25/05/2017
Ricardo Valverde (CCS/Fiocruz)*
Instituído em março de 2017, o Ano Oswaldo Cruz – 100 anos do legado de Oswaldo Cruz - O papel da ciência e da saúde no projeto nacional, vai mobilizar toda a Fundação em atividades que ocorrerão nos próximos meses. O projeto, que tem oito eixos temáticos, também será responsável por uma exposição na Câmara dos Deputados. Em entrevista, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, aborda o significado do Ano Oswaldo Cruz e comenta a importância do cientista para o país. Segundo ela, o Ano Oswaldo Cruz é, ao mesmo tempo, a celebração de um legado e a assunção de um compromisso com o futuro, tendo o bem-estar da população como objetivo estratégico.
O que significa o Ano Oswaldo Cruz?
Nísia Trindade Lima: O Ano Oswaldo Cruz busca ressaltar toda contribuição deste sanitarista e grande cientista brasileiro que teve como seu maior legado o início do processo de constituição da Fundação Oswaldo Cruz. Devemos sim celebrar os grandes cientistas da história brasileira que se comprometeram com a nação e com o bem-estar de nosso povo, o que se torna ainda mais importante neste momento pelo qual passa o país.
Estamos um momento de profundas transformações econômicas, sociais, tecnológicas e nas formas de organização do Estado, o que traz um enorme desafio para pensar o futuro. Como este é incerto, não passível de redução a cálculos de probabilidade, o estudo e o conhecimento de nossa história, de nosso país, de nossa instituição e do contexto internacional tornam-se os elementos essenciais que fornecem as pistas para um projeto de futuro.
O futuro não se constrói apenas a partir dos desejos abstratos. Não conseguimos pensar o Brasil sem considerar que fomos um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão e que somente recentemente foi criada uma institucionalidade na qual o bem-estar passou a fazer parte de um projeto de desenvolvimento. No interior da Fiocruz, este legado, que aliou ciência, educação, tecnologia e saúde, foi uma conquista iniciada com Oswaldo Cruz e que passou por muitos de nossos grandes cientistas, a exemplo de Carlos Chagas. Mais recentemente, Sergio Arouca forneceu novos pilares para este projeto institucional, incorporando o legado de nossos “fundadores” e avançando para o contexto de um Estado e uma instituição democrática e comprometida com a sociedade, o SUS e a ciência, tecnologia e inovação.
Deste modo, o Ano Oswaldo Cruz é ao mesmo tempo a celebração de um legado e a assunção de um compromisso com o futuro, tendo o bem estar de nossa população como objetivo estratégico e as atividades de alta qualidade em ciência, tecnológica e inovação como um meio único para alcançarmos o desenvolvimento social, econômico e ambiental na sociedade do conhecimento.
Quais serão os eixos temáticos do evento?
Nísia: São oito: promoção da ciência, tecnologia e inovação em benefício da sociedade e a serviço da vida; a importância do papel de uma instituição pública na produção e inovação em saúde; Fiocruz na articulação do sistema de ciência, tecnologia e inovação, nas dimensões regional, nacional e global; desafios dos objetivos de desenvolvimento sustentável; políticas e estratégias de saúde: passado, presente e futuro com perspectivas ao fortalecimento do SUS; preparação da Fiocruz para a 4ª revolução tecnológica; a Fiocruz e a educação permanente; e democracia e perspectiva nacional na prospecção institucional.
O que será apresentado na exposição a ser montada na Câmara dos Deputados?
Nísia: A exposição, além de levar para nossa esfera de representação política, o maior conhecimento de nossa história e de nossas grandes conquistas para a humanidade e para o país, terá o desafio de mostrar como o sistema Fiocruz, que alia conhecimento, educação, inovação e produção de bens e serviços, constitui um patrimônio nacional único que deve ser orgulho dos brasileiros. Na primeira parte da mostra serão apresentadas a trajetória e contribuições de Oswaldo Cruz e, na segunda parte, ressaltada a contribuição da Fiocruz, como instituição de Estado comprometida com o SUS. Como decorrência, a exposição se insere numa perspectiva ambiciosa de evidenciar o valor que possuímos como instituição pública de C&T&I e como podemos contribuir para a sociedade brasileira e para o avanço social, econômico e democrático de um projeto nacional que seja sustentável em suas múltiplas vertentes.
Qual o legado de Oswaldo Cruz?
Nísia: Como já mencionei, o legado de Oswaldo Cruz é a Fiocruz para a população brasileira, ou seja, a criação de uma instituição que alia ciência, tecnologia (na fabricação de produtos biológicos, como vacinas e fármacos), educação, saúde e projetos nacionais. Uma marca histórica da Fiocruz, e por isso muito forte, tem origem nessa matriz institucional desenhada pela primeira geração de cientistas que Oswaldo Cruz reuniu em Manguinhos, ou seja, o nosso compromisso com a apropriação dos conhecimentos aqui gerados para a formulação de políticas públicas de saúde.
Devemos lembrar que o Instituto Soroterápico Federal, fundado em 1900, e transformado em 1908 em Instituto Oswaldo Cruz, foi criado como resposta a uma grande emergência sanitária: a necessidade de produzir soro contra a peste bubônica que havia chegado a Santos e ameaçava a então capital federal, o Rio de Janeiro. Oswaldo Cruz, como diretor do Instituto Oswaldo Cruz e diretor-geral de Saú- de Pública, ampliou a agenda de pesquisa institucional e induziu produção de conhecimento em áreas diversas, como a microbiologia e a medicina tropical, tornando a instituição capaz de atuar também no controle à epidemia de febre amarela que assolava o Rio de Janeiro no início do século 20. A Fiocruz, como sabemos, continua empenhada e capacitada a dar respostas à sociedade brasileira, na forma de conhecimento científico, insumos e atenção primária à saúde, nas situações de emergência sanitária, tal como vimos no quadro recente e gravíssimo da tríplice epidemia de dengue, zika e chicungunya, mas também na reemergência da febre amarela.
A matriz institucional criada por Oswaldo Cruz, no entanto, não se revela apenas nas diversas atribuições institucionais em pesquisa, produção e ensino, ou nos episódios de epidemias, na capacidade de responder a uma emergência sanitária. Outro traço histórico muito relevante é a presença nacional da Fiocruz. Existem unidades da Fundação em todas as regiões do Brasil. A presença da instituição no território brasileiro começou com expedições científicas, também nas primeiras décadas do século 20, que acompanharam a expansão do Estado nacional brasileiro em obras para a modernização de sua infraestrutura, ou seja, construção de ferrovias, projetos de desenvolvimento regional na Amazônia, obras contra as secas no Nordeste etc. A base institucional, então existente, permitiu, mais uma vez, a conjugação entre pesquisa de laboratório, trabalho clínico e expertise para trabalho de campo feito nos canteiros de obras. O papel da instituição nessas expedições foi fundamental para consolidar a medicina tropical como disciplina científica, mas também para fortalecer o seu protagonismo nos debates referentes à saúde pública, como no movimento sanitarista dos anos 1920, que buscava a implementação de políticas federais de saúde, como a criação de um Ministério da Saúde, e na formulação de projetos nacionais de desenvolvimento. Em suma, essa é a matriz que nos orgulha, inspira e desafia a aprimorar a instituição e suas diferentes áreas de atuação, para a promoção da saúde da população, o fortalecimento do SUS e de políticas de C&T&I e do desenvolvimento autônomo do país.
Como analisa a saúde e a ciência brasileiras cem anos após a morte do patrono da Fiocruz?
Nísia: O nosso país passou por profundas transformações. Tornou-se urbano e industrializado, constituiu um sistema de C&T robusto e nacional e, mais importante, avançamos na compreensão da saúde como um dever do Estado, tendo o SUS o papel de garantir princípios da Constituição de 1988, vinculados à universalidade, à integralidade e à equidade. No presente, com a crise nacional e também global, há o grande desafio de, frente a pensamentos mais restritos de ajuste, ajudarmos a atualizar o papel da Fiocruz num novo projeto nacional que seja ao mesmo tempo dinâmico, inclusivo e sustentável.
A saúde, a ciência e a tecnologia devem ser pilares essenciais desta nova estratégia. Não se enfrenta a crise olhando para trás e numa perspectiva de passividade e de medo. A lição maior de Oswaldo Cruz e de nossos grandes fundadores é o olhar para frente como base para nossa ação no presente. É tratar esta diversidade do país como riqueza. É resgatar o projeto da mais vibrante democracia do mundo. É aproveitar a pulsão inovadora de nosso povo excluído, mas a quem não falta luta e criatividade, quando as amarras de nossa história são enfrentadas para nos deixar avançar.
Desacorrentar a criatividade, a ciência, a saúde, a educação libertadora e a inovação, em bases participativas e democráticas, faz parte de nosso horizonte estratégico. A saída da crise nos impõe o desafio de pensar e fazer o futuro a partir de nossa história e, ao mesmo tempo, nos chama para a ousadia de não nos amesquinharmos nos grilhões do passado. A Fiocruz foi o maior legado de Oswaldo Cruz. A ousadia para o novo, a sua principal lição.
*Entrevista publicada originalmente na edição 37 da Revista de Manguinhos.