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17/04/2012

Livro descreve o pensamento médico do século 19 e as origens da medicina tropical

Fernanda Marques


As origens da medicina tropical no Brasil ou, mais especificamente, do conhecimento sobre vermes parasitas – a chamada parasitologia helmintológica – foram revisitadas pelo historiador e doutor em saúde coletiva Flavio Coelho Edler, professor e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). No livro A medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical, da Editora Fiocruz, Edler se distancia de duas teses muito difundidas: a primeira que vê o estabelecimento da medicina tropical como um processo de substituição de crenças pela racionalidade científica; a segunda que enxerga o ambiente médico como cópia atrasada ou imperfeita dos modelos europeus.






“Estivemos preocupados em desvendar o processo pelo qual um novo conjunto de crenças médicas – fatos científicos – suplantou outras crenças médicas, estabelecidas no seio de outras tradições científicas”, explica o autor. “Os médicos brasileiros do século 19, por mais estranhas que suas crenças tenham se tornado para nós, não se limitaram a acreditar em certos fatos clínicos, epidemiológicos, nosológicos e etiológicos; eles também justificavam essas crenças, baseados em regras metodológicas compartilhadas”, completa.


Nosologia e etiologia se referem, respectivamente, à classificação das doenças e ao estudo de suas causas, ramos da medicina que foram profundamente afetados pela emergência da parasitologia helmintológica. Antes dela, era predominante no país a climatologia, isto é, as peculiaridades do clima e as características naturais do Brasil eram responsabilizadas pela ocorrência das doenças que acometiam os indivíduos – daí a necessidade de "aclimatar" os europeus que aqui chegavam. Embora essa visão hoje nos pareça preconceituosa, ela não o era: na época, os médicos até viam vantagens, ao estabelecer um saber local dominado apenas por aqueles especialistas que conheciam a realidade do país.


Esse saber passou, então, a ser confrontado pelos conhecimentos – menos locais, mais "universais" – oriundos da parasitologia, na qual micróbios, vermes e outros parasitas eram identificados como os responsáveis pelas doenças. “Procuramos fazer um inventário dos diversos grupos que se apresentaram na arena científica – clínicos e higienistas das metrópoles europeias e da periferia e representantes de subespecialidades, como a helmintologia médica e a geografia médica –, lutando por afirmar suas respectivas identidades socioprofissionais”, afirma Edler. “As batalhas travadas no terreno da helmintologia médica foram decisivas para a corrosão da base do sistema de autoridade implantado pela climatologia e sustentado pelas tradições clínica e higiênica, por mais de meio século”, resume o autor.


No entanto, os novos saberes da parasitologia helmintológica não provocaram uma revolução na medicina, ao contrário do que se possa imaginar. Novos e antigos paradigmas conviveram, passaram por processos de negociação, em uma história marcada tanto por continuidades como por rupturas. “As transformações se fizeram sempre de maneira comprometida, esforçando-se os inovadores para construir pontes com o pensamento tradicional, até mesmo para serem reconhecidos como vanguarda. Os inovadores não queriam vencer, mas convencer”, explica o pesquisador Sergio Goes de Paula, que assina o prefácio do livro.


E esse processo de convencimento dos "inovadores" não pode ser negligenciado. Mesmo entre os que se posicionavam do lado da parasitologia helmintológica havia uma cisão: alguns defendiam que os vermes não eram contraídos pelo paciente, mas sim gerados espontaneamente no organismo do doente. A ideia de geração espontânea, embora hoje soe absurda, era justificada com argumentos persuasivos na época. “O raciocínio então considerado legítimo é apresentado com tantos detalhes que nos parece razoável que os vermes parasitas tinham origem no organismo humano; e era difícil provar o contrário”, adverte Goes. Dessa forma, dando vida e voz aos personagens de outrora, “A medicina no Brasil imperial pode ser lido como um guia de viagem pelos caminhos do pensamento médico brasileiro no século 19”, resume o autor do prefácio.


Publicado em 16/4/2012.

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