Início do conteúdo

16/10/2019

‘Beijar é bom, gente!’

Eduardo Costa*


O ano era 1985, Cláudio passara algumas noites em “inferninhos” de Copacabana. Alba amargurada, insone em casa? Não. O objetivo era procurar parceiros de casos diagnosticados com Aids e levantar informações básicas sobre as práticas sexuais, em particular, de homens homossexuais. Chamávamos isso de “investigação epidemiológica”. Alguns dos gays que praticavam o comércio sexual tinham cinco ou mais parceiros por noite. Esses locais eram frequentados também por estrangeiros, inclusive mariners americanos.

O assunto era quente e, depois de uma coletiva, a TV Globo quis a tradicional exclusiva. E disparou a pergunta se a Aids podia ser transmitida por contato pessoal, não sexual. “E beijo transmite?”. Ao dizer “não”, “beijar pode”, o cinegrafista fez um close e Cláudio falou alegre e diretamente à câmera, sorrindo: “Beijem muito! Beijar é bom, gente!”. Foi ao ar em horário nobre, encerrando o Jornal Nacional com o “Beijar é bom, gente!”. Assim ele iniciava a luta contra o preconceito com “aidéticos”!

Esse era o Cláudio, ou Cláudio Amaral Jr., nascido em Araraquara, em 1934, e que veio cursar medicina na UFF, em Niterói, onde conheceu e casou com a sua Alba Maria, professora. Dessa união viria ao mundo Luiz Cláudio, hoje médico, e que o acompanhou na sua saga hospitalar nos últimos dias, até seu falecimento em 10 de outubro de 2019.

Cláudio foi diretor do Departamento de Epidemiologia da Secretaria Estadual de Saúde e Higiene (Sesh) do Governo Brizola. No ano anterior, tinha me advertido que a epidemia de Aids vinha aí. O Rio de Janeiro tivera o primeiro caso diagnosticado em 1983, se a memória não me trai, e por isso, pioneiramente no Brasil, colocamos a Aids como enfermidade de notificação compulsória. E a cada caso notificado um epidemiologista fazia a investigação. 

O assunto era novo, não havia quem soubesse como e para que fazer a investigação. Por isso Cláudio, no início, acompanhado de alguém mais jovem, ia pessoalmente. Tínhamos os dados do CDC dos casos nos Estados Unidos (EUA) que à época somavam um total próximo de 3 mil, e mais de 90% eram em homens homossexuais. Apenas 3% eram transmitidos por transfusão sanguínea. Já no início de 1986 Cláudio trouxe a sumarização dos primeiros 50 casos ocorridos e investigados por sua equipe: diferentemente dos Estados Unidos, 17 eram politransfundidos e 16 hemofílicos, isto é, 30%, uma proporção 10 vezes maior do que nos EUA! Desenvolver e adquirir meio diagnóstico e proibir a comercialização de sangue, eram as tarefas iniciais. Tínhamos por onde começar.

Mas não foi só isso. Em três anos de gestão, o panorama epidemiológico do Estado do Rio de Janeiro tinha mudado radicalmente. Entre muitas coisas, destaco a “paulada” no sarampo organizada por Cláudio e Alba, porque, mesmo sem ser nossa funcionária ela mobilizaria todas as professoras e escolas do interior para, em um sábado de maio de 1985, dar aquela paulada. Desafio: em um dia, imunizar todas as crianças até 5 anos com vacina injetável! Sucesso absoluto: morriam de sarampo, por ano, cerca de 400 crianças. No primeiro ano pós-campanha estavam reduzidos a 45 e depois zerado.

Albert Sabin, ao conhecer nossa proposta, diria que foi o primeiro e melhor programa concebido e executado no mundo até aquela data. Depois disso, Cláudio voltou a seu posto de epidemiologista na Funasa, em Brasilia, trabalhando para conter a epidemia de meningite B, o cólera, a hepatite B, para consolidar a eliminação da poliomielite e para a eliminação do sarampo no Brasil.

Os tempos mudaram e os epidemiologistas de campo no Brasil se tornaram raros e supérfluos. “Manuais dizem o que fazer”, brincava Cláudio. Aposentou-se e aproveitou para viajar muito pelo mundo. Afinal, tinha amigos em muitos países.

Tive a sorte de conhecê-lo e passar a trabalhar com ele em janeiro de 1969. Éramos, médicos, jovens, contratados para a Campanha de Erradicação da Varíola. Em São Paulo, no Hospital Emilio Ribas, durante um mês, estudamos a doença e fizemos nossas primeiras investigações epidemiológicas. Era um grupo de mais de 20 treinandos, um para trabalhar em cada estado do Brasil. Três de nós foram testar a metodologia de “apaga fogo” no Paraná, Minas e Bahia e implantar as primeiras unidades de vigilância epidemiológica estaduais do Brasil. Cláudio Amaral pegou o Maranhão para realizar a “fase de ataque”, isto é, vacinar todo mundo no estado. Recrutou um pequeno batalhão de pessoas e palmilhou o Maranhão inteiro, vacinando nas cidades e nos campos, ao longo de mais de um ano. Cobertura próxima a 100%. Ficou reconhecido por sua capacidade de trabalho, de organização no campo e de comunicar com o povão. Entre muitas pessoas ganhou a admiração do então governador José Sarney. Terminada a tarefa, foi recrutado para ficar no nível central da Fundação Sesp, ao lado de grandes sanitaristas de gerações anteriores, ajudando a coordenar o trabalho de vigilância epidemiológica no país.

No início de 1972 não resistiu ao apelo de DA Henderson, o coordenador mundial da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) da OMS. A fase de ataque não dera o resultado esperado na Índia: a vacinação de meio bilhão de pessoas em país de forte movimento migratório interno, inclusive com populações nômades, não interrompera a transmissão e a cada ano nasciam cerca de 15 milhões de crianças, não imunizadas e dispersas. Henderson concentraria lá, então “os melhores” para trabalhar no método da contenção de surtos, preconizado por Bill Foege (lá presente). DA não gostava de títulos, queria médicos sim, mas nada de acadêmicos. Era pé-no-chão. O perfil de Cláudio era o que ele precisava.

Ele e sua Alba Maria se mudaram para Calcutá para enfrentar as dificuldades que se apresentavam na Índia para erradicar a Mata (divindade de doenças). Podem estar certos que era trabalho pesado — em meio a monções que atingiam os pontos mais afastados, com problemas nos transportes e alimentação, dificuldades na língua e a existência de castas segregadas. Cerca de dois anos depois seria transferido para enfrentar a área mais difícil da África, a Etiópia, porque estava em guerra civil e tinha tensões na fronteira com a Somália.

Aqui, o trabalho de Cláudio se torna uma das mais belas aventuras humanas no que podemos chamar de processo civilizatório que a medicina, a saúde pública propicia. A vacinação se torna um instrumento civilizacional específico passando por cima de processos políticos, sociais e culturais.
 
Dois episódios na Etiópia transformaram Cláudio Amaral conhecido no mundo, por manchetes de grandes jornais europeus e do Brasil. O primeiro foi a descida de um helicóptero em meio a uma situação operacional crítica, o que o fez descuidar-se, para evitar que uma pessoa fosse atingida pela hélice traseira. Teve a cabeça atingida pela pá do helicóptero. Cláudio, sangrando muito, foi reembarcado. Apesar do trauma, não houve fratura craniana, só escalpelamento. Levado a Adis Abeba, suturado, voltou logo ao trabalho. Mais ou menos como voltar com a cabeça enfaixada para o campo de futebol!

No segundo episódio, Cláudio, para vacinar, penetra numa área de controle de guerrilheiros, não distante da fronteira com a Somália, e é feito refém. A OMS e a ONU se mobilizam a fim de saber as exigências e condições de resgate. Mas o presidente da Etiópia avisou que bombardearia a região. Alba, que trabalhava na Embaixada da Suécia, vai ao embaixador pedir que interceda junto ao governo para não fazer isso.

Cláudio, com graça, contava que ao o revistarem ficaram um pouco frustrados com o que havia nas caixas e mochilas (vacinas, agulhas bifurcadas, desinfetantes, gazes). A comunicação era por sinais e palavras esparsas. E ele percebeu que discutiram sobre sua execução — ele sabia da localização deles. Sem saber o veredito, fez ver que já que ele estava ali deviam aproveitar para serem vacinados! Sim, ele os vacinou e pediu cobertura para vacinar as pessoas da região sobre controle deles. Assim foram todos conquistados para sua meta. Depois de uns dias de agitação nos meios diplomáticos, Cláudio deu sinal de vida. Procurou um serviço de saúde para avisar que fora solto. Havia sido levado para uma hospedaria e o deixaram lá sem exigências.
 
Concluída sua missão na Etiópia, voltou para o Brasil. Como é que eu não iria trazer um cara como esse para trabalhar comigo no Governo Brizola?! No seu enterro, tive a oportunidade de agradecer a ele por tudo que fez pela saúde e também pelo que me proporcionou com sua amizade franca e leal. Pedi desculpas pela minha insuficiência pessoal para retribuir a ele, como devido, sua enorme generosidade em todos os momentos que a ele recorri.

Concordando com as palavras do padre que fez a última oração, afirmei que sim, Cláudio alcançava a eternidade, pois sua luta e histórias estarão imortalizadas nas prateleiras de bibliotecas de todo o mundo, como já está na da OMS, no livrão da história da varíola. Deixou seu acervo pessoal na Fiocruz, para juntar ao acervo da Fundação Sesp que lá está. Pronto para ser em muitos aspectos explorado por estudantes e pesquisadores.

Adeus, meu amigo! Continuamos juntos, como irmãos. Beijo, Alba! Abração, Luiz Cláudio!

*Eduardo Costa é médico sanitarista e professor aposentado da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). 

Voltar ao topo Voltar