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10/09/2013

Saúde Pública e Propriedade Intelectual

Claudia Chamas


Nos anos 90, a profunda reforma do sistema internacional da propriedade intelectual trouxe novos desafios para os países em desenvolvimento e as instituições de saúde pública. Em 1994, a formalização do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo Trips) com a finalização da Rodada Uruguai moveu o tema da propriedade intelectual para o âmbito do comércio e elevou os níveis gerais de proteção e enforcement.  A cobertura patentária para produtos e processos farmacêuticos passou a ser obrigatória, levando à redução das assimetrias entre as políticas de patentes no mundo.  O aumento dos níveis de patenteamento deu-se em paralelo ao aumento global dos casos de HIV/Aids e uma intensa discussão sobre acesso à saúde entre governos, sociedade civil, acadêmicos, pacientes, empresas, entre outros.  O início dos anos 2000 foi marcado por tensões entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, especialmente no entendimento da implementação do Acordo e das suas flexibilidades.  A Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e a Saúde Pública, aprovada em 2001, foi necessária para reafirmar o direito dos países de aplicar licenças compulsórias e liberdade para definir as razões para a sua concessão, por exemplo.

No Brasil, o Acordo Trips foi internalizado por meio da Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279, de 1996), que possibilitou a concessão de patentes para todos os campos tecnológicos, inclusive farmacêutico e biotecnológico e as patentes pipeline.  A Lei contemplou diversas possibilidades de licenciamento compulsório e o mecanismo da anuência prévia.

Em 2004, uma nova Lei foi criada para fomentar a inovação no Brasil e estimular a cooperação entre instituições acadêmicas e empresas.  A Lei da Inovação (Lei n. 10.973, de 2004) deu ênfase à propriedade intelectual e transferência de tecnologia, determinando a criação dos núcleos de inovação tecnológica e dando contorno às competências mínimas dos núcleos. A Lei emerge em uma conjuntura de retomada dos instrumentos de política industrial e necessidade de intervenções e estímulos para a inovação e produção em saúde.  Nesse contexto, instituições como a Fiocruz buscaram aperfeiçoar o seu aparato institucional, com o desenvolvimento de regras e uma rede conhecida como Sistema de Gestão Tecnológica e Inovação (Gestec-NIT).  O Sistema visa a articular demandas das diferentes Unidades da Fundação e fornecer os recursos para assistência aos inventores da Fiocruz e competências para acordos tecnológicos e de transferência de materiais (biológicos, e.g.).  Vale ressaltar a ação das Unidades de produção, que desenvolveram expertise para a negociação, a absorção e o licenciamento de tecnologias e a avaliação de acordos, buscando evitar a existência de cláusulas contratuais abusivas, que impõem obstáculos ao desenvolvimento tecnológico e econômico.

A atuação da Fiocruz não esteve restrita às questões de aplicação da Lei, mas em vários outros campos. A instituição participou ativamente do debate político que culminou com a concessão da primeira licença compulsória para um produto de saúde no Brasil.  Em 2007, a licença das duas patentes do Efavirenz fez-se necessária em função do preço  elevado do produto no País e envolveu a formação de um consórcio  (Farmanguinhos, Lafepe, Globequímica, Cristália e Nortec) para viabilizar a internalização da tecnologia  e fabricação local.  Hoje, o fornecimento do antiretroviral é fruto da produção brasileira.

Após a assinatura do Acordo Trips e a sua implementação nos países, o cenário internacional não ficou estagnado.  Houve um acirramento da busca por novos acordos em níveis bilateral e plurilateral, com a imposição de regras em patamares mais elevados do que o que foi acordado em Trips.  Estas regras, conhecidas como Trips plus, enfraquecem os entendimentos no plano multilateral e causam danos às políticas de acesso em saúde, posto que restringem os conteúdos em domínio público e colocam obstáculos adicionais à transferência de tecnologia.  A recente escolha do brasileiro Roberto Azevedo para a diretoria geral da Organização Mundial do Comércio é um relevante sinal enviado por muitos países em desenvolvimento, privilegiando o resgate do multilateralismo na agenda internacional.

Um exemplo marcante de medida Trips plus foi a apreensão dos 500 quilos do medicamento Losartan, produzido pela empresa Dr. Reddy''s, que foram embarcados na Índia com destino ao Brasil. A retenção do produto foi feita pela aduana da Holanda sob a acusação de suposta violação de patente, embora o produto não contasse com proteção patentária na Índia ou no Brasil. Além de inconsistentes com o princípio do livre trânsito de mercadorias e a independência das patentes (Convenção de Paris), estas regras colocam novas barreiras ao direito dos países menos favorecidos de acesso a medicamentos a preços compatíveis com sua realidade.

Um segundo exemplo na esfera internacional diz respeito à decisão da Suprema Corte da Índia sobre o Glivec, em maio do corrente ano.  Ao negar o desejo do titular para a concessão de aperfeiçoamento de uma molécula já conhecida, o caso tornou-se um desdobramento importante do alcance e dos limites do Acordo Trips e poderá trazer grandes lições para os países em desenvolvimento e as políticas de genéricos.

Hoje, a permanente análise deste panorama é crucial para a confecção de políticas de saúde que atendam aos objetivos do SUS, uma vez que os monopólios formados pela proteção patentária afetam diretamente os preços dos produtos, agravando contextos marcados por escassez de recursos.

Claudia Chamas é vinculada ao Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz

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