Repensar o papel das políticas de publicação para que a ciência possa se tornar uma importante ferramenta de transformação para a cidadania. Essa foi a premissa da Aula Inaugural da Fiocruz, realizada na manhã de hoje (10/3), no auditório do Museu da Vida, no campus de Manguinhos, no Rio de Janeiro. O evento, cujo tema foi Ciência, sociedade e política de publicação, teve como conferencista a pesquisadora do Centro de Pesquisas em Geografia Ambiental da Universidade Autônoma do México, Hebe Vessuri - pioneira nos estudos sociais de ciência na América Latina e doutora em Antropologia Social pela Universidade de Oxford, na Inglaterra.
A aula inaugural do ano letivo da Fiocruz em 2015 teve como tema Ciência, sociedade de política de publicação (Foto: Peter Ilicciev)
O contexto de mudanças e transformações também marcou os discursos de abertura do evento, que contou com a presença do Presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha; da vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação, Nísia Trindade Lima, da presidente da Asfoc/SN, Justa Franco; do coordenador dos Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Capes, Guilherme Werneck, e do doutorando Hermano Albuquerque, coordenador da Associação de Pós-Graduandos (APG) da Fiocruz.
Hermano Albuquerque abriu a sessão falando sobre o papel da APG na Fundação para garantir os direitos e benefícios dos pós-graduandos. Criada em 2012, a Associação conta com 11 membros de diferentes unidades (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS)) e possui cinco linhas de atuação: articulação interna e externa, apoio à publicação, redes sociais (“para dialogar e descobrir novas demandas dos alunos”, conforme ressaltou o doutorando) e assistência. “Construímos ciência junto com os pesquisadores, mas com menos direitos. Cuidamos desde questões como habitação, alimentação e transporte, à atenção à saúde e reajuste de novas bolsas”, explicou. “É preciso repensar o papel do pós-graduando, que é um híbrido – já passou da fase de estudante, mas ainda não é um pesquisador. Não por acaso, nossa chapa foi ´desculpe o transtorno, estamos em reforma’.
“É muito importante essa troca entre alunos e pesquisadores”, endossou a presidente da Asfoc, Justa Franco, após uma saudação pelo Dia das Mulheres Troca essa que, para o coordenador das Pós-Graduações em Saúde Coletiva da Capes, Guilherme Werneck, considera fundamentais para que as mudanças no processo de produção científica sejam implementadas. De acordo com Werneck, a Fiocruz detém 15% dos cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva do país, o que torna o debate fundamental para a avaliação e mudança de “um sistema ultrapassado que não reflete as atuais necessidades de pesquisa”.
Citando a chapa da APG/Fiocruz, “Desculpe o transtorno/Estamos em reforma”, a vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação, Nísia Trindade Lima, afirma que a aula reflete o momento atual da Fiocruz, no sentido de repensar a avaliação. “A Presidência está bastante engajada nesse movimento, com fóruns e espaços de discussão”.
O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, convidou a pensar que tipo de ciência a Fundação pode devolver para a sociedade, uma vez que “a Fiocruz tem um papel central em pensar temas sensíveis ao futuro do país”, e destacou as ações de ensino, pesquisa e formação em conjunto com o Ministério da Saúde. “A formação de recursos humanos para o SUS tem sido pouco objeto de reflexão. Hebe Vessuri sempre foi uma grande referência. A ciência se coloca como um desafio na dimensão da cidadania e para o debate das políticas públicas de saúde”.
Lançamento do Portal de Periódicos e homenagens
Após a abertura, a programação seguiu com o lançamento do Portal de Periódicos [1] científicos da Fiocruz, projeto reúne num único endereço virtual todas as publicações produzidas pelas diferentes unidades da Fundação, como parte da Política de Acesso Aberto da Fundação e democratização da ciência. Foi exibido um vídeo com depoimentos dos editores das revistas científicas reunidas no espaço virtual. Ao final da exposição, Jaime Benchimol e Hooman Momen receberam placas de homenagem pelo trabalho à frente das publicações História, Ciências, Saúde – Manguinhos e Memórias do IOC, respectivamente.
Excelência versus qualidade
A exposição de Hebe Vessuri, que tem contribuído para o surgimento e consolidação do campo de estudos sociais da ciência e tecnologia na América Latina e a criação de programas de investigação e formação avançada em vários países, foi marcada por uma crítica aberta à competição científica. Ela abriu a conferência defendendo as mudanças de indicadores de qualidade, que hoje são realizadas pelo número de citações publicadas e a noção de excelência. “A intenção da ciência deveria ser a melhoria da qualidade de vida do cidadão. Isso não vai acontecer se existir apenas a competição intensa”, destacou.
Hebe Vessuri criticou a falta de reconhecimento das publicações científicas latino-americanas (Foto: Peter Ilicciev)Além de limitar a ciência a um grupo restrito, Vessuri acredita que os parâmetros atuais de avaliação desestimulam a criatividade e a originalidade nos temas de pesquisa, pois seriam escolhidos apenas os que se “enquadram” à publicação. “Ser visto significa ser aceito pelo ‘clube de elite’, onde a entrada é ‘monitorada e controlada’. Nesse ‘clube de elite’, as publicações latino-americanas nascem em desvantagem pela “barreira” do idioma (espanhol e português). As revistas nacionais e locais devem lutar para ser reconhecidas”. Os efeitos dessa política de avaliação, segundo a pesquisadora, é deixar de fora questões importantes como, para citar o campo da saúde, as doenças negligenciadas.
Para Hebe Vessuri, o open access pode ser uma alternativa à internacionalização não ligada ao mainstream. “Esse movimento tem sido muito importante para a América Latina, que lançaram versões eletrônicas de suas publicações muito antes do open access, e tem sido adotadas pelo sistema de avaliação local”, informou. “A estrutura de poder científico está sendo modificada pelo open access, que questiona a natureza da ciência. Para os países em desenvolvimento, pode ajudar a destituir a avaliação tradicional”.