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18/09/2009

Conselho de Saúde Sul-Americano define ação integrada entre países-membros

Paulo Marchiori Buss*


O inverno deste ano trouxe más notícias para a América do Sul. Além das tradicionais dificuldades que a estação fria impõe à população, tivemos desta vez a emergência do vírus influenza A H1N1, popularmente conhecido como “gripe suína”. Todos os países da região estão afetados pela nova enfermidade que per se já é preocupante, seja por sua alta infeciosidade, seja pelo risco de mutações virais que poderão aumentar sua letalidade. No subcontinente, deve-se agregar a essas preocupações os problemas decorrentes das péssimas condições sociossanitárias, particularmente dos mais pobres, e os sistemas de saúde de acesso não universal, portanto excludentes.

 

 Os presidentes de Brasil, Venezuela, Bolívia, Cuba, México e Chile confraternizam depois da reunião da Unasul que criou o Conselho de Saúde Sul-Americano
Os presidentes de Brasil, Venezuela, Bolívia, Cuba, México e Chile confraternizam depois da reunião da Unasul que criou o Conselho de Saúde Sul-Americano

Contudo, a boa notícia que chegou para a região foi a decisão dos chefes de Estado da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) de criar o Conselho de Saúde Sul-Americano, integrado pelos 12 ministros da Saúde dos países-membros e denominado, in short, Unasul Saúde1. O conselho foi criado junto com seu homônimo da Defesa durante a cúpula extraordinária da Unasul realizada em dezembro de 2008 na Costa do Sauípe, na Bahia. Na ocasião, os dirigentes aprovaram a Agenda Sul-Americana de Saúde, a ser implementada nos próximos três anos. Pouco depois, em abril de 2009, seus representantes se reuniram em Santiago do Chile, onde detalharam as atividades de cada um dos cinco pontos propostos anteriormente2:

1. Estabelecer o escudo epidemiológico sul-americano para enfrentar em conjunto os principais problemas de saúde do continente, incluindo os processos endêmicos e epidêmicos;
2. Desenvolver sistemas universais de saúde, com acesso a toda a população;
3. Dar acesso universal a medicamentos e outros insumos para a saúde e desenvolver o complexo produtivo da saúde na América do Sul;
4. Promover a saúde e enfrentar de forma conjunta seus determinantes sociais;
5. Desenvolver recursos humanos em saúde.

Por “escudo epidemiológico” entende-se o conjunto de serviços públicos de vigilância epidemiológica, dotados de ferramentas e instrumentos técnico-científicos e gerenciais capazes de detectar precocemente surtos de doenças infecciosas (como a gripe suína, dengue e outras), mobilizando os recursos nacionais e subcontinentais de diversas fontes e naturezas para enfrentá-los adequadamente. Além disso, o escudo se debruçará sobre situações dependentes de ações nacionais e regionais, como as doenças crônicas não transmissíveis (cânceres e problemas cardiovasculares, entre outras), as que acometem mulheres e crianças, as decorrentes de violência e outras causas externas etc. Embora ainda em preparação e oportuno para muitas situações futuras, esse item da agenda já passou pela prova inicial que subitamente lhe foi imputada. Quando os primeiros casos da nova gripe foram detectados na Argentina e Chile, imediatamente os demais países foram alertados e montou-se uma verdadeira operação de guerra em aeroportos e áreas fronteiriças para barrar a expansão da doença. Uma série de medidas foi acionada para disponibilizar recursos diagnósticos e terapêuticos a todos os países e desenvolveu-se uma estratégia comum para obter a vacina antigripal específica, tão logo esteja disponível. A propósito, o Conselho reunido declarou que em casos de emergência de saúde pública, como o de uma epidemia de influenza, as necessidades de saúde pública e o direito à saúde devem sobrepujar os interesses comerciais, garantindo-se acesso oportuno e universal a medicamentos, vacinas e kits para diagnóstico – entendidos como bens públicos globais –, assim como se deve facilitar seus processos de produção.

As medidas, implementadas pelos técnicos dos países sul-americanos com o apoio de seus governos, foram capazes de reduzir substancialmente a propagação da doença, assim como de mitigar efeitos piores: mortes evitáveis, infecções secundárias, sofrimento às famílias, sobrecarga dos serviços de saúde.

As consequências de um súbito episódio de doença infecciosa, previsível, mas sem data marcada para emergir, evidenciou a vantagem da criação de uma grande rede continental sul-americana de recursos de diversas naturezas no campo da saúde. Esse é só o começo, seja para conter as ameaças que vêm de fora do nosso continente (daí a noção de “escudo epidemiológico”), seja para alterar a reconhecida insuficiência dos sistemas de saúde sul-americanos, em geral fragmentados e de baixa qualidade – razão de a proposta de construção de “sistemas universais e equitativos de saúde” ser o segundo ponto da Agenda Sul-Americana de Saúde. Sistemas universais de saúde são aqueles que, desenvolvendo diversos arranjos – desde o financiamento público, via impostos gerais, caso do Brasil, até sistemas de seguros privados, mas que alcancem todas as pessoas –, propiciam às populações o acesso de todos a serviços de saúde pública (promoção da saúde e prevenção de doenças e seus principais fatores de risco) e de atenção individual (ambulatorial e de internação). Os prestadores de serviços, em tais sistemas, podem ser públicos ou privados. Com esse tipo de direito assegurado, as ações de saúde pública e de atenção aos indivíduos doentes adquirem proeminência e são implementadas de forma coerente, conforme as necessidades sócio-sanitárias. O complemento regional se dá pelo desenvolvimento da “saúde nas fronteiras” e pela garantia da “portabilidade”, quer dizer, o acesso aos serviços de saúde nacionais de sul-americanos não residentes no país em que procuram auxílio, segundo regulamentação a ser definida.

Sistemas de saúde, porém, são estruturas tecnológicas complexas: dependem de equipamentos médico-cirúrgicos, medicamentos, vacinas, kits para diagnóstico, órteses e próteses, sangue e hemoderivados, materiais de consumo e outros insumos, além de instalações cada vez mais especializadas. Portanto, o acesso a algo desse porte deve ser considerado no marco de políticas de saúde, industrial e de ciência e tecnologia. Tais recursos são produzidos pelo que se denomina “complexo produtivo da saúde”3, ou seja, pelo conjunto de empresas produtoras e de consumidores institucionais (governos, prestadores de serviços de saúde, hospitais etc.) e individuais de bens e serviços de saúde, além das instituições que elaboram inovações (universidades e empresas). É a essa complexidade que pretende responder o terceiro componente da Agenda Sul-Americana de Saúde. A região tem enorme déficit comercial na balança relativa a insumos e serviços de saúde. Sem xenofobia, a proposta implica que os insumos em saúde necessários para a população sul-americana devam ser produzidos, dentro do possível, pelo complexo produtivo da saúde instalado no próprio subcontinente. Isso aponta para a necessidade de uma  articulação público-privada em nível regional, que harmonize políticas industriais nesse complexo, além de enfrentar desafios como o acesso a novos produtos e a regulação do mercado farmacêutico frente às novas biotecnologias, genômica e proteômica.

Como afirma Carlos Correa4, “a proteção da propriedade intelectual de produtos farmacêuticos continua a desafiar os países em desenvolvimento. Contar com uma indústria farmacêutica local capaz de produzir os medicamentos necessários para atender à saúde passou a ser uma questão estratégica, e não um simples objetivo de política industrial”. Os chefes de Estado da Unasul estenderam essa visão para os demais bens e serviços do complexo produtivo da saúde.

Estudiosos, políticos e ativistas sociais reconhecem hoje, consensualmente, que a saúde é um produto social, mais do que apenas o resultado de processos biológicos. Recentemente, a abordagem dos determinantes sociais da saúde como solução para inúmeros problemas em escala global foi levantada pela Organização Mundial da Saúde5 e o Brasil seguiu pelo mesmo caminho, com o estabelecimento da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde6. Essas duas movimentações atraíram outros governos da América do Sul para a explicitação das causas sociais dos problemas de saúde e de políticas e mecanismos adequados para enfrentá-los e, com isso, melhorar as condições de vida das populações. No âmbito da Unasul Saúde, os ministros compreenderam que também existe uma dimensão regional que compõe e, ao mesmo tempo, impacta, os determinantes sociais da saúde. Para conhecer a trama dos determinantes sociais na escala do subcontinente e identificar políticas comuns capazes de fazer frente aos mesmos, os ministros referendaram a proposta dos chefes de Estado de criar a Comissão Sul-americana sobre Determinantes Sociais da Saúde, a ser implantada como um dos primeiros produtos do grupo de trabalho encarregado deste item da Agenda.

Finalmente, considerando que o sistema de saúde, assim como a educação, é intensivo e extremamente dependente da qualidade de sua força de trabalho, os ministros deram início às ações relativas ao item “desenvolvimento de recursos humanos em saúde” da Agenda Sul-Americana de Saúde. Nesse componente, ressalta-se a criação do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), que tem o propósito de preparar dirigentes de mais alto nível para os sistemas de saúde da região. Sua sede será no Rio de Janeiro.

Todas as iniciativas previstas em qualquer dos demais itens da Agenda de Saúde dependem da qualidade de condução e liderança, coordenação e gestão, formulação de políticas de saúde e intersetoriais, capacitação avançada, produção de conhecimento e outros aspectos relacionados às funções essenciais da saúde pública7 Assim, o ISAGS destina-se a apoiar os países da Unasul no fortalecimento das capacidades nacionais e regionais e no desenvolvimento adequado de recursos humanos. Uma de suas funções principais será a gestão do conhecimento já existente e a produção daquele que ainda se faz necessário, de forma compartilhada com os atores sociais e políticos relevantes na esfera social e da saúde.

O ISAGS será uma instituição de natureza comunitária, de caráter público e pertencente a todos os países signatários da Unasul. Terá uma estrutura pequena e flexível e articulará seu programa de trabalho com instituições nacionais dos países membros e com centros multilaterais de formação e pesquisa, através da integração em redes das chamadas “instituições estruturantes dos sistemas de saúde”, que são os institutos nacionais de saúde, as graduações em medicina, enfermagem e odontologia, as escolas de saúde pública e as escolas para a formação de técnicos em saúde.

Esse grande arranjo intergovernamental chamado Unasul Saúde é um extraordinário exemplo de “diplomacia da saúde” que os países da América do Sul e seus Ministérios das Relações Exteriores e da Saúde dão em conjunto. O termo, recentemente cunhado, se refere a uma área de conhecimentos e práticas que vem adquirindo crescente importância global e regional e que é conduzida por diplomatas e dirigentes do setor de saúde8.9. Será um dos campos prioritários de ação do ISAGS, pois o grande desafio que tem a Unasul Saúde é lograr identificar precisamente quando a abordagem regional com enfoque integracionista constitui um valor agregado com respeito à ação desenvolvida exclusivamente desde o âmbito nacional, ou seja, quando é que a integração favorece a identificação e solução dos problemas. Nem todas as dificuldades apresentam uma vantagem ao serem abordadas regionalmente e cada processo de integração identifica suas próprias necessidades e possibilidades quanto a seu alcance.

Finalmente, é importante levar em conta que determinados problemas, condições ou características tornam importante o tratamento regional, o que não substitui mas sim complementa e fortalece as capacidades nacionais. O valor agregado da abordagem regional é mais evidente quando os problemas a serem enfrentados exigem soluções harmônicas e coordenadas regionalmente (tanto no âmbito político, quanto no técnico e financeiro), quando a cooperação horizontal entre países pode aportar ao melhor enfrentamento dos problemas ou o intercâmbio de boas práticas desenvolvidas por outros países consiga apoiar a solução de problemas. Nesse sentido, o campo da saúde é exemplar, e a Unasul Saúde, uma experiência a ser seguida com atenção e cuidados.

Notas

1 Ministério das Relações Exteriores. Declaração da Cúpula da Unasul - Costa do Sauípe, Bahia. Disponível em: www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=6132

2 Unasul / Conselho de Saúde Sul-Americano. Acordo n° 01/09, 21/04/2009 – Constituição do Conselho de Saúde Sul-Americano – Unasul Saúde. Disponível em: www.unasur-salud.org

3 GADELHA, C. A. G. Desenvolvimento, complexo industrial da saúde e política industrial. Revista Saúde Pública [online]. 2006, vol. 40, n.spe [cited  2009-07-26], p. 11-23.

4 CORREA, C. M. Patentes e medicamentos genéricos. Le Monde Diplomatique Brasil, jan. 2008.

5 World Health Organization (WHO) / Commission on Social Determinants of Health. Closing the gap in a generation - Final report of the CSDH, Geneva: WHO, 2008. Disponível em: http://www.who.int/social_determinants/thecommission/finalreport/en/index.html

6 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil – Informe final da CNDSS. Disponível em: www.determinantes.fiocruz.br

7 Organização Panamericana da Saúde (OPS). La salud pública en las Américas. Washington: OPS, Publ. Cient. Tec., 2002.

8 KICKBUSCH, I; SILBERSCHMIDT, G; BUSS, P. M. Global health diplomacy: The need for new perspectives, strategic approaches and skills in global health. Bulletin of the World Health Organization, 85 (3), p. 230-232, 2008.

9 BUSS, P. M. Global health and health diplomacy. Journal of Public Health Policy (2008) 29, p. 467–473.

*Paulo Marchiori Buss foi presidente da Fiocruz (2001-2009).

Publicado em 18/9/2009 (texto originalmente publicado na edição brasileira do jornal Le Monde Diplomatique, em agosto de 2009).

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