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08/04/2011

Bióloga comenta pesquisas que buscam substituir os animais em ensaios de laboratório

Pablo Ferreira


Atualmente vice-diretora do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz), a bióloga Isabella Fernandes Delgado trabalha desde 2002 com pesquisas que buscam substituir os animais em ensaios de laboratório. Na entrevista abaixo, ela fala sobre o 2º Encontro sobre Métodos Alternativos ao Uso de Animais para Fins Regulatórios (Emalt) e do panorama atual dos métodos alternativos no Brasil.



O que motivou a realização desse 2º Emalt?

Isabella Fernandes Delgado:
O primeiro Emalt ocorreu em 2005. Foi o primeiro encontro sobre métodos alternativos no Brasil e foi o INCQS quem o organizou. Achamos que passados cinco anos daquele evento, já era tempo de realizarmos sua segunda edição, procurando aprofundar a programação da anterior. Este segundo Emalt voltou-se, sobretudo, para a questão da validação e de aceitação regulatória desses métodos.


A aceitação regulatória seria o reconhecimento e a validação de métodos alternativos pelo Estado?

Isabella:
Sim. Como se dá a aceitação regulatória de uma nova metodologia: a primeira etapa é o seu desenvolvimento. É um momento mais longo, quando são feitos estudos comparando-a com outra metodologia tradicional, que pretendemos substituir. Se essa nova metodologia se mostrar útil, com potencial preditivo para determinado desfecho, então partimos para uma segunda etapa, que é a validação.


O estudo de validação também é longo e com diferentes etapas, mas é por meio dele que se consegue a aceitação regulatória. As agências regulatórias, os fóruns regulatórios, normalmente só incorporam uma metodologia em um compêndio oficial – seja a farmacopeia ou qualquer outro – se houver uma validação formal dessa metodologia. É assim que funciona: desenvolvimento, validação e aceitação regulatória.


O que aconteceu neste Emalt é que nós queremos trabalhar mais a questão da validação e de aceitação regulatória dessas metodologias. Queremos realmente vencer essa barreira. Não só ter o método desenvolvido, mas validado e incorporado na rotina do controle de qualidade de produtos da área da saúde.



Quais as dificuldades para se organizar o Emalt?

Isabella:
No primeiro Emalt, tivemos dificuldades de conseguir apoio financeiro das agências de fomento, desta vez isso não aconteceu. Conseguimos apoio de todos a quem solicitamos: Faperj, CNPq, Capes, Banco do Brasil e Biomanguinhos. Isso mostra que as agências de fomento têm hoje uma percepção de que o tema é importante e estão andando junto conosco. Fora isso, apontaria apenas o fato de não termos uma comissão de eventos aqui no INCQS, mas essa é uma questão interna.



E qual é sua avaliação do encontro?

Isabella:
Foi muito bom. Em relação ao primeiro, percebi maior participação do público, houve uma procura enorme pelo evento, maior do que podíamos atender. O que mostra estarmos no caminho certo, havendo mais interesse da comunidade científica, dos laboratórios produtores e de diferentes segmentos da sociedade pelo tema. Esse interesse está crescente, está maior no Brasil.


Houve momentos de discussão mais política, dado o papel do Concea. E houve discussão sobre a criação de um centro de validação de métodos alternativos no Brasil. Enfim, no geral foi muito bom. O primeiro evento foi mais tímido, não tivemos uma procura tão grande, mas temos que tomar um pouco de cuidado, pois fomos muito procurados por pessoas que acham que o estudo de novas metodologias significa uma substituição imediata e sabemos que não é assim que ocorre. Tem de ser feito com cuidado e cautela, é um processo demorado e é isso que buscamos nesse Emalt.


A senhora quer dizer que, apesar do avanço nos métodos alternativos, ainda há áreas em que o uso do animal é indispensável?

Isabella:
Eu percebo assim. Existem áreas que não temos, nem a curto, nem a médio prazo, nenhuma possibilidade de substituição do animal.


O que faltou ao evento?

Isabella:
Faltou realizar uma discussão pontual sobre a criação de um centro de validação de métodos alternativos no Brasil, nos moldes dos que existem na Europa ou no Japão. Essa era nossa intenção na mesa de encerramento, mas houve um esvaziamento no último dia.


Hoje o Brasil não conta com um centro desse tipo?

Isabella:
Ainda não. Porém – e até como desdobramento do Emalt – no início deste ano, o diretor daqui do INCQS, Eduardo Leal, a vice-presidente de Pesquisa e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Claude Pirmez, e eu nos encontramos com a diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Maria Cecília Martins Brito, em Brasília. Lá, decidimos firmar um termo de cooperação entre a Fiocruz e a Anvisa para a criação de um centro, e se tudo der certo, o mesmo já começará a funcionar ainda este ano, o que é ótimo.


Outros países já têm centros de validação de métodos alternativos?

Isabella:
Sim, na Europa há o Ecvam [sigla em inglês para Centro Europeu para Validação de Métodos Alternativos]. Há centros também no Japão, Estados Unidos, Austrália, México, dentre outros. O Brasil ainda não possui.



E no Brasil? Que etapas seriam necessárias para se chegar a um centro desse tipo? E como ele funcionaria?

Isabella:
Primeiro é preciso haver uma aceitação pública do centro, depois precisaríamos mapear quem trabalha com métodos alternativos em nosso país, conhecer esses grupos de pesquisa. Por fim, seria preciso realizar fóruns de discussão com agências internacionais para se discutir a estrutura desse novo centro.


Isso feito, trabalharíamos nos moldes de como se trabalha em outros países. Por exemplo, se uma instituição desenvolve uma nova metodologia, ela poderia, por meio desse centro, pleitear um estudo de validação. A validação passa por diversas etapas, como a de estudos interlaboratoriais. O centro buscaria laboratórios parceiros para esses estudos. Na sequência avaliaria os resultados desse processo de validação por meio de pareceristas ad hoc.


Falemos do Ecvam. Quando um novo método é desenvolvido, ele é encaminhado ao Ecvam, que pode auxiliar no estudo de validação. Os resultados desse estudo são posteriormente avaliados por um comitê de experts, que pode ou não sugerir alguns ajustes. Enfim, quem faz todo o meio de campo entre comunidade científica e agências regulatórias é o Ecvam.


Lá fora, um ensaio só ganha aceitação regulatória, só ganha espaço em um compêndio oficial se passar por um processo formal de validação, no qual o papel do centro é fundamental e necessário. Além disso, o Ecvam também possui outras atribuições, como a de fomentar pesquisas de desenvolvimento de novos métodos. Para nós, no entanto, inicialmente o mais importante seria termos um espaço para organizarmos grupos e estudos relativos aos métodos alternativos no Brasil.


Ainda sobre esse ponto, durante o Emalt alguns questionaram por que o Brasil precisaria de um centro se podemos incorporar metodologias que já vêm prontas de outros países. O que a senhora diz sobre isso?

Isabella:
Sim, na prática é isso mesmo, se você tem uma metodologia já validada lá fora – e esses estudos são muito caros -, naturalmente nós a incorporaríamos aqui. Não faria sentido repetirmos ensaios. No entanto existem interesses muito particulares do universo brasileiro e que, se não estudarmos, ninguém estudará lá fora. São problemas de saúde pública que dizem respeito à realidade e ao cenário brasileiro. Por exemplo, hoje o controle de qualidade de soros antipeçonhentos se faz utilizando animais e ninguém lá fora tem o interesse em avaliar alternativas de ensaios para avaliar soros de espécies de serpentes existentes no Brasil. Então, situações como essa justificam a criação de um centro nosso. Para o caso de situações de saúde pública de interesse apenas nacional, que dificilmente será estudado lá fora.


Além da falta de um centro, quais as principais dificuldades encontradas hoje no Brasil para a validação de novos métodos?

Isabella:
No passado foram estabelecidos critérios sem grande rigor científico, e hoje em dia, para criarmos um novo método, nos é cobrado um rigor muito maior, sem nem sempre existir uma relação direta entre o modelo animal e a alternativa que queremos implantar. Essa é uma dificuldade. Outro problema é a etapa interlaboratorial para os estudos de validação, pois há enorme dificuldade em se conseguir parceiros para realizarmos esses estudos.


Como vê a situação atual dos métodos alternativos no Brasil? O que há de positivo e o que falta melhorar?

Isabella:
Poucas são as áreas onde temos uma realidade tão promissora em termos de substituição de animais como é a de controle de qualidade. Por quê? Porque temos ensaios que se repetem. Eles entram em uma rotina. Logo, muitas vezes é possível substituir sim. Se não o método todo, etapas dele, como é o caso da soroneutralização para difteria e tétano. Há também modelos de substituição plena do uso de animais; o ensaio de potência de vacina contra hepatite B é um bom exemplo, assim como o teste in vitro de pele reconstituída, usado na avaliação do potencial irritante de cosméticos e outros produtos de uso tópico.


Acho que no Brasil (e talvez por isso o INCQS tenha se envolvido tanto na organização do primeiro e do segundo Emalt) quem deve estar à frente desse tema são as pessoas que trabalham com controle de qualidade. Tanto na avaliação toxicológica de produtos como medicamentos ou cosméticos, quanto em testes de potência de imunobiológicos – que é, aliás, onde mais utilizamos animais.


O INCQS é um dos maiores usuários de animais da Fiocruz e grande parte vai para avaliação de imunobiológicos, ou seja, vacinas. Então é natural que o INCQS esteja à frente dessa discussão, assim como os laboratórios produtores, que precisam realizar seu próprio controle de qualidade.


Como está o Brasil em relação ao mundo na questão de desenvolvimento de metodologias alternativas?

Isabella:
Existe um reconhecimento do trabalho que realizamos aqui. Temos procurado estar presentes nos encontros e congressos internacionais. Aliás, também como desdobramento do Emalt, estamos em vias de fechar um convênio bilateral com a Alemanha, entre o Instituto Paul-Ehrlich e o INCQS. Isso significa uma cooperação importante na área de métodos alternativos vinculados ao controle de qualidade de produtos sujeitos à ação da vigilância sanitária.


O que seria necessário para se ampliar o debate sobre métodos alternativos na sociedade?

Isabella:
Propostas de lançamento de editais de pesquisa específicos em métodos alternativos e lançados por agências de fomento, como o CNPq, seriam um grande avanço. Creio também que as universidades deveriam abordar melhor a realidade dos métodos alternativos, incluindo em suas grades curriculares disciplinas voltadas à temática de métodos alternativos.


Geralmente estamos em uma chamada zona de conforto, trabalhando com aquelas metodologias tradicionais, mas essas nem sempre são as melhores. É importante pensar que ao trabalhamos o desenvolvimento de novas metodologias, sejam elas alternativas ou não, estamos trabalhando melhoria de processo, ou seja, o desenvolvimento de metodologias mais precisas, mais sensíveis e reprodutíveis. Concluindo, para ampliar o debate, creio que não só a questão ética é importante, mas também ter a consciência de que às vezes estamos trazendo uma melhoria, mais agilidade e maior precisão aos processos laboratoriais.


E a sociedade civil? Pode contribuir com esse debate?

Isabella:
Sim, claro! Mas sempre com cuidado. Não podemos atropelar as etapas. Precisamos sim pensar no bem-estar animal, mas também no bem-estar das pessoas. Se atropelarmos as etapas, poderemos colocar produtos de saúde em circulação sem o devido cuidado, pondo em risco a população. Portanto tudo deve ser feito com muita sobriedade, cautela e cuidado. O processo é mesmo demorado, custoso, temos que ter paciência. Mas a sociedade civil pode estar certa de que, de uma maneira geral, a comunidade científica está comprometida em substituir os animais em pesquisas. Porque é melhor. Inclusive é mais confortável para quem está trabalhando na bancada do laboratório. Não é agradável para ninguém sacrificar animais.


Publicado em 8/4/2011.

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