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26/10/2016

Seminário debate uso de álcool por diferentes populações

Pamela Lang (Agência Fiocruz de Notícias)


O uso do álcool em diferentes populações e contextos. Esse foi o tema da mesa que marcou a manhã do segundo dia do Seminário Internacional Álcool, Saúde e Sociedade, promovido pela Fiocruz nos dias 25 e 26 de outubro. Na mesa, estavam presentes Luciane Ouriques, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural, e Antônio Nery Filho, professor do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas, da Universidade Federal da Bahia. A mediação ficou por conta de Francisco Netto, assessor da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz.

Uso de álcool por populações indígenas e pessoas em situação de rua foi o tema da mesa da manhã de terça-feira (25) do seminário (foto: Virginia Damas, Ensp/Fiocruz)

 

O álcool é um problema para a população indígena? O que ele significa para as comunidades indígenas e quais as propostas para solucionar o problema? Para a pesquisadora Luciane Ouriques, as respostas para essas perguntas devem ser devem ser buscadas junto às próprias comunidades, numa abordagem que considere as especificidades culturais que tal fenômeno adquire neste universo.

Um diagnóstico participativo conduzido por Luciane, junto a 21 aldeias Mbyá-Guarani, no Rio Grande do Sul, apontou que os fatores que contribuem para a formação do fenômeno do consumo abusivo de álcool nestas comunidades são: terra e ambiente natural insuficiente e/ou inadequado para a reprodução do modo de ser tradicional; proximidade dos grandes centros urbanos; acesso fácil às bebidas alcoólicas; inexistência da opy (casa de reza); inexistência do karaí (rezadores) e da prática do conselho; não atualização dos rituais tradicionais; trabalho assalariado fora da aldeia; conduta da liderança (se faz uso de bebida alcoólica ou não).

“O diferencial dessa pesquisa foi a metodologia utilizada. Não se tratava de uma intervenção de saúde pública na aldeia. Era importante quebrar o tabu, que eles próprios falassem sobre o tema e propusessem soluções e intervenções. Os Karaí se reuniram com os líderes das aldeias durante três dias e, em seguida, por mais dois dias com profissionais de saúde”, revelou a pesquisadora.

A partir dos debates promovidos, as aldeias iniciaram um trabalho para regular a bebida alcoólica e reduzir os danos e os problemas que eles próprios identificaram em suas comunidades. Algumas propostas foram consensuadas: passaria a haver um sistema de aconselhamento por meio das ‘boas palavras’, consideradas pelos indígenas como palavras sagradas e verdadeiras, a linguagem comum a homens e deuses; todas as aldeias deveriam ter suas próprias casas de reza; e a aceitação da inserção da medicina do ‘branco’ em suas comunidades.

Para a pesquisadora Luciane Ouriques, as respostas para o uso abusivo de álcool por indígenas devem ser buscadas junto às próprias comunidades (foto: Virginia Damas, Ensp/Fiocruz)

 

De fato, segundo Luciane Ouriques, essas medidas diminuíram a violência e os acidentes relacionados ao consumo abusivo de álcool nas comunidades Mbyá-Guarani. Mas um problema persistia: a abordagem de tratamento do indivíduo. “O indivíduo que é dependente e precisa de auxílio é internado num hospital psiquiátrico para fazer a desintoxicação. Ele acaba ficando numa ala de psicóticos não-indígenas, sai sem nenhum acompanhamento e volta para a aldeia, onde um parente vai lhe oferecer novamente a bebida e ele, que está dentro de um sistema de reciprocidade, não pode dizer não e tem uma recaída”, apontou a antropóloga.

Ouriques aponta a necessidade de se construir estratégias conjuntas entre as instituições governamentais e os grupos indígenas para que o trabalho tenha sustentabilidade ao longo do tempo, alcançando os objetivos colocados tanto pela população indígena, quanto pelos setores públicos. Para ilustrar um caso em que essa prática dialógica foi bem sucedida, a pesquisadora conta a história de uma índia guarani de 22 anos que havia matado o filho de um ano e seis meses de idade. Para a racionalidade Guarani, o modelo diagnóstico da psiquiatria, que havia apontado psicose alcoólica, não fazia sentido na racionalidade Guarani. A comunidade indígena se questionava: todos na aldeia bebem e nem por isso matam seus filhos; se a mulher já bebia há muito anos, por que só agora resolveu matar o filho? Para os Guarani, a mulher havia sido vítima de feitiçaria. E, por outro lado, a feitiçaria também não fazia sentido na racionalidade psiquiátrica.

“A nossa atuação não foi no sentido nem de convencer os Guarani da verdade psiquiátrica, nem de convencer o psiquiatra da verdade Guarani. Havia uma instância de consenso: houve um problema; era um problema de saúde e uma medida tinha que ser tomada. E foi no âmbito da prática que o consenso de atuação foi criado. Hoje, essa índia foi reinserida na comunidade, casou-se novamente, teve mais um filho e é acompanhada por um psiquiatra e por um karaí. Ou seja, o diálogo entre essas duas lógicas, esses dois conhecimentos, essas duas racionalidades permite que se encontrem caminhos para se tratar e cuidar das pessoas que sofrem as consequências do abuso do álcool”, explica Luciane.

População em situação de rua: uma geografia do sofrimento

Aprender a enxergar o problema sob a perspectiva do outro e entender o contexto em que a droga se insere parece ser parte fundamental da solução para formulação de políticas públicas mais eficientes. Para o professor Antônio Nery, o discurso geral acaba se centrando no produto, seja ele o crack, o álcool, a maconha, ou qualquer outra droga, e ignora o sujeito usuário e seu contexto sóciocultural. “É preciso resignificar a droga e seus significantes. Temos tratado as vulnerabilidades físicas e não as psíquicas e sociais. Ou seja, focamos na droga e não no sujeito”, comentou Nery.

“É preciso resignificar a droga e seus significantes", destacou o professor Antônio Nery (foto: Virginia Damas, Ensp/Fiocruz)

 

E foi com esse espírito que Antônio Nery criou, ainda em 1995, o Consultório de Rua, uma equipe multidisciplinar, destinada ao trabalho com usuários de drogas em seus locais de convivência. Segundo o professor, o que ele encontrou ao iniciar esse trabalho foram pessoas marcadas por um enorme sofrimento. “As pessoas em situação de rua carregam uma grave história biológica e uma grave história social. Somente conhecendo as duas histórias é que conseguimos chegar à história psíquica dessas pessoas. O lugar do nascimento de uma pessoa é onde se inauguram as suas possibilidades e essas pessoas foram alcançadas por uma vulnerabilidade que precisamos compreender. Existe uma geografia do sofrimento sobre a qual precisamos nos debruçar”, refletiu Nery.

Nesse sentido, a droga se insere como uma tentativa de diminuir esse sofrimento, uma possibilidade de suportar a própria vida. Segundo Nery, o crack, por exemplo não seria uma epidemia, mas o retrato de um sofrimento monstruoso entre essas pessoas. Em 2012, Nery apostou em mais uma experiência: o Ponto de Encontro, uma casa, aberta aos invisíveis, excluídos, usuários de drogas, e com baixíssimos níveis de exigência para o acolhimento. Em pouco mais de um ano, o Ponto reunia quase uma centena de pessoas, confiando no diálogo e na capacidade criativa de uns e outros. “A maioria daquelas pessoas tem uma enorme capacidade destrutiva. Cresceram sem a habilidade de construir e reconstruir. E durante um ano e meio, por meio de reuniões e assembleias, mostramos para eles que era possível um recomeço”.

Por decisão do poder público, o Ponto de Encontro saiu do âmbito da Universidade Federal da Bahia e a nova orientação administrativa e técnica levou ao afastamento da equipe. Incansável, Antônio não perdeu as esperanças e a vontade de trabalhar com essa população. Em 2014, com base no sucesso da experiência anterior, criou o Ponto de Cidadania. Apesar do projeto receber apoio da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, o professor afirma que o Estado nunca vai ser capaz de solucionar a questão das drogas apenas com a regulação.

“Sim, a grande maioria das pessoas em situação de rua usa não apenas o álcool, mas todas as drogas possíveis. E acho sim que precisamos falar da regulação das drogas, das legais e das ilegais, controlar o acesso, definir idade e locais de venda e isso reduziria boa parte da violência ligada ao tráfico. Mas o uso abusivo das drogas não será resolvido pelo Estado ou pela lei. Para isso, temos que voltar ao ethos, refazer nossos pactos sociais, reconhecer nossas diferenças e implantar outra forma de comunicação”, concluiu Antônio Nery.

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