26/11/2024
“Nenhum desastre deve ser naturalizado”. Esse é o pressuposto defendido pelo coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Carlos Machado, quando o assunto é a emergência climática. Em entrevista, ele explica que não se deve tratar as mudanças climáticas como descoladas de grandes transformações socioambientais. Essa compreensão implica em assumir a responsabilidade por decisões políticas que podem minimizar ou agravar consequências de eventos climáticos extremos.
Para o pesquisador, a saúde tem sido atingida de diversos modos pelos eventos climáticos extremos: tanto pelos impactos na saúde da população contribuindo para aumento de doenças e agravos, como também pelos impactos nos serviços de saúde, afetando as capacidades de vigilância e cuidados em saúde quando mais se necessita. Ele considera que “não é mais aceitável a construção de um hospital, UPA, UBS ou laboratórios sem que atenda aos princípios de adaptação, resiliência, sustentabilidade e segurança”, de modo a garantir que o setor saúde possa efetivamente contribuir para os cuidados necessários e a redução de riscos de doenças.
Carlos Machado explica ainda porque é fundamental investir nas duas pontas dos processos que envolvem a gestão de riscos de desastres: na prevenção, nas fases pré-desastres, bem como processos de recuperação e reconstrução nas fases pós-desastres. Leia a entrevista completa.
Informe Ensp: Desastres relacionados à emergência climática não são meramente naturais. Qual é o peso do modelo de desenvolvimento econômico vigente, marcado pela desigualdade social, nesse problema?
Carlos Machado: Os desastres possuem origens distintas, baseadas nos tipos de perigos ou ameaças que são identificados e seguem uma classificação internacional. Há eventos disparados por processos da natureza, como os climáticos, hidrológicos, geofísicos/geológicos, meteorológicos ou mesmo biológicos, além dos de origem tecnológica (química, radioativa ou nuclear). No entanto, nenhum desastre deve ser naturalizado, que é o que acontece comumente quando autoridades públicas - ou mesmo a imprensa - se pronunciam sobre tais eventos, procurando retirar as responsabilidades das decisões políticas dos gestores dos municípios, estados ou mesmo do país. Mas a origem do desastre deve ser bem caracterizada. Por isso, o conceito de desastres que adotamos envolve uma combinação de eventos e processos.
"No âmbito da saúde pública, para que um evento se constitua em um desastre é necessário que combine alguns fatores que devem ser bem compreendidos. Primeiro, é necessário um evento detonador, conceituado como perigo ou ameaça, que se relaciona a qualidade dos eventos físicos que podem ser gerados pela dinâmica da natureza (geológicas, hidrometeorológicas, biológicas) ou da sociedade (degradação ambiental ou ameaças tecnológicas como rompimentos de barragens, acidentes químicos e nucleares). Este evento deve resultar na exposição de populações humanas, gerando o potencial de danos e agravos à saúde. E estes serão mais ou menos graves a depender das condições de vulnerabilidade, que resultam tanto na propensão de uma comunidade ou sociedade de sofrer de modo mais intenso e grave os efeitos dos desastres, como também nas limitações das capacidades de redução de riscos e de resiliência frente a estes eventos" (Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e construção da resiliência: lições do terremoto no Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil).
Informe Ensp: Nos campos da saúde pública e da saúde coletiva, o que tem sido discutido em relação às transformações ambientais e às mudanças climáticas? O tema é visto como prioridade?
Carlos Machado: Entre diferentes profissionais da Saúde Coletiva, há uma preocupação muito grande em não naturalizar os desastres - o que não significa reconhecer que sejam de origem natural como evento disparador de processos que envolvem exposição, vulnerabilidades e capacidades de redução de riscos no âmbito da sociedade. Ou seja: não tratar as mudanças climáticas como algo dissociado de um conjunto de grandes transformações socioambientais, das quais destacamos:
1) o desmatamento, as queimadas e a modificação de habitats naturais, o que contribui tanto para perda de biodiversidade, como também para incrementar as mudanças climáticas, como também zoonoses; 2) a ampliação e intensificação das atividades agrícolas e pecuárias que, além de contribuir para desmatamentos e queimadas, provocam outro tipo impacto ambiental e na saúde, que tem a ver com o uso intensivo de agrotóxicos. Isso contamina solos, rios, fauna, flora e a vida de comunidades direta e indiretamente expostas; 3) Projetos de irrigação e construção de represas, o que altera os ciclos hidrológicos e ecológicos dos rios, e ainda tende a agravar situações de desastres hidrológicos, uma vez que rompimento de represas tem sido uma situação que encontramos se sobrepondo aos desastres envolvendo inundações; 4) a construção de estradas ampliando e intensificando a mobilidade e o acesso a áreas e regiões protegidas, o que também aumenta os processos de desmatamento e queimadas, bem como de garimpo ilegal e outras atividades que degradam o ambiente; 5) as atividades de extração e mineração de recursos naturais renováveis e não-renováveis (lembremos que o Brasil é um produtor de petróleo e o maior desastre relacionado a isso em termos de extensão territorial foi o de 2019, que afetou grande parte do nosso litoral, principalmente do Nordeste. Já as atividades de mineração produziram os dois maiores desastres em barragens do século 21, ambos no Brasil, em MG nos anos de 2015 e 2019); 6) o crescimento das cidades e a concentração populacional nos ambientes urbanos sem um planejamento de uso e ocupação do solo sustentáveis e seguros (este processo está presente em quase todos os desastres de origem climática no país). Temos visto uma crescente concentração populacional em muitas áreas suscetíveis a inundações ou deslizamentos de terra sem que medidas preventivas sejam tomadas; 7) a produção de bens industriais e suas formas de apropriação de energia (nos períodos de estiagem utilizando termoelétricas que são altamente poluentes), matérias-primas e produção de poluição e resíduos em larga escala, contribuindo para uma degradação do ambiente nos níveis local, regional e global.
Este conjunto de processos tem que ser compreendido como integrante de um modelo de desenvolvimento econômico ainda dominante nos níveis global e nacional, que torna cada vez mais difícil separar os processos da natureza dos processos sociais, econômicos, políticos e culturais, e que contribuem para direta e indiretamente alterar e degradar os ciclos da natureza (como os do clima e das águas, por exemplo).
Informe Ensp: E como o setor de saúde é afetado pelos fenômenos extremos?
Carlos Machado: O setor Saúde tem sido atingido de diversos modos. Por um lado, pelos impactos na saúde da população, o que sobrecarrega em termos de recursos (humanos e financeiros) um sistema que já se encontra sobrecarregado e subfinanciado para enfrentar estes novos desafios. Por outro lado, os próprios serviços de saúde (hospitais, UBS, UPA, laboratórios, etc.) tem sido atingidos, o que totaliza mais de R$ 1,3 bilhões em pouco mais de 30 anos (entre 1991 e 2023), segundo dados da Defesa Civil Nacional. Isso mesmo considerando que há uma ausência regular deste tipo de notificação, já que num estudo que realizamos não havia dados documentados sobre danos ou impactos para cerca de dois terços dos registros. Os dados que temos permitem apontar o problema, mas ainda não estimar de modo preciso um impacto que é inegável.
Informe Ensp: Essa realidade é observada apenas no Brasil e em outros países considerados “em desenvolvimento”?
Carlos Machado: Estamos diante de uma nova realidade com as mudanças climáticas. Estive em Valência, na Espanha, e saí de lá um dia antes do desastre envolvendo a DANA (que é uma condição de instabilidade atmosférica que pode resultar em chuvas torrenciais), que foi no dia 29 de outubro, com mais de 200 mortos. Valência é a terceira maior cidade da Espanha e o país é a quarta maior economia da União Europeia. Acompanhei de perto todos os noticiários e é incrível que mesmo países em condições econômicas e sociais melhores do que as nossas não estejam preparados para estes eventos extremos. As investigações têm demonstrado desde falhas no sistema de alerta (o que só chegou para a população quando o evento já estava ocorrendo), bem como falta de coordenação envolvendo principalmente o Presidente da Comunidade Valenciana. Ele afirmou, como a maioria dos governantes, que ninguém poderia esperar um desastre daquela magnitude, ainda que para muitos especialistas já fosse previsto que iria acontecer.
Informe Ensp: Então é preciso que os sistemas de saúde se adaptem às mudanças climáticas e desenvolvam resiliência. De que forma? Há necessidade, por exemplo, de planos de contingência para as unidades básicas e hospitais?
Carlos Machado: É fundamental mudar o paradigma. Ao mesmo tempo que temos de ter uma melhor preparação para as respostas a estes eventos (nisso o Brasil avançou bastante), é fundamental investir nas duas pontas dos processos que envolvem a gestão de riscos de desastres. A prevenção, nas fases pré-desastres, bem como processos de recuperação e reconstrução nas fases pós-desastres, devem ser guiadas por critérios básicos, como ser ambientalmente sustentável, socialmente justo (a questão das moradias e condições de vida se coloca como fundamental), politicamente democrático (é fundamental envolver as comunidades locais de modo efetivo desde os processos de prevenção até os de reconstrução) e seguro para as populações e os trabalhadores do SUS.
Tanto em Valência, na Espanha, como aqui, no Rio Grande do Sul, vimos comunidades inteiras afetadas por um processo de ocupação ao longo dos anos que não respeitou estes critérios. Além disso, processos de adaptação e resiliência são fundamentais de serem incorporados no setor saúde como um todo. Não é mais aceitável a construção de um hospital, UPA, UBS ou laboratórios sem que atenda aos princípios de adaptação, resiliência, sustentabilidade e segurança. E estes mesmos princípios devem orientar a adequação dos estabelecimentos de saúde já existentes. É fundamental que, além dos planos de contingência no nível municipal ou mesmo do setor saúde de forma geral, os estabelecimentos de saúde também tenham seus planos, com os trabalhadores participando deste processo para sua própria segurança e da população que atende.
Informe Ensp: Diante deste cenário, quais são suas perspectivas?
Carlos Machado: Teremos o ano de 2024 como o mais quente já registrado, caminhando para ser o primeiro a atingir o limite de 1,5 °C acima das temperaturas pré-industriais, que era a elevação máxima de temperatura do planeta considerada até o fim do século 21. Os eventos extremos que estamos assistindo neste ano nos dão uma amostra dos riscos dos quais estamos diante. Entretanto, nossas estruturas governamentais, sociais, políticas e econômicas ainda funcionam como se estivéssemos no século 20, não considerando que o mundo mudou e bastante. É necessário agirmos e já, tratando este cenário como uma emergência climática, que é também o de uma emergência em saúde não como um evento individual, mas como um processo carregado de um conjunto de eventos climáticos extremos.