Artigo apresenta reflexões sobre o romancista Lima Barreto e a loucura

Publicado em
Fernanda Marques
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“Escritor fervoroso, suburbano, negro, aguerrido, irônico, combativo, maldito e incompreendido por seus contemporâneos, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) desceu ao inferno, conhecendo o desprezo de críticos, o fracasso como escritor e a indiferença familiar por sua vocação literária. Inquieto na dor, ríspido com os hipócritas, teve diante de si a tragédia da loucura, do alcoolismo e do preconceito”. É assim que o cientista político Marco Antonio Arantes resume a experiência do romancista carioca Lima Barreto, internado duas vezes no Hospício Nacional, em 1914 e em 1919. O olhar do escritor sobre os médicos, os loucos e a loucura – notadamente em suas obras Cemitério dos vivos e Diário do hospício – foi alvo de uma pesquisa desenvolvida por Arantes. Os resultados dessa análise estão no artigo Hospício de doutores, publicado pelo cientista político na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz.


 Lima Barreto colocava-se frontalmente contrário à divisão de classes aplicada no hospício, em razão dos obstáculos institucionais e mesmo judiciais impedirem que um indigente usufruísse de regalias

Lima Barreto colocava-se frontalmente contrário à divisão de classes aplicada no hospício, em razão dos obstáculos institucionais e mesmo judiciais impedirem que um indigente usufruísse de regalias


Cemitério dos vivos e Diário do hospício são versões ficcionais das vivências de Lima Barreto no hospício. As reflexões do escritor – na condição de paciente – configuram uma crítica ao tratamento dos doentes, considerados objetos e expressão de poder dos médicos, estes pretensamente capazes de compreender cientificamente os loucos; e à instituição psiquiátrica, que se mostrava autoritária e arbitrária. “O esforço de Lima Barreto consistiu em passar para o leitor sua vivência sobre as posturas médicas cientificamente respeitáveis, mas que, na verdade, expressavam caracterizações morais de comportamento”, diz Arantes no artigo. “Tomando como base a experiência pessoal no hospício, questionou as muitas ‘verdades científicas’ apresentadas pelo corpo médico, que eram resumidas a uma ação arbitrária e humilhante sobre os pacientes”.


Os livros de Lima Barreto também chamam a atenção para as iniqüidades dos tratamentos dentro do hospício, onde os pacientes eram diferenciados não só por suas condições clínicas, mas também pela posição social e pela cor da pele. Por isso, havia pavilhões destinados aos mendigos, miseráveis, indigentes, ladrões, malandros e alcoólatras – centenas de pessoas que não tinham condições de pagar a estadia, mas, caso ficassem livres nas ruas, poderiam se insurgir contra o governo.


“Tais indivíduos eram encarados pela polícia como nocivos à ordem social, por 'colocar em risco' a população considerada mais culta e abastada da sociedade. Nada estranho, portanto, que entre 1907 e 1916 mais de dez mil internações tenham sido realizadas no Hospício Nacional, com a participação contínua e arbitrária da polícia”, explica o cientista político no artigo. “Este número expressa a preocupação do governo republicano com as inquietações sociais do período, marcado pelo aumento progressivo de pessoas desempregadas, quando não mal remuneradas, enfim, as pessoas que, vivendo à margem da sociedade, marcavam presença constante nas ocorrências policiais”.


Além de ocuparem alas separadas no hospício, pacientes de primeira classe e indigentes tinham acesso a distintas alternativas terapêuticas. Aos primeiros eram reservados atividades de lazer e leitura. Aos segundos, trabalhos manuais que incluíam os serviços de limpeza e manutenção do edifício, com caráter punitivo e disciplinar. “Lima Barreto colocava-se frontalmente contrário à divisão de classes aplicada no hospício, em razão dos obstáculos institucionais e mesmo judiciais impedirem que um indigente usufruísse das mesmas regalias dos pensionistas”, conta Arantes no artigo.


Contudo, Lima Barreto usou suas relações pessoais e de escritor para, durante sua internação no hospício, deixar o convívio com os indigentes e se juntar aos pacientes mais abastados. Dessa forma, o escritor passou a ter acesso à biblioteca, o que possibilitou a produção de seus livros, bem como o auxílio de um médico que cedeu o gabinete para que Lima Barreto escrevesse as primeiras anotações de seu Diário.


Lima Barreto gostava de percorrer longas distâncias a pé e emprestou esta sua característica ao protagonista de Cemitério dos vivos, Vicente Mascarenhas, que fazia passeios pelas seções do hospício para recordar seus sonhos e projetos não realizados. “Combinava assim a lembrança dos sonhos com a prescrição médica da época, que acreditava na terapêutica do movimento como acesso à cura da loucura, preenchendo o tempo com caminhadas”, diz Arantes no artigo. “Entre as possíveis causas da loucura do personagem Vicente Mascarenhas, que em muito reflete a vida real do escritor, a mais curiosa diz respeito à perspectiva negativa do escritor em relação aos relacionamentos afetivos”, acrescenta. “Cemitério dos vivos simboliza uma metáfora de busca da própria imagem do destino dentro do hospício”.