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28/12/2018

Violência obstétrica

Sérgio Rego*


Recentemente foi disponibilizado no site do Conselho Federal de Medicina o Parecer CFM nº 32/2018, referente ao Processo-consulta CFM nº 22/2018, que procurava responder a uma consulta originária do CRM-DF sobre uma suposta “proliferação” de leis sobre “violência obstétrica”. O parecer, segundo consta, foi elaborado pela Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do CFM. Este é um procedimento rotineiro nos Conselhos profissionais Federais – responder a consultas das instâncias estaduais sobre questões que demandariam algum pronunciamento normativo do órgão corporativo máximo. Entretanto, como o site do CFM informa, um Parecer não possui poder coercitivo, ao contrário das Resoluções. Já as Recomendações diferem do “Parecer” por terem sido concebidas pelo Plenário do CFM, mas também sem poder coercitivo. Já as Notas Técnicas são manifestações técnico-jurídicas elaboradas pela Consultoria Jurídica e aprovadas pela diretoria do CFM.

O que surpreendeu neste Parecer foi o descompasso entre o que está sendo defendido neste Parecer e o que esperamos de uma instituição tão relevante como é o CFM, que se supõe esteja em sintonia com o seu tempo e as necessidades sociais representadas pelas mudanças contemporâneas. O documento tem como um dos focos de suas críticas as ativistas do movimento feminista quando estas argumentam “que a assistência médica ao parto está em desacordo com a autonomia das mulheres e que a escolha da via de parto, assim como do local do parto, seja de sua exclusividade”. E mais, quando o Parecer afirma que “os médicos entendem que a autonomia da mulher deve ter limites, principalmente quando existem fatores que possam colocar tanto a mãe quanto a criança em risco se o parto vaginal for escolhido, e em local que não seja o hospital.”

O debate nos parece mal colocado. O próprio Código Internacional de Ética Médica expressa que “A PHYSICIAN SHALL; respect the rights and preferences of patients, colleagues, and other health professionals.” Assim, é preciso compreender que as mulheres estão lutando pela sua autonomia em um contexto social ainda marcado pelo patriarcado e pela misoginia. Afirmar que a autonomia das mulheres deve ter limites reforça essa concepção tradicional sobre o papel das mulheres na sociedade e não como senhoras de suas vidas e é, no mínimo, um equívoco em uma perspectiva dialógica. Esta posição, declarada no referido parecer, aproxima-se também da velha tradição médica que era caracterizada pelo paternalismo, ancorada em muito boas intenções que remontam ao tempo de Hipócrates, como o axioma primum non nocere. É claro que ninguém se opõe a ideia de não se causar dano, mas não é possível que indivíduos que convivem com cidadãos de diferentes classes sociais não tenham percebido que as relações sociais sofreram profunda transformação, em particular a partir dos anos sessenta do século passado. Inúmeros movimentos em defesa de direitos civis eclodiram em todo o mundo, com conquistas significativas de distintos segmentos sociais em diferentes campos. A afirmação do direito dos indivíduos a tomarem decisões no que se refere aos destinos do próprio corpo se dava seja no movimento hippie contra o corte dos cabelos e pelo direito de usar as drogas que desejassem, seja na perspectiva feminina que afirmava “meu corpo minhas regras” desde priscas eras. O desenvolvimento da pílula anticoncepcional é frequente e acertadamente apontada como um dos fatores que apoiou a liberação sexual, já que punha por terra a ideia de que a relação sexual só deveria ter função reprodutiva. As famosas queimas de soutiens em praça pública, mundo afora, não era nada senão a manifestação do desejo de não se submeterem a estereótipos ou modelos que outros procurassem impor a elas.

A ideia de que o médico, por deter o conhecimento técnico capaz de realizar, tecnicamente, a análise de quais seriam as melhores ou melhor opção para uma determinada mulher em uma determinada situação, é uma verdade apenas parcial. Para além da melhor técnica que possa ser desenvolvida e aplicada pelo profissional, há que se estar atento para as indispensáveis habilidades comunicacionais e relacionais que precisam ser igualmente desenvolvidas pelos médicos. Ao focarem especialmente naquilo que creem afetar ou ameaçar sua autonomia profissional, se descuidam de outra dimensão milenar de nossa prática profissional: a arte médica. Nos tempos atuais, a arte médica demanda a compreensão dos novos tempos que vivemos e que as decisões profissionais não são e não serão mais ditadas pelo saber científico, coisa que a Inteligência Artificial em muito breve será capaz de processar com maior eficácia que nós, humanos, mas pela capacidade de compreendermos as necessidades, desejos, esperanças que nossos pacientes expressam e desenvolvermos a capacidade de tomarmos decisões compartilhadas. Não devemos nos enganar achando que nossos pacientes preferem que outros decidam para eles sobre o futuro deles. Hoje a decisão deve ser partilhada, compartilhada.

Há, entretanto, um outro ponto que precisa ser abordado no referido parecer – a discussão bioética. Por exemplo, a frase: “O legado adotado pela escola hipocratiana (sic) fundamenta – se em dois pilares: o principialismo e a não maleficência.” Esta frase não faz sentido. Sem pretender entrar em maiores detalhes sobre a Medicina Hipocrática, talvez seja útil lembrarmos que uma de suas contribuições mais importantes foi privilegiar a observação e desenvolver a compreensão do papel dos humores corporais na fisiopatologia das enfermidades. Embora o chamado Juramento de Hipócrates talvez tenha sido escrito muito antes de sua existência, ele expressava os preceitos morais pertinentes para a sociedade de então. Hoje entendemos que repetimos uma versão de seu Juramento nas cerimônias de formatura dos médicos menos pelos valores efetivamente “jurados”, mas por uma afirmação de pertencimento a uma longa tradição da arte de curar. Cá para nós, proferir as seguintes palavras nos dias de hoje não faz sentido nenhum, que não o simbólico: “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higia e Panacea e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir, segundo meu poder e minha razão,”…

O chamado “principialismo”, que deveria ser chamado mais apropriadamente como a Teoria dos Quatro Princípios, ou Principialismo de Beauchamp e Childress, não são herança hipocrática de nenhuma forma nem por nenhum exercício de aproximação. E embora não conste de nenhum aforisma hipocrática as expressões primum non nocere e primum bene facere são, sem dúvida, reconhecíveis no chamado Juramento de Hipócrates: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.” Sabe-se, todavia, que Beauchamp e Childress procuraram desenvolver sua teoria ética a partir da moralidade comum e, em se tratando de indivíduos residentes nos Estados Unidos, nada mais razoável que estes tenham procurado esses valores tanto na tradição hipocrática como também nos valores liberais da revolução francesa. Assim, os quatro princípios que eles defendem também podem ser reconhecidos no lema “Liberdade! Igualdade! Fraternidade”. Mas sua teoria não se limita a identificar que princípios deveriam ser seguidos ou o que seria o bem para esta concepção. Isso a deontologia já o faz, ao definir que o bem é previamente reconhecido e alguém, se quiser ser bom, deve buscar atingir este bem como um dever. Para Beauchamp e Childress, todavia, os quatro princípios podem entrar em conflito entre eles (e frequentemente entram), uma vez que não são princípios absolutos, mas “prima-facie”. Ou seja, princípios válidos a princípio, mas que admitem exceções. Assim, para esta teoria os quatro princípios devem ser respeitados sempre, mas quando entram em conflito entre si, devemos realizar uma ponderação para avaliar o que deve prevalecer dentre os conflitantes.

Sabemos que os médicos também não são indivíduos vazios de princípios, desejos, temores e necessidades e eles sem dúvida devem ser levados em consideração também. Ninguém pode ignorar o temor que se tem no dia de hoje de sermos vítimas de ações judiciais em decorrência de decisões que foram tomadas, mas também não se pode ignorar que a Medicina é uma profissão de consulta, de serviço, e que o ideal de serviço deve prevalecer, como aliás está previsto nos Códigos de Ética em geral. No CEM temos: “I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.” O código internacional de ética médica também expressa algo semelhante: “A PHYSICIAN SHALL; act in the patient’s best interest when providing medical care.” Assim, é razoável que alguém pergunte: mas o que é o bem para um ser humano? E, especificamente, o que é o bem para um paciente em especial? Quem pode e deve responder a esta pergunta? De fato, talvez um dos problemas resida nesta questão. Como saber o que é o melhor para um dado indivíduo? Nossa tradição ocidental e cristã nos diz que devemos nos colocar no lugar do outro para que possamos fazer essa avaliação – “Faça ao outro o que gostaria que fizessem a você” ou “não faça ao outro o que não gostaria que fizessem a você”! Mas hoje mesmo essas máximas são questionadas. Alguém só é capaz de, com certeza, identificar o que outro alguém gostaria ou não que fosse feito a si próprio no caso que estivesse naquela situação específica, com os seus próprios valores e experiências. Não conseguiremos fazer isso, sem um enorme grau de incerteza. Teríamos que tentar imaginar o que o outro gostaria que fizesse a ele, segundo os valores do outro. E como poderíamos conhecer tais valores?. A ética do discurso de Habermas nos propõe que uma regra somente poderá ter legitimidade se todos os afetados pela norma puderem aceitá-la. Ou seja, os afetados devem ser necessariamente ouvidos e respeitados na medida em que uma determinada norma deverá ser aplicada a ele.

Alguém poderia ainda perguntar: “mas se a decisão de alguém implicará em repercussões para outras pessoas (no caso o feto, como sugere o texto do parecer) então esta outra pessoa também deveria ser levada em consideração nessa decisão?” Sim, parece ser esse o tipo de argumento que está amparando o seguinte trecho do Parecer: “Discutir autonomia da mulher quanto à escolha da via de nascimento envolve aprofundamento em um tema ainda inconclusivo, que esbarra no conceito de pessoa e no que diz respeito ao reconhecimento do estatuto do embrião humano.” Esta afirmação parece bastante inapropriada, já que não se trata de tomar uma decisão sobre o eventual direito que um feto possa ter que afete um direito que uma mulher efetivamente possui. Não se está discutindo um aborto, mas, em geral, as técnicas obstétricas que vão ser utilizadas. Não é desconhecido da maioria dos brasileiros informados que os índices de parto por cesariana são dos mais altos e não justificados do mundo. A Resolução CFM nº 2.144/2016 aborda, de forma que parece muito apropriada, a situação em que a gestante demanda pelo parto cesáreo, não havendo a indicação médica. A questão que vem associada à chamada “violência obstétrica” é a inversa: quando a parturiente anseia por um parto não cesáreo e o profissional deseja realizar a cesárea, com inúmeras razões que podem justificar, sendo que muitas não são clínicas. Neste ponto o Parecer aponta corretamente, em parte, a ser “inegável a necessidade de mudar o modelo de atenção pré-natal, parto e puerpério no Brasil”. Para tal, é preciso que o trabalho em equipe seja efetivamente implementado, o que mudará a organização e o processo de trabalho relacionado à atenção a gestante e puérpera.

Assim, discutir o chamado “estatuto do embrião humano” é algo totalmente sem sentido nas discussões sobre a atenção a parturiente e sua referência no Parecer sugere uma opção retórica apenas.

Outro ponto controverso do Parecer é a menção a supostas “posições político-ideológicas” que estariam “embutidas” no movimento que combate a violência obstétrica. O Parecer deveria ser claro em sua descrição sobre o que está falando, já que essa expressão solta parece não ter outro propósito que apelar para reações emocionais e não factuais, em uma atitude típica do que se caracteriza hoje como “pós-verdade“. O que significaria isso? Que existem partidos políticos que estariam por trás do movimento? Não me parece razoável que um documento do CFM se valha de artifícios retóricos desse tipo para afirmar uma posição. Escrever dessa forma expressa, isso sim, uma ideologia conservadora e pouco democrática que abusa da retórica alarmista para sensibilizar os incautos.

Sem dúvida o debate promovido pela Bioética é plural. É plural e se ampara na perspectiva de que todas as pessoas devem ter direito a um projeto pessoal de vida feliz e que o debate moral se dê respeitando-se o outro e discutindo argumentos, com a apresentação de premissas universalmente válidas e conclusões fundamentadas nelas. O debate sobre políticas públicas, todavia, não pode se dar amparado em convicções que dependam da aceitação de premissas que podem não ser válidas para todos de uma sociedade, daí a necessidade de se falar em uma ética mínima, que é aquela que tem consenso numa determinada sociedade.

Na prática profissional, o médico precisa compreender que sua relação com o paciente não pode mais ser amparada apenas no domínio da autoridade técnica, mas também no diálogo e na compreensão do outro, de suas necessidades, temores, desejos… Não devemos manter uma distância no relacionamento que nos leve a ver os questionamentos que eventualmente surjam, especialmente em uma sociedade onde o conhecimento está acessível a um click, como um desrespeito ou algo inapropriado. Devemos sim nos esmerar na arte do diálogo, na compreensão do ponto de vista do outro e no respeito a esse outro como um sujeito moral, não mais paciente.

Por fim, a afirmação presente no Parecer de que “É no pensamento bioético que sempre haverá espaço para o contraditório em seu ordenamento, mas o que deve sempre predominar é o bom senso em comum” parece pouco precisa, possivelmente por ser uma ideia complexa que foi expressa em uma única frase, que compõe um parágrafo. De fato, a Bioética não é um ‘campo do bom senso’, mas “um ramo da filosofia ou, mais especificamente, da filosofia moral aplicada, com suas ferramentas teóricas e práticas específicas que podem, eventualmente, ser construídas e compartilhadas com outros saberes do campo das ciências humanas e sociais e, talvez, das ciências naturais, razão pela qual muitos autores considerem, pertinentemente, a Bioética como um campo interdisciplinar e até transdisciplinar. E é neste segundo sentido que ela precisa ser considerada, pois somente assim pode exercer seu papel crítico, inclusive no sentido de crítica do senso comum e de especialização entendida como saber constituído que não se questiona incessantemente sobre sua ignorância frente ao mundo da vida que se faz e se desfaz”. 

O ideal é que não se brigue com palavras, por mais imprecisas ou ofensivas elas podem ser ou parecer, mas que se foque no que de fato está por detrás das palavras, especialmente quando estão relacionadas com o reconhecimento do direito de qualquer indivíduo de decidir sobre o que será feito com seu corpo. Nossa missão não é a de somente informar e pedir uma autorização formal para o que pretendemos fazer, para nossa compreensão de projeto terapêutico adequado, mas que façamos deste um processo de decisão efetivamente compartilhado, onde o outro é visto não como alguém a ser convencido, mas alguém com quem se quer ter um entendimento.

*Sérgio Rego é médico e pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).

O artigo foi originalmente publicado no Observatório de Medicina da Ensp/Fiocruz

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