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06/07/2017

Sociologia Ambiental em um momento histórico de profundas mudanças

Carlos José Saldanha Machado*


Atravessamos um momento histórico de profundas mudanças, contradições e radicalismos que expressam os limites paradigmáticos de um modelo de civilização e desenvolvimento que vem sendo consolidado no último século e intensificado nos últimos 50 anos, com a predominância do capitalismo neoliberal que tem se esforçado para uniformizar a humanidade através de uma plêiade de ações, em escala planetária, conhecida como globalização. Esse termo refere-se àqueles processos que tendem a criar e consolidar uma economia mundial unificada, transformando recursos naturais em matérias-primas e energia sem levar em consideração os sistemas biológicos e físicos que sustentam a vida na Terra.

O aumento do fluxo de capitais torna-se mais importante do que as atividades de produção e de comercialização de produtos e a sua consolidação se dá através de uma complexa rede de comunicações. Integrada por tecnologias de telecomunicações, espaciais (foguete espacial e satélite artificial) e de informação e comunicação (internet e World Wide Web, ou Web), essa rede abarca todo o globo e liga localidades distantes, mesmo não penetrando em todas as relações sociais dos territórios de cada parte de um planeta habitado por mais de sete bilhões de pessoas.

Tais processos tendem a tornar o mundo mais interdependente, juridicamente regulado através de regimes os mais variados, que incluem formas de coordenação e de organização públicas e privadas; mas isso não significa que estamos nos movendo inexoravelmente em direção a um governo único mundial, a um único modelo de governança, nem significa o fim dos estados nacionais como atores importantes nas dinâmicas de enraizamentos territoriais da globalização.

Os governos nacionais fazem escolhas monetárias de políticas macroeconômicas, reforçam um sistema tributário que amplia a acumulação capitalista de poucos ao invés de promover a distribuição de renda para muitos, liberam os mercados financeiros, viabilizando a financeirização da economia, privatizam as empresas nacionais, desregulam a regulamentação comercial, flexibilizam os mercados de trabalho, reduzem os orçamentos da proteção social, convergem para a criação de novos mercados como o da bioeconomia, e mantêm, ao mesmo tempo, uma forma usual e consensual, ainda que genérica, de apostar no ‘desenvolvimento’ como uma ideia correlata de crescimento, de progresso e de evolução humana, o ideário de todos os processos bem-sucedidos. Tal ideia, que postula a infinitude dos recursos naturais e a infinitude do desenvolvimento rumo ao futuro, constitui um determinado tipo de ser humano, de profissional, de relação com a natureza e um modelo de sociedade assentado na cultura da dilapidação do capital natural como um dos valores da economia de mercado.

Com o passar dos anos, as evidências da exaustão da dimensão econômica do modelo de globalização neoliberal, sobretudo em função das sucessivas crises financeiras inerentes ao capitalismo, fazem-se notar em sua incapacidade de gerar riqueza sem gerar, concomitantemente, e de forma crescente, exclusão e desigualdade, suicídio, tentativa de suicídio e aumento de vários tipos de doença mental, crimes, pauperização, violência, degradação ambiental, trabalho escravo, insegurança alimentar, poluição, perda de biodiversidade, aumento do tráfico de animais e do espraiamento de espécies exóticas invasoras. O aumento do consumo de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral); a contaminação dos solos por hidrocarbonetos, a emissão de gases de efeito estufa (dióxido de carbono [CO2], metano [CH4], óxido nitroso [N2O], perfluorocarbonos [PFCs], clorofluorcarbono [CFC], hidrofluorcarbonetos [HFCs], hexafluoreto de enxofre [SF6]) provocam, entre outros problemas, mudanças climáticas e aumento da temperatura do planeta.

Além disso, observam-se conflitos socioambientais, emergência de novas doenças e epidemias, e reemergência de outras que haviam desaparecido, crises humanitárias que não param de se multiplicar, racismo institucional, expansão do mercado de planos de saúde com cobertura restrita e judicialização da saúde, expansão do setor financeiro dos seguros, emergência do fenômeno religioso de crenças milenaristas e apocalípticas, a proliferação de igrejas evangélicas e a expansão da corrupção na democracia ou a dilapidação do patrimônio público.

Diante dessa realidade transnacionalizada, as ciências são cada vez mais convocadas e cobradas, no espaço público, a resolver esse ou aquele problema de sociedade, e aqueles profissionais que comparecem, a despeito do acolhimento ou desamparo pelos governos nacionais, tornam-se atores indispensáveis na busca de formas exequíveis de se alcançar uma sociedade sustentável. As ciências apoiam-se em equipes, infraestrutura e laboratórios cada vez mais exigentes em termos de capital para a realização das pesquisas, de forma semelhante às que são desenvolvidas nos laboratórios industriais, em arranjos institucionais macroepistêmicos com atores que se voltam tanto para a troca e o processamento de informações, por meio de rede de conexão global, a internet, como para a validação do conhecimento resultante de atividades de levantamento de amostras, monitoramento, observação e análise das transformações dos complexos de sistemas que sustentam a vida na Terra. São pesquisas sofisticadas e intensivas em capital, majoritariamente realizadas com recursos de agências de fomento internacionais e nacionais, grande parte coordenada na forma de redes colaborativas, que ampliam e aprimoram a qualidade das evidências para reforçar a constatação de que esses sistemas estão em acelerado declínio e, em muitos aspectos, de forma irreversível.

É imperativo que sejamos responsáveis moralmente e legalmente pelo mundo em que vivemos, ou seja: pela Terra em que os Homens se movem e da qual extraem a matéria-prima com que fabricam coisas; pelas barreiras artificiais que os Homens interpõem entre si e entre eles e a própria natureza; pelo conjunto de artefatos e de instituições criadas que permitem que eles estejam relacionados entre si sem que deixem de estar simultaneamente separados; pelo espaço institucional democrático que deve sobreviver ao ciclo natural da natalidade e mortalidade das gerações; pelo exercício de um dos papéis das ciências em um Estado democrático de direito que é o de produzir informações e conhecimentos que permitam aos atores da dinâmica territorial uma melhor tomada de decisão nos processos de formulação, implementação, avaliação ou, simplesmente, recusa de políticas públicas que afetam uma vida saudável em sociedade.

*Carlos José Saldanha Machado é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz, membro e representante das ciências humanas e sociais no Comitê de Assessoramento de Engenharia e Ciências Ambientais, e escreve para o Jornal da Ciência.

O artigo foi originalmente publicado no Jornal da Ciência (5/7). 

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