21/02/2017
Fernanda Marques (Editora Fiocruz)
O cinismo está entre nós – e se manifesta, inclusive, no âmbito de publicações acadêmicas e em condutas e prescrições médico-sanitárias. Escrito no gênero ensaio, com boas pitadas de humor irônico, inclusive sob a forma de cartuns, o livro À Procura de um Mundo Melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde, lançamento da Editora Fiocruz, pretende “considerar a naturalização do cinismo que nos envolve e também a muitas práticas sanitárias para saber como demarcar e dimensionar o enfrentamento diante dos poderes que obstaculizam o acesso a um mundo melhor”. Vasculhar a ciência e o discurso acadêmico, inclusive no campo da saúde coletiva, e expor suas fragilidades e incongruências: é isso o que fazem os autores, os doutores em Saúde Pública Luis David Castiel e Danielle Ribeiro de Moraes e o doutor em Antropologia Social Caco Xavier. “Não se trata de seguir adequadamente argumentações lógicas, mas de dissipar de diante dos olhos a fumaça que nos oculta o óbvio”, advertem.
O livro começa com uma bem articulada e acessível fundamentação filosófica e conceitual do termo cinismo. “Trata-se de investigar etimológica, arqueológica e mesmo semioticamente as vizinhanças desta palavra, deste conceito”, afirmam os autores. O cinismo, segundo eles, não é uma mera questão de falseamento de discursos, mas diz respeito, sobretudo, aos efeitos nocivos de uma estrutura contraditória, ambígua, sustentada pelos arcabouços políticos, econômicos e sociais vigentes. Assim, ao desconstruírem práticas cínicas, os autores estão, ao mesmo tempo, tecendo uma crítica ao capitalismo neoliberal globalizado.
Vários são os exemplos de cinismo no campo da saúde. Os indivíduos são, a todo momento, chamados a se responsabilizar pessoalmente pelo cuidado com a própria saúde. Eles têm a obrigação moral de se autocuidar, sem levar em conta as injunções do contexto dominante, seguindo comportamentos que se caracterizam, sobretudo, pelo autocontrole que ‘especialistas’ indicam como as ‘medidas certas’. Esses mesmos indivíduos, porém, não só têm fácil acesso a fastfoods e bebidas alcoólicas, como tais produtos lhes são oferecidos de forma tentadora. Além disso, eles estão intensamente expostos a fontes de desgaste e sofrimento no trabalho e na vida urbana, sem que essas situações potencialmente causadoras de adoecimento sejam, de fato, levadas em conta – no máximo, os indivíduos recebem orientação ‘especializada’ sobre como administrar o próprio estresse. “Sem dúvidas, há um processo reiterado de naturalização dos mal-estares na nossa civilização”, assinalam os autores.
Outro exemplo se refere à automedicação. Embora essa prática venha sendo bastante condenada e combatida, as críticas que ela recebe não são acompanhadas por discussões aprofundadas sobre fenômenos correlatos que também representam riscos à saúde. Entre esses fenômenos, destacam-se a transformação dos médicos em prestadores de serviços e dos pacientes em consumidores, e a influência que as indústrias farmacêuticas e as empresas de planos de saúde exercem sobre as prescrições médicas.
Hoje, no terreno das prescrições, o que não falta é a oferta de novas práticas, tecnologias e produtos farmacológicos que prometem maximizar a performance do corpo humano, ampliar a longevidade com vitalidade e, principalmente, procurar mitigar os sofrimentos emocionais que eclodem ao nosso redor diante deste estado de coisas. Só que isso, além de efeitos adversos, tem importantes custos monetários, de tal sorte que quem não tem dinheiro tem muitas dificuldades para seguir as prescrições de uma pretendida ‘vida saudável’ em meio às demandas exacerbadas destes tempos. É difícil ter acesso a recursos que prenunciam melhor desempenho, bem-estar e vida longa em meio aos desgastes produzidos pelos altos níveis competitivos da vida moderna, pelos ditames dos jogos financeiros e corporativos e sua inapelável geração de precariedades de várias ordens.
Ao lançarem luz sobre essas contradições – que, na maioria das vezes, costumam ser negligenciadas pelos discursos dominantes –, os textos que compõem o livro têm em comum “a preocupação com a proliferação de enunciados cínicos no campo da saúde que inapelavelmente se relaciona a muitas das precariedades presentes”, com destaque para as iniquidades em saúde. “Cientistas primam pelo cinismo quando se autopromovem e, a serviço do mercado da saúde, impõem ao público consumidor, e aos ‘colegas’, o uso das tecnologias de melhoramento. A homilia que descontextualiza os fenômenos da saúde e lhes atribui uma falsa natureza desinteressada e apolítica nada mais é do que o discurso cínico da ciência médica em sua sórdida composição com o neoliberalismo”, analisa o pesquisador Gil Sevalho, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que assina o prefácio do livro.
De fato, o cinismo se manifesta não só no chamado mercado da saúde, como também na esfera acadêmica. Embora a ciência pretenda ser representação o mais fiel possível da realidade, isenta da subjetividade que distorce as evidências, a produção da verdade científica apresenta problemas – e tantas vezes acaba servindo ao domínio econômico e político. Basta atentar para o fato de que a mesma pergunta de pesquisa, com o mesmo conjunto de dados, mas com diferentes técnicas analíticas, pode produzir resultados e conclusões diversas. O que enseja o questionamento de que as chamadas evidências demonstradas por pesquisas podem ter resultados passíveis de acobertar interesses mercadológicos. Questionamento ainda mais pertinente em face de um ambiente acadêmico no qual, segundo os autores, “predomina agora um modelo de universidade operacional utilitário-competitiva que evita criticar de modo estrutural o presente estado de coisas”.
Conforme sintetiza Sevalho, os textos do livro, “se nos preocupam com suas revelações, nos estimulam a resistir nesses tempos em que o cinismo ganha tão sinistras proporções entre a classe política brasileira”. “Lidamos com uma proliferação de certezas que se apresentam como crenças estáveis. É preciso assumir a possibilidade de outros modos de encarar e ordenar o real, sem que nenhum seja tratado com menosprezo por ser visto como despropositado”, propõem os autores.
Na AFN
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