O povo que vive ao longo do Rio Negro, na Amazônia, e seu processo de constituição durante o século 20 foram estudados pelo historiador da Fiocruz Fernando Dumas. Uma das principais conclusões da pesquisa é que, apesar da presença da medicina ocidental, esse povo ainda hoje preserva saberes tradicionais dos povos indígenas. Os resultados do trabalho são apresentados em artigo publicado recentemente no periódico científico História, Ciências, Saúde – Manguinhos. A linha de argumentação desenvolvida pelo autor “aponta para a importância das relações interétnicas na organização do território estudado”.
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Meninos de comunidade indígena do Alto Rio Negro (Foto: Fábio Atui) |
Dumas descreve um movimento de “transfiguração étnica”, onde se misturaram diferentes tribos indígenas, portugueses e seus descendentes, num contexto de avanço da modernidade e das relações capitalistas. Contudo, esse contexto não excluiu elementos tradicionais da cultura local, como ilustra a permanência, até os dias de hoje, de práticas terapêuticas dos povos indígenas que habitaram e ainda habitam a região. Trata-se de um conjunto de saberes que combina a prática ritualística de rezadores e a utilização curativa das plantas. “Esses saberes se configuraram não só como uma resistência cultural aos costumes introduzidos no bojo da transfiguração étnica pela qual todos passaram, mas também como uma resposta ao abandono a que essas populações foram relegadas pelos poderes públicos brasileiros”, explica o historiador.
Segundo Dumas, esses elementos tradicionais da cultura local permaneciam dominantes no final do século 20, inclusive quando os recursos da medicina ocidental estavam disponíveis. “Quando alguém adoece, a maioria das pessoas normalmente procura primeiro um rezador ou benzedor; se esse tratamento não resolver, vão procurar o atendimento em um hospital ou posto médico”, diz. “Mesmo os depoimentos de pessoas que optaram por passar mais tempo, ao longo do ano, nos centros urbanos, e que, por isso mesmo, ganharam mais intimidade com a medicina ocidental, ainda têm nos terapeutas populares seu ponto de referência para os processos de cura”.
O trabalho de Dumas se insere em um projeto maior, que buscou analisar as condições de vida e saúde das populações amazônicas que ocupam atualmente os lugares visitados pelo cientista Carlos Chagas entre 1912 e 1913. No artigo, os habitantes das comunidades ao longo do Rio Negro são denominados de caboclos, “um termo genérico e de múltiplos significados na Amazônia, mas cujo sentido principal tende a indicar a origem rural do indivíduo”. De fato, o universo humano que foi alvo do estudo de Dumas se movia em torno da indústria extrativista, o que envolvia não apenas a borracha, mas também a castanha e a piaçava.
Para a realização da pesquisa, o historiador analisou os arquivos da empresa J. G. Araújo & Co. Ltd., que dominou o comércio fluvial em toda a Amazônia Ocidental desde 1860, e relatos produzidos por cronistas, religiosos, autoridades oficiais, geógrafos, naturalistas, etnógrafos e outros cientistas sociais. Além disso, foram colhidos depoimentos de habitantes da região. “Procurei dar voz ao silêncio que envolve, ainda hoje, as classes populares brasileiras e, mais ainda, as amazônicas, afundadas sob o manto da floresta tropical ou nas palafitas que infestam as cidades da região. O principal conjunto de fontes foi, portanto, a coleção de histórias de vida produzidas com a população do Rio Negro”, afirma Dumas.
Foi a partir dessas fontes que o pesquisador reconstruiu uma história marcada por intensas trocas culturais entre a sociedade brasileira e os diversos grupos indígenas, um processo determinante para a constituição da identidade cabocla naquele local. “A idéia de que o caboclo traz as marcas culturais de uma movimentação que terminou por fixá-lo num modo de vida híbrido, em que costumes arraigados das sociedades tribais permanecem hegemônicos, embora articulados à economia capitalista do extrativismo florestal, que o absorveu enquanto mão-de-obra e modificou seus costumes e anseios”, explica o historiador, lembrando que as condições de trabalho do caboclo na indústria extrativista eram, não raramente, desumanas.
Em constante movimento pelo território, sempre em busca de um lugar melhor, diferentes tribos viviam ao longo do Rio Negro e elas acabaram originando uma cultura indígena homogeneizada, ao mesmo tempo em que se misturavam com os colonizadores. A população ganhava, assim, o status de civilizada, mas com a peculiaridade de preservar os vínculos com suas origens étnicas. “A partir da segunda metade do século 20, sob o impacto do crescimento exponencial da produção do látex de seringueira brasileira, estreitaram-se ainda mais os vínculos entre o modo de vida florestal, desenvolvido pelo caboclo, e os padrões burgueses, que acompanhavam o avanço das relações locais de comércio capitalistas”, conta Dumas.
Na região do Rio Negro, diferentemente de outros territórios amazônicos, a presença nordestina foi bastante fraca. Por outro lado, houve muitos imigrantes portugueses. Chamados por parentes ou amigos, jovens portugueses chegaram à região no final do século 19 e se estabeleceram como proprietários, comerciantes e exploradores. Uniram-se a mulheres nascidas na região e com elas tiveram filhos, muitas vezes educados na Europa.
Assim, enquanto os laços culturais entre o Rio Negro e Portugal eram fortalecidos, também se garantia a reprodução do modo de produção e exploração implantado na Amazônia. “Os descendentes de homens portugueses com mulheres indígenas, no Rio Negro, absorveram diversos elementos de ambas as culturas”, diz Dumas. “Em sua segunda ou terceira geração, já não possuem muito da educação européia, sendo, no entanto, herdeiros de uma lógica de vida que busca, ainda hoje, amealhar riquezas ou bens de raiz”.