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30/07/2008

Ninguém mexe com a jovem e moderna doutora Bertha Lutz

Fernanda Marques


Circulando não só no ambiente intelectual do Rio de Janeiro, mas também das Américas do Norte e do Sul, Bertha Lutz – cujas práticas feministas, políticas e científicas são indissociáveis – é personagem central de artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, periódico da Fiocruz. Assinado pela professora Maria Margaret Lopes, do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o artigo analisa, entre outros aspectos, a presença de Bertha na imprensa, demonstrando como o feminismo conferia visibilidade à pesquisadora, enquanto a ciência garantia legitimidade para suas causas políticas. O artigo mostra, ainda, a ironia com que Bertha era tratada nas crônicas de Lima Barreto.


 Bertha Lutz (1894-1976) (Foto: BR. MN. Fundo Bertha Lutz)

Bertha Lutz (1894-1976) (Foto: BR. MN. Fundo Bertha Lutz)





O estudo de Maria Margaret focaliza o início do século XX, quando Bertha e suas colegas das primeiras gerações de mulheres cientistas ganhavam destaque no Brasil. Vivia-se, naquela época, uma transição do perfil educacional das mulheres: do início da República à década de 40, elas passaram do analfabetismo à formação universitária. Voltavam-se, cada vez mais, às profissões científicas, que, até então, eram monopólio dos homens.



Nesse contexto, surgiu, em 1929, a União Universitária Feminina, tendo como uma de suas integrantes Bertha Lutz – que obteve, entre outros diplomas, o de ciências pela Universidade de Sorbone, na França, em 1918. De fato, a década de 20 foi caracterizada pela imprensa como a década da mulher moderna e, conforme o feminismo de Bertha conquistava espaço na mídia, também crescia sua reputação científica. “Embora reputação científica e proeminência na mídia refiram-se a processos muito diferentes de atribuição de significados, eles se justapõem e interagem nos discursos públicos, nos quais política e ciência estão intrinsecamente envolvidas, como no caso exemplar de Bertha e de outros e outras de sua geração”, explica a autora no artigo.



Desde sua volta ao Brasil, após sete anos estudando na Europa, Bertha passou a se empenhar em tornar públicas suas idéias. Como exemplo, ela aparece na Revista da Semana, em 1918, convocando as leitoras a fundarem uma liga de mulheres brasileiras. Em 1919, Bertha também produziu artigos para a seção Rio Femina do Rio Jornal. Nesse mesmo período, ela se dedicava à organização dos Archivos do Museu Nacional, que seriam publicados no centenário daquela instituição.



No Museu Nacional, Bertha ocupou, inicialmente, o cargo de secretário, conquistado em um concurso que foi amplamente discutido na imprensa, que publicava textos escritos por e sobre a cientista. Muitas vezes, ela foi tema das crônicas de Lima Barreto, que tratava as reivindicações feministas com irreverência, ironia e mesmo deboche. “Lima Barreto foi um detrator implacável da jovem cientista, e a troça foi sua maior arma”, diz Maria Margaret.  Lima Barreto se mostrava contrário tanto ao falso moralismo quanto a um feminismo que ele julgava elitista e burocrático. “Explicitamente nomeadas como Bertha Lutz ou ironicamente renomeadas como Adalberta Luz, ou simplesmente não nomeadas, as mulheres e os feminismos que corporificaram, os preconceitos que desafiaram, os direitos que reivindicaram ou não, desfilam nas páginas mordazes de Lima Barreto”.



Assim como Bertha, Bruno Lobo, que foi diretor do Museu Nacional, também era desqualificado nas crônicas de Lima Barreto, segundo o qual a influência de Lobo teria sido responsável pelo lugar de destaque então ocupado por Bertha, e não o próprio mérito da cientista. A Bertha das crônicas de Lima Barreto não tinha autonomia, sendo coadjuvante de um processo protagonizado por ilustres políticos e intelectuais homens.



“Agora temos a faladora Bertha Lutz que foi aos Estados Unidos, em Baltimore, creio, dizer que as moças do Brasil se dedicam a ensinar crianças. Grande novidade! Uma coisa, porém, não disse e é que as moças do Brasil se fizeram arautos do feminismo burocrático. O que elas querem é ser escriturárias, mediante concursos duvidosos, em que entram influências ‘brunísticas’, para que tirem os primeiros lugares. Isto é o feminismo à Bruno Lobo, quando não é à Carlos Chagas”, escreveu Lima Barreto na edição de 6 de maio de 1922 da revista Careta.


 Adolpho e Bertha Lutz realizam estudos de campo em Nova Friburgo (RJ), em 1935 (Foto: BR. MN. Arquivo. Fundo Adolpho Lutz)

Adolpho e Bertha Lutz realizam estudos de campo em Nova Friburgo (RJ), em 1935 (Foto: BR. MN. Arquivo. Fundo Adolpho Lutz)





Como demonstra o trecho acima, as críticas do cronista atingiam até Carlos Chagas, embora Adolpho Lutz, pai de Bertha, fosse poupado. Só que, curiosamente, apesar das críticas, Lima Barreto acabou dando ainda mais visibilidade à luta política de Bertha e à sua posição institucional. “Para essas notoriedade e visibilidade, seriam decisivas não só as crônicas de Lima Barreto, mas fundamentalmente a propaganda feminista sufragista na mídia, que as suscitava, a dimensão jornalística da atuação feminista e a coluna (inúmeras vezes redigida pela própria Bertha) que a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino manteve de forma constante, nos anos iniciais de sua carreira, em O País”, afirma Maria Margaret.



Assim, a jovem Bertha – moderna, porém séria, nomeada pelo título de doutora – construía sua carreira, mas ela não estava sozinha. “Apesar da insistência de Lima Barreto em reduzir todo um movimento à persona de Bertha, várias outras mulheres – ainda pouco consideradas – estavam ascendendo e obtendo reconhecimento público em suas carreiras e profissões, muito mais graças à capacitação obtida pela formação especializada, trabalho árduo e longa experiência, do que por suas redes de relações familiares ou políticas”, lembra a autora.



E as conquistas dessas mulheres não foram poucas. Bertha Lutz, por exemplo, era delegada do Brasil na conferência das Nações Unidas que, em 1945, resultou no primeiro instrumento internacional que reconhecia a igualdade de direitos entre homens e mulheres. “As pessoas respeitavam Bertha Lutz pelo que ela era dentro e fora do Museu Nacional. Ninguém mexia com a Dra. Bertha Lutz”, disse certa vez Esmerladino de Souza, que trabalhou como auxiliar da cientista.



Publicado em 30/07/2008


 

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