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10/09/2019

Pesquisadoras da Fiocruz falam sobre atual situação dos agrotóxicos no Brasil

Matheus Cruz (Agência Fiocruz de Notícias)


Em entrevista para a Agência Fiocruz de Notícias (AFN), a pesquisadora da Fiocruz e assessora da Coordenadoria de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho (Codemat) do Ministério Público do Trabalho, Karen Friedrich, e a vice-coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Agrotóxicos da Fiocruz, Aline Gurgel, apresentaram um panorama da atual situação dos agrotóxicos no Brasil. De acordo com as pesquisadoras, as mudanças propostas representam uma grave ameaça à saúde humana, e ocultam as situações de riscos associadas à exposição a diversos agrotóxicos com uso autorizado no Brasil. Elas buscaram explicar os malefícios da nova regulamentação dos agrotóxicos para os trabalhadores rurais e para a população geral. 

As especialistas chamaram a atenção para a definição do que são os agrotóxicos, para o alto número de substâncias liberadas em 2019 no Brasil e para o grande efeito negativo das substâncias ao meio-ambiente. Elas ressaltaram que a exposição aos agrotóxicos pode provocar danos imediatos e tardios em animais e plantas, levando à mortandade de espécies muito importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e a sobrevivência humana, como pássaros, anfíbios, peixes, crustáceos e espécies polinizadoras como as abelhas.

AFN: O que são os agrotóxicos? Para que servem exatamente?

Karen Friedrich: Os agrotóxicos são substâncias utilizadas principalmente na agricultura, para eliminar os seres vivos considerados “indesejáveis”, que surgem espontaneamente no ambiente, como microorganismos, insetos e plantas e que são conhecidos como “pragas” no modelo de produção agrícola predominante e que é dependente do uso de químicos.

As formas comerciais desses produtos, também chamados produtos formulados, podem conter um ou mais princípios ativos de agrotóxicos (também conhecidos como ingredientes ativos) e outros componentes que, em geral, têm a função de aumentar a eficácia do veneno. Essas formulações têm como finalidade a eliminação da vida, e em muitos casos podem afetar tanto a espécie-alvo como outros seres vivos, incluindo o homem.

AFN: Quais são os efeitos colaterais diretos que a exposição/consumo dos agrotóxicos tem no corpo humano e no meio ambiente?

Aline Gurgel: Na saúde, os agrotóxicos podem causar tanto intoxicações agudas quanto problemas que surgem mais tardiamente (crônicos). As intoxicações agudas são aquelas que surgem nas primeiras horas após uma exposição, em geral a doses mais elevadas, e podem incluir sintomas que variam entre dor de cabeça, náuseas, vômitos, tonturas e alterações respiratórias. Os problemas crônicos associados à exposição aos agrotóxicos podem demorar muitos anos para aparecer, e incluem o surgimento de cânceres, de mutações no material genético, desregulação hormonal, danos ao sistema reprodutivo masculino e feminino, malformação em bebês e outros problemas graves e potencialmente irreversíveis.

No ambiente, os agrotóxicos também podem provocar danos imediatos e tardios em animais e plantas, levando à mortandade de espécies muito importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e a sobrevivência humana, como pássaros, anfíbios, peixes, crustáceos e espécies polinizadoras como as abelhas.

AFN: A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) colocou em votação para sua diretoria (em Brasília), em 23 de julho, a proposta de uma nova avaliação para a classificação toxicológica de agrotóxicos. Como a Fiocruz, de forma geral, vê essa medida? Como era e como passará a ser a nova classificação sobre os agrotóxicos regulamentada pela Anvisa?

Karen: Com a adoção das mudanças, os resultados dos estudos toxicológicos de lesões na pele, oculares e no aparelho respiratório não mais serão utilizados para fins de classificação toxicológica, servindo apenas para estabelecer a comunicação do perigo dos produtos – que é feita mediante a apresentação de informações nos rótulos dos produtos, por exemplo. Assim, produtos que hoje são classificados como “extremamente tóxicos” por provocarem corrosão ou inflamações na pele ou nos olhos serão reclassificados considerando apenas o risco de morte.

As mudanças propostas representam uma grave ameaça à saúde humana, e ocultam as situações de riscos associadas à exposição a diversos agrotóxicos com uso autorizado no Brasil. Do ponto de vista da comunicação do risco, os agrotóxicos considerados nocivos caso ingeridos, inalados ou em contato com a pele não apresentarão mais o símbolo da caveira com duas tíbias cruzadas, que tradicionalmente indica perigo; terão apenas uma exclamação seguida da palavra de advertência “cuidado”. Já os agrotóxicos que podem ser perigosos se ingeridos, inalados ou em contato com a pele não apresentarão mais qualquer símbolo de alerta, sendo classificados como “improváveis de causar dano agudo”. Tais mudanças ameaçam a vida, considerando que a exposição a esses produtos pode provocar danos severos e irreversíveis, como lesões oculares que podem levar à cegueira; dificuldade respiratória, que pode levar à morte celular por falta de oxigênio e alergias e queimaduras graves na pele.

AFN: Como você vê a liberação de, até o momento, 290 substâncias tóxicas no Brasil desde o começo de 2019? Qual é o impacto econômico, sanitário e ambiental dessas liberações? É um número alto de liberações ou é considerado normal?

Aline: Até o momento foram liberados 290 produtos de agrotóxicos, que incluem por exemplo produtos técnicos e produtos formulados. Destes, apenas um tratava-se de um ingrediente ativo novo, sobre o qual existem fortes evidencias de impactos sobre abelhas. Os demais incluem produtos em geral contendo mais de um princípio ativo, cujas interações potencialmente toxicas não são investigadas antes da liberação. Também é preocupante o fato de produtos que se encontram em processo de revisão pela Anvisa há mais de 10 anos tenham sido liberados, uma vez que a motivação da reavaliação é a suspeita da relação desses produtos com efeitos considerados proibitivos para fins de registro, como é o caso dos cânceres, desregulações hormonais, alterações no material genético (mutações), malformações em crianças e danos ao aparelho reprodutivo. Dentre os produtos liberados também se encontram alguns de toxicidade reconhecida para abelhas e que por tal razão foram proibidos na Europa. Também vale destacar que essa agilidade na liberação, em parte por conta de maior celeridade nos processos junto à Anvisa, bem mais numerosa que a ocorrida nos últimos anos, derruba um dos argumentos que o agronegócio utiliza para defender a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.299, que busca alterar a legislação de agrotóxicos no país, que é a demora na aprovação do registro desses produtos.

AFN: Qual a importância da Anvisa no contexto das liberações e para o Brasil?

Karen: No Brasil, o processo para a liberação de uso, comercialização e fabricação de um agrotóxico é realizado por três órgãos, cada qual em sua área de competência. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) avalia os impactos ambientais dos agrotóxicos. O Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) analisa a eficácia agronômica. Já a Anvisa desempenha papel fundamental e insubstituível no sistema de regulação de agrotóxicos, que inclui não somente a avaliação dos impactos sobre a saúde humana para fins de registro de novos agrotóxicos e reavaliação dos já em uso, mas também no monitoramento de resíduos dessas substâncias em alimentos. Esses papeis devem continuar a ser desempenhados pela Agência, assegurando sua autonomia e primando pelo interesse público de proteção da saúde das pessoas contra intoxicações. Para isso, é importante dar celeridade também na reavaliação de produtos obsoletos, de elevada toxicidade, e associados a doenças graves como o câncer e já proibidos em outros países por essas razões.

AFN: Como o tema dos agrotóxicos se relaciona com o Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação e o SUS?

Aline: O Sistema Único de Saúde (SUS) desenvolve ações voltadas para enfrentamento dos impactos dos agrotóxicos em todos os níveis de atenção e de complexidade, dada a magnitude dos problemas relacionados à exposição a esses agentes. São desenvolvidas desde ações de promoção da saúde e prevenção de agravos por exposição aos agrotóxicos junto às populações expostas, passando por ações de assistência e reabilitação dos casos de intoxicação, realização de exames, fornecimento de medicamentos e realização de tratamentos específicos, bem como ações de vigilância – epidemiológica, sanitária, ambiental e do trabalhador – que envolvem investigação e notificação de casos, monitoramento de alimentos, ambiental e humano, registro e reavaliação de agrotóxicos, fiscalização de ambientes de trabalho, dentre várias outras iniciativas.

Ainda, há a realização de pesquisas em instituições vinculadas ao Ministério da Saúde, como o Inca e a Fiocruz, que investigam os impactos dos agrotóxicos sobre a saúde das pessoas; a agroecologia na perspectiva da promoção da saúde; a formação e capacitação de atores estratégicos, bem como atuam para o fortalecimento e estruturação da capacidade analítica laboratorial para monitoramento de resíduos de agrotóxicos em diferentes matrizes. No caso da Fiocruz, o [Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde] INCQS e o [Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana] Cesteh não somente atuam em prol do fortalecimento da rede laboratorial, como também pesquisam a presença de agrotóxicos em água, solo e alimentos. Em seu conjunto, essas e outras ações se voltam ao fortalecimento das ações de prevenção de adoecimento, diagnóstico e tratamento dos casos.

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