometimento com a ciência, independentemente de vaidades pessoais ou status político”, reconhece o sobrinho do casal, o farmacologista Francisco Paumgartten, hoje pesquisador do Laboratório de Toxicologia Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fiocruz.


Deane levou motorista para o mundo da ciência


Responsável pela consolidação de unidades de ensino e pesquisa na área da protozoologia em diversas instituições – como o Departamento de Zoologia da USP e o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Carabobo, na Venezuela – Maria sempre teve a formação de profissionais de saúde como uma preocupação pessoal. O principal exemplo desta motivação é a trajetória de Marcos Antônio dos Santos Lima, motorista da família que se tornou técnico de laboratório por incentivo e investimento da pesquisadora.


 Maria com o Castelo de Manguinhos ao fundo: ela ajudou na formação de diferentes gerações de cientistas

Maria com o Castelo de Manguinhos ao fundo: ela ajudou na formação de diferentes gerações de cientistas


“Sempre tive curiosidade sobre a área de pesquisa, mas nunca tive oportunidade de estudar e me dedicar à ciência. Quando percebeu isto, Maria fez questão de me trazer ao laboratório e me ensinar tudo o que sei hoje. Aprendi toda a prática com ela e depois, com o tempo, participei de cursos e capacitações que permitiram que eu me formasse como técnico de laboratório”, conta Marcos, que atua como técnico em pesquisa do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC.


“De origem humilde, minha avó enfrentou muitas dificuldades durante a infância. Ela contava que dividia com as duas irmãs um único par de sandálias. Acredito que esta experiência tenha lhe dado o senso de solidariedade e justiça tão marcantes em sua personalidade”, considera Camilo Deane, neto de Maria. “Apesar da postura austera como frequentemente é lembrada, resultado da educação rígida que recebeu da família de origem austríaca, em sua vida pessoal minha avó era uma pessoa carinhosa”, Camilo recorda, destacando o tradicional frango ao curry preparado por Maria aos domingos, ao som de música clássica.


A vida e a carreira científica de Maria Deane têm estrita relação com a trajetória de seu marido e colaborador, o parasitologista Leonidas Deane. A forma como os dois se conheceram, na década de 30, na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, retrata perfeitamente o papel da academia na vida do casal. Ao observar o quadro de notas da faculdade, Leonidas, considerado um dos melhores alunos da graduação, constatou finalmente uma nota próxima da sua e decidiu conhecer a prodigiosa estudante, Maria. Juntos desde então, viveram e trabalharam em intensa parceria até a morte do parasitologista, em 1993.


“É impossível pensar em Maria sem recorrer à figura de Leonidas. Parceiros na atividade científica e na vida pessoal, sempre foram exemplo vivo de companheirismo. Quem conviveu com os dois certamente reconhece o papel fundamental desta cumplicidade para a conquista de tantas realizações pessoais e profissionais”, considera a pesquisadora Ana Jansen, atual chefe do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC, que durante 12 anos trabalhou ao lado de Maria Deane.


A mensagem veio pelo telegrama: Quer casar comigo, Maria?


“O episódio do pedido de casamento representa muito bem a praticidade do casal. Em 1940, já eram namorados e estavam em cidades distantes, no Ceará, em virtude das atividades de pesquisa em campo que desenvolviam. Leonidas arriscou-se em um único telegrama: Maria, quer casar comigo? E ela respondeu, simplesmente, Sim. Na terceira mensagem, ele informava a data e o local, em Fortaleza, e logo após a cerimônia e a lua-de-mel os dois novamente se separaram, para dedicarem-se às investigações realizadas em locais distintos”, lembra o tropicalista e amigo do casal José Rodrigues Coura, atual chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC.


 Leonidas e Maria: companheirismo e colaboração científica

Leonidas e Maria: companheirismo e colaboração científica


“Conheci Maria e Leonidas na década de 60, como pesquisadores da USP, e logo reconheci a criatividade e a competência científica do casal. Tanto que na década de 80, ao assumir o compromisso de recuperar a excelência do IOC após o regime militar, quando muitos pesquisadores foram cassados ou saíram espontaneamente do país, não hesitei em trazê-los da Venezuela de volta ao Brasil e ao Instituto”, sintetiza Coura, que atuou como diretor do IOC entre 1979 e 1985 e no final da década de 90.


Sempre a serviço da saúde pública, Maria Deane dedicou-se ao enfrentamento de importantes endemias e registrou contribuições ímpares para o desenvolvimento do conhecimento científico na área da protozoologia. Ao lado de Leonidas, integrou diferentes serviços de saúde pública e percorreu o interior do país para investigar a ocorrência de doenças como leishmaniose visceral, malária e doença de Chagas.


Modo de pesquisar a leishmaniose é modelo até hoje


A primeira missão científica do casal – dedicada à investigação da leishmaniose visceral e desenvolvida no então Instituto de Patologia Experimental do Norte, atual Instituto Evandro Chagas, no Pará – destaca o pioneirismo científico dos pesquisadores, que percorreram o interior do estado para estudar e esclarecer a misteriosa doença recém-identificada por Henrique Penna. Liderada por Evandro Chagas, a equipe formada pelo casal Deane e outros jovens pesquisadores investigou a ocorrência da leishmaniose visceral a partir de uma abordagem integrada, que incluía estudos sobre todo o ciclo da doença, considerando a perspectiva do parasito, do vetor, de reservatórios silvestres e do homem – estratégia pioneira que orienta até hoje as pesquisas desenvolvidas no IOC.


 Maria deixou um legado ainda  hoje visível, presente na formação de pesquisadores que foram seus alunos e hoje atuam como consagrados especialistas

Maria deixou um legado ainda  hoje visível, presente na formação de pesquisadores que foram seus alunos e hoje atuam como consagrados especialistas


A partir das amostras coletadas em campo e de análises laboratoriais realizadas na USP, os pesquisadores registraram importantes descobertas sobre a leishmaniose visceral, como o estabelecimento da relação entre o meio ambiente e a ocorrência da doença, a determinação do inseto Lutzomiya longipalpis como vetor do parasito Leishmania chagasi, a identificação da raposa como importante reservatório silvestre e do cão como fonte de infecção.


Na década de 40, mais uma vez por indicação de Evandro Chagas, o casal foi convidado a integrar o Serviço de Malária do Nordeste – iniciativa promovida em parceria pelos governos brasileiro e americano para erradicação do mosquito africano Anopheles gambiae, vetor da malária que invadiu Brasil provocando grave epidemia. Nesta época, enquanto Leonidas dedicava-se ao trabalho de campo para mapear a distribuição do mosquito, Maria concentrava-se no laboratório e realizou, de forma relativamente secreta, seu primeiro experimento.


Responsável pela criação do A. gambiae em laboratório, a protozoologista comparou o vetor a outro inseto anofelino – Anopheles walkeri – que no inverno produz ovos distintos e mais resistentes aos gerados no restante do ano. A partir desta observação, Maria criou amostras de A. gambiae em geladeira e examinou os ovos obtidos desses exemplares: apesar de ser um inseto exclusivamente tropical, o A. gambiae mostrou-se capaz de produzir, em condições artificiais, ovos com alterações morfológicas semelhante às registradas pelos ovos de inverno do A. walkeri. Animada com os resultados, Maria pretendia investigar mais profundamente a relação entre temperatura e características morfológicas de ovos anofelinos, mas foi surpreendida pela notícia de que deveria exterminar todas as suas amostras de A. gambiae – o mosquito havia sido, enfim, extinto do país.


Após a erradicação do vetor africano, Maria e Leonidas permaneceram envolvidos com a investigação da malária e passaram a integrar o Serviço Especial para Saúde Pública (Sesp), criado no final da década de 40 para dar assistência aos seringueiros da região amazônica. Juntos, dedicaram-se ao estudo de outros mosquitos transmissores da malária, descreveram novas espécies e investigaram o ciclo de vida de anofelinos, gerando conhecimentos sobre a epidemiologia e a transmissão da doença em toda a Amazônia e no Nordeste. Em parceria com o pesquisador norte-americano Otis Causey, publicaram, entre 1946 e 1948, monografias pioneiras sobre a malária no Brasil no American Journal of Hygiene e na Revista do Serviço Especial de Saúde Pública.


Nos anos seguintes, o regime militar impôs sérias dificuldades à vida do casal, que percorreu diversos países para acompanhar a filha Luiza durante o exílio. Na década de 80, o casal Deane retornou ao Brasil a convite de Coura, à época diretor do IOC. Maria tornou-se chefe do então Departamento de Protozoologia e Leonidas assumiu a chefia do antigo Departamento de Entomologia. O legado do casal Deane ainda é visível, presente na formação de gerações de pesquisadores que foram seus alunos e hoje atuam como consagrados especialistas.


Publicado em 21/1/2009.

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