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22/11/2021

Livro detalha os caminhos para a construção do Subsistema de Saúde Indígena do SUS

Marcella Vieira (Editora Fiocruz)


Entre as diversas crises - sanitária, humanitária, social e econômica - emergidas no contexto da Covid-19, a saúde dos povos indígenas no Brasil tem sido uma das mais preocupantes e debatidas. A questão é enfatizada pelos organizadores do mais novo livro da coleção Saúde dos Povos Indígenas da Editora Fiocruz: "a pandemia tornou ainda mais evidentes as deficiências que permanecem na atenção à saúde indígena e a sua frágil articulação com os demais níveis de complexidade da rede SUS", destacam Ana Lúcia Pontes, Felipe Rangel de Souza Machado e Ricardo Ventura Santos, pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O trecho encontra-se na apresentação de Políticas Antes da Política de Saúde Indígena, título que estará disponível para aquisição a partir de 24 de novembro, nos formatos impresso – via Livraria Virtual da Editora – e digital, por meio da plataforma SciELO Livros

Mas e nos anos que antecederam a pandemia? E antes mesmo da criação do nosso Sistema Único de Saúde? Quais foram os muitos caminhos, lutas e articulações que possibilitaram a construção de políticas públicas especificamente voltadas para a saúde indígena? É esse percurso que a coletânea busca - a partir de uma perspectiva histórica e antropológica - detalhar em 13 capítulos. O livro investiga o processo de formulação do atual Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Instituído em 1999, pela lei nº 9.836 - também conhecida como Lei Arouca -, o subsistema foi criado no âmbito do SUS e idealizado para atender a população de territórios indígenas, através de uma estrutura composta de sistemas locais de saúde, denominados Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).

Ricardo Ventura enfatiza que a obra aborda as múltiplas redes de participação que envolveram a constituição da política nacional de atenção à saúde indígena no país, o que fica claro no próprio nome do livro. "Ao intitular a coletânea de Políticas Antes Política de Saúde Indígena, estamos interessados em analisar a complexa rede de atores e processos sociopolíticos que, não raro, são apenas mencionados nas entrelinhas das narrativas mais usuais, inclusive aquelas presentes nos documentos governamentais sobre a política. É o caso das lideranças e organizações indígenas no Brasil", destaca.         

O volume tem como base as investigações conduzidas no âmbito da pesquisa "Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: perspectivas históricas, socioculturais", coordenada por Ventura e Pontes. O projeto é financiado pela Wellcome Trust, fundação com foco em pesquisas de saúde sediada em Londres. O livro é dividido em duas partes, que dialogam e se complementam a partir de pesquisas, entrevistas e vasto acervo documental. Os 14 autoras e autores participantes "se reportam ao prolongado e complexo caminho percorrido até o que veio a ser a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena, que envolveu dimensões de protagonismo indígena e indigenista até o momento pouco explorados na literatura".

Denominada Contextos e Atores no Cenário da (In)Visibilidade da Saúde Indígena, a primeira parte da coletânea agrega seis capítulos, com textos dedicados à atuação de diferentes sujeitos políticos na área de saúde dos povos indígenas com foco predominante nas décadas de 1970 e 1980. Felipe Machado cita instituições (fundadas durante a ditadura militar) e personagens fundamentais para a abordagem desse percurso. A lista inclui órgãos de Estado e organizações não governamentais, como o Conselho Indigenista Missionário - Cimi (organismo fundado em 1972 e vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a União das Nações Indígenas (fundada no início dos anos 1980 pelo ativista Ailton Krenak), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação - Cedi (1974), a Fundação Nacional do Índio - Funai (órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, criado em 1967), além da atuação de pesquisadores que foram fundamentais na articulação e na composição de todo esse debate.

Os outros sete capítulos integram a segunda parte, intitulada Trajetórias e Articulações na Formulação do Subsistema, com os autores se debruçando sobre as questões ligadas à reforma sanitária indigenista, relacionadas aos contextos regionais e nacional. "Abordamos de que forma os movimentos indígenas e indigenista se relacionaram e se articularam com o movimento da reforma sanitária brasileira em geral, permitindo, por exemplo, a tramitação da Lei Arouca", explica Machado.  

O ativismo e o protagonismo do movimento indígena

Ao relembrarem o processo de fechamento dos textos que integram a coletânea, os organizadores salientam como a pandemia evidenciou as fragilidades do Subsistema de Saúde Indígena. Porém, Ana Lúcia Pontes alerta que, em meio a um cenário tão adverso, as múltiplas e ativas expressões do movimento indígena têm se sobressaído ainda mais. "Esse protagonismo tem não somente impulsionado estratégias de enfrentamento à Covid-19 em seus territórios, como também cobrado a resposta governamental", enfatiza.

Pontes destaca o papel fundamental do ativismo dos povos indígenas na construção das políticas públicas de saúde do Brasil contemporâneo. "Se os capítulos desta coletânea mostram que, em períodos pregressos, os interesses indígenas foram canalizados por personalidades como Sergio Arouca, atualmente, percebemos que o protagonismo indígena é evidente", reforça a autora. Para exemplificar, ela nomeia instâncias que têm se destacado nessa atuação combativa nos âmbitos do Legislativo e do Judiciário, como a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas (FPMDPI) no Congresso Federal e a advocacia indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que entrou diretamente com uma ação no Supremo Tribunal Federal.

O último caso refere-se ao ajuizamento, em 2020, da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, que denunciava o agravamento da situação da pandemia entre as populações indígenas e cobrava a atuação da União na elaboração de um plano de enfrentamento à Covid-19 para os povos indígenas brasileiros. A ADPF 709 representa um marco histórico, pois foi a primeira vez que os indígenas foram reconhecidos com legitimidade para propor ação jurídica nessa instância.

As muitas participações de Ailton Krenak

Por fim, o livro traz um registro histórico mais do que oportuno: o último capítulo é uma transcrição da primeira parte do Programa de Índio do dia 30 de novembro de 1986. Veiculado semanalmente na Rádio USP, o Programa de Índio foi ao ar de 1985 a 1990, sob o comando de Ailton Krenak. O mote do trecho transcrito foi a 1ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, ocorrida dias antes da transmissão. Esse episódio específico contou com as participações de Arouca e de Raoni, lançando luz sobre a "intensa articulação de múltiplas vozes, indígenas e não indígenas, e as redes de personagens e instituições que participaram da trajetória da atual política pública de saúde dos povos indígenas", analisam os organizadores. 

Ativista, filósofo e poeta, Ailton Krenak assina o texto de orelha do livro. No papel de destacada liderança indígena durante a Assembleia Nacional Constituinte (1988) e ativo participante de assembleias e encontros indígenas na década de 1980, o escritor relembra o longo trabalho de colaborações e articulações que levaram à criação do SasiSUS, que ele classifica como uma "conquista histórica dos direitos humanos no Brasil". 

Krenak é também um dos 36 entrevistados para os capítulos da coletânea. São atores sociais diversos que se relacionam, de alguma forma, à temática da saúde indígena no período analisado, dos anos 1980 ao início dos anos 2000. "É oportuna uma publicação que resgate o significado dessa luta histórica e as expectativas dos povos indígenas quanto à saúde como direito humano e obrigação do Estado", finaliza o ativista. 

Organizadora e organizadores

Médica sanitarista, Ana Lúcia de Moura Pontes é doutora em Saúde Pública pela Ensp/Fiocruz, onde é também pesquisadora. É coautora de Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde do Alto Rio Negro (2019), livro que integra a coleção Fazer Saúde da Editora Fiocruz

Graduado em Ciências Biológicas, Ricardo Ventura Santos é pesquisador titular da Ensp/Fiocruz e professor titular no Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). É doutor em Antropologia pela Universidade de Indiana (EUA). É membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), tendo sido o primeiro pesquisador da Fiocruz a ser eleito para a área das Ciências Sociais do órgão. É autor e organizador de diversos livros pela Editora Fiocruz, sendo Entre Demografia e Antropologia: povos indígenas no Brasil o mais recente.

O cientista social Felipe Rangel de Souza Machado é doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj). É pesquisador da Ensp/Fiocruz.

Coleção 

Políticas Antes da Política de Saúde Indígena é a nona publicação de Saúde dos Povos Indígenas. A coleção publica estudos originais sobre as mais diversas facetas do processo saúde-doença dos povos indígenas, reunindo obras de autores nacionais e estrangeiros. Seus títulos são uma contribuição para a construção de enfoques teóricos inovadores que, no tocante à saúde, possibilitem estabelecer relações socialmente mais justas entre a sociedade brasileira e os povos indígenas.

O primeiro título da coleção foi Poder, hierarquia e reciprocidade: saúde e harmonia entre os Baniwa do Alto Rio Negro, lançado em 2003. Todas as obras de Saúde dos Povos Indígenas encontram-se disponíveis para download gratuito na rede SciELO Livros.

Acesse o catálogo completo da coleção.

Livro Políticas Antes da Política de Saúde Indígena
Editora Fiocruz | Coleção Saúde dos Povos Indígenas
Primeira edição: 2021
404 páginas
Preço de capa (versão impressa): R$ 69,00
Preço e-book (versão digital): R$ 41,40

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