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24/07/2020

Casa de Chá da Fiocruz chega aos 115 anos restaurada

Glauber Gonçalves e Haendel Gomes (COC/Fiocruz)*


Lado a lado, em duas fileiras, alguns dos cientistas brasileiros de maior projeção no século 20 posam para uma foto com dois ilustres visitantes estrangeiros. Ao centro, sentado, Oswaldo Cruz olha para a câmera. A fotografia histórica – feita em algum momento entre junho e dezembro de 1908 para eternizar a passagem dos pesquisadores alemães Gustav Giemsa e Stanislas Von Prowazek pelo Instituto Oswaldo Cruz – chama a atenção não apenas por reunir num mesmo quadro tantas figuras de destaque no mundo científico. Salta aos olhos também a beleza do cenário: uma elegante estrutura branca em madeira treliçada que dá forma à Casa de Chá, edificação que ainda hoje desponta ao lado das escadarias de acesso ao castelo-sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Cientistas do Instituto Oswaldo Cruz posam com pesquisadores alemães (foto: Acervo COC/Fiocruz)

 

Construído no início do século 20 para abrigar o refeitório que atendia os cientistas do instituto recém-criado por Oswaldo Cruz, embrião da atual Fiocruz, o singelo conjunto acaba de passar por um minucioso processo de restauração. Conduzida pela Casa de Oswaldo Cruz, a intervenção garantiu a preservação das características originais do conjunto e adequou a infraestrutura para que a Casa de Chá – um importante espaço de sociabilidade que congregou cientistas, estudantes e trabalhadores de diversas gerações – tenha seu uso original mantido, agora com um novo restaurante.  

O caramanchão – uma estrutura de madeira do tipo gaiola – foi a primeira das duas edificações da atual Casa de Chá a ser construída. Durante as obras, finalizadas em 1905, uma solução foi encontrada para atender um pedido especial de Oswaldo Cruz. O cientista fazia questão que a frondosa figueira existente no terreno escolhido para o caramanchão fosse mantida. O resultado pode ser viso em fotos do período: os galhos da árvore varavam o teto, proporcionando sombra ao espaço. “Cortar uma árvore é o mesmo que matar uma pessoa”, disse Oswaldo Cruz ao Jornal do Commercio à época. 

Conduzida pela Casa de Oswaldo Cruz, a intervenção garantiu a preservação das características originais do conjunto e adequou a infraestrutura para que a Casa de Chá tenha seu uso original mantido (foto: Jeferson Mendonça)
 
 

A figueira já não existe mais. Por causa de uma infestação de fungos, foi removida na década de 1970. A proliferação de organismos desse tipo, mais recentemente, vitimou também a própria estrutura do caramanchão, que passou por um cuidadoso processo de desinfestação. Completamente recuperado, o madeiramento foi pintado e ostenta novamente o aspecto original, como nos tempos de Carlos Chagas e Adolpho Lutz, alguns dos cientistas que passaram pela Casa de Chá. A obra incluiu ainda a recuperação da cobertura, com a substituição integral das telhas, para solucionar problemas de escoamento da água da chuva. 

Intervenção na Casa de Chá manteve elementos originais

O edifício anexo ao caramanchão, erguido na década de 1920, também foi contemplado na intervenção recém-finalizada. Uma das preocupações foi consolidar rachaduras e fissuras, que já vinham sendo monitoradas pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz, responsável pela preservação do conjunto. Do piso ao forro de madeira, passando pelas esquadrias e os revestimentos, o edifício foi totalmente recuperado. Na cobertura, as telhas originais, fabricadas em Marselha, na França, foram mantidas.  

“A maior parte das telhas são originais, mas algumas precisaram ser substituídas”, explica a arquiteta Ana Maria Barbedo Marques, responsável pela obra. “Então fomos em busca de telhas daquela época, em que o Brasil recebeu muitos carregamentos de Marselha. Conseguimos comprar um lote produzido pelo mesmo complexo de fábricas, que pertencia a uma edificação que tinha sido demolida”, conta.  

Uso preservado: anexo teve adaptações para receber novo restaurante (foto: Jeferson Mendonça)

 

A preocupação com a preservação das características originais do anexo não impediu adaptações necessárias para o uso atual. Foram integralmente reformados a cozinha e os banheiros, agora adaptados para o uso por pessoas com deficiência. Na entrada, uma rampa foi projetada para tornar o espaço mais acessível. “Com a intervenção, resolvemos o problema do sistema de climatização anterior, que prejudicava o conforto acústico do ambiente, e adequamos a coifa da cozinha às normas sanitária atuais”, explica Marques, uma das fiscais da obra, ao lado de Fernando Mendes e Benoni Oliveira.

Das fases de estudos e elaboração do projeto à conclusão da obra, o processo de restauração envolveu mais de 30 profissionais da Fiocruz e de empresas contratadas, entre arquitetos, engenheiros, pintores e eletricistas, entre outros. Os investimentos foram da ordem de R$ 1,2 milhão. 

Para a chefe do Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz, Cristina Coelho, a intervenção na Casa de Chá pode ter impacto positivo na postulação de outro edifício do núcleo arquitetônico ao título de patrimônio mundial: o Castelo da Fiocruz. "Preservar esses traços é fortalecer a memória da saúde pública no Brasil e transmiti-la com toda a sua riqueza de detalhes. É também reforçar as potencialidades desse conjunto no contexto da pretensa candidatura do Pavilhão Mourisco a patrimônio mundial sob a égide de patrimônio da ciência”, avalia.

Cenário de trocas científicas, Casa de Chá já abrigou tardes de chorinho

Completamente restaurada, a Casa de Chá mantém hoje o mesmo charme das primeiras décadas do início do século 20, mas guarda pouca semelhança com as imagens observadas por quem frequentava o campus da Fiocruz no fim dos anos 1970. O estado do conjunto – assim como o de outros prédios do núcleo histórico – foi descrito como “ruinoso”, em um período de decadência para a instituição, que se estendeu durante a ditadura militar. A situação começou a mudar na década de 1980, quando ações de manutenção, conservação e restauração do patrimônio arquitetônico da Fiocruz passaram a ser realizadas sistematicamente, com a criação da Casa de Oswaldo Cruz, unidade dedicada à preservação dos edifícios históricos.

Figueira foi incorporada ao projeto original a pedido de Oswaldo Cruz (foto: Acervo COC/Fiocruz)

 

Ao longo do século 20, a Casa de Chá foi cenário de intensas transformações em um dos principais centros de pesquisa do país e na sociedade brasileira. Segundo relatos do médico Ezequiel Dias, discípulo de Oswaldo Cruz, a oferta de alimentação gratuita aos cientistas da instituição – localizada em uma área distante do centro urbano – foi instituída pelo seu mentor. As refeições eram servidas no caramanchão em horários pré-determinados: o almoço saía às 11h e o jantar, às 17h30. Durante décadas, o espaço se manteve reservado a cientistas e a técnicos mais graduados, segundo relato de Herman Lent, pesquisador que atuou na instituição até sua cassação pela ditadura em 1970. 

“Os demais funcionários almoçavam em um edifício anexo, onde funcionava também a cozinha, e ainda pequenos laboratórios, e que hoje abriga o salão principal para o serviço de restaurante”, afirmou Lent, morto em 2004, em depoimento publicado no livro Um lugar para a ciência: a formação do campus de Manguinhos, de Renato Gama-Rosa, Benedito Oliveira e Alexandre José de Souza. 

Em meados dos anos 1980, momento de efervescência democrática na instituição e no país, a dinâmica no interior do espaço, que passara a ser mais plural, lembrava pouco a do ambiente frequentado por Oswaldo Cruz e seus pares. Quem passasse por lá entre 1985 e 1986 talvez tivesse a chance de acompanhar uma das célebres tardes de chorinho, que tinham entre seus incentivadores e frequentadores o sanitarista Sérgio Arouca, presidente da Fiocruz à época e um dos artífices da criação do Sistema único de Saúde (SUS). 

"A ideia era propiciar um espaço de lazer na Casa de Chá, para que, além dos pesquisadores e professores, pudéssemos incorporar aqueles que tinham interesse pela música e congregar gente de diferentes lugares, com diferentes opiniões e posições”, conta Arlindo Fábio Gómez de Sousa, ex-vice-presidente de Desenvolvimento da Fiocruz e atual coordenador do Canal Saúde. Para ele, as tardes de chorinho cumpriram papel integrador em um contexto em que a Fiocruz, criada em 1970 a partir da conjunção do Instituto Oswaldo Cruz e outros institutos, buscava consolidar-se institucionalmente. 

Esse ambiente propício para trocas contribuiu para selar parcerias científicas e moldar as trajetórias de pesquisadores e da própria instituição. Um desses encontros, durante um almoço na década de 1980, aproximou os pesquisadores Eloi Garcia e Carlos Morel, e deu início a uma relação profissional que, mais tarde, resultou na criação do Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). 

“Nos primeiros dias após minha contratação encontrei, em um almoço na Casa de Chá, com Carlos Morel, [...] então chefe do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular (DBBM) do IOC. Morel me convidou para visitar o departamento, uma maneira sutil para depois me convidar para trabalhar lá. Foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida científica”, revelou Garcia em depoimento dado em 2010 por ocasião dos 110 anos da unidade. 

Segundo Garcia, Morel lhe deu todas as condições materiais e políticas para criar o Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos, o primeiro do Brasil. “Minha carreira científica deslanchou e comecei a participar mais da vida política institucional e internacional, participando também de vários comitês do TDR/OMS [programa de colaboração científica que ajuda a coordenar, apoiar e influenciar os esforços globais para combater as principais doenças infecciosas da pobreza]”, declarou. Anos depois, tanto Garcia quanto Morel assumiram a presidência da Fiocruz.

Na reabertura da Casa de Chá, foco na prevenção contra a Covid-19

Enquanto a Fiocruz trabalha em um edital para a seleção de uma empresa de alimentação para ocupar a Casa de Chá, a edificação está abrigando provisoriamente o serviço de alimentação que funcionava no Centro de Recepção do Museu da Vida. O deslocamento do restaurante foi necessário, pois o espaço de acolhida aos visitantes agora está funcionando como um centro de triagem e testagem para a Covid-19.

Ao todo, mais de 30 profissionais de diferentes especialidades, como arquitetos, engenheiros e pintores, atuaram na intervenção na Casa de Chá da Fiocruz (foto: Jeferson Mendonça)

 

Para a abertura do espaço, medidas preventivas foram adotadas como forma de garantir a segurança dos funcionários e dos frequentadores durante a pandemia, explica a nutricionista Wanessa Natividade, do Núcleo de Alimentação, Saúde e Ambiente da Fiocruz. “Como medida coletiva de prevenção e proteção para os ambientes alimentares da instituição, foi realizada uma ação de capacitação com os manipuladores de alimentos, pautada nas normas sanitárias vigentes, para proporcionar um ambiente alimentar mais seguro diante da pandemia da Covid-19”, afirma.

Foram realizadas atividades educacionais com ênfase em práticas protetivas como o uso obrigatório de máscaras, lavagem das mãos, utilização de álcool em gel 70%, higiene dos ambientes alimentares, alimentos e embalagens, distanciamento de pessoas, entre outras medidas.

*Colaboração: Jaquecline Boechat (COC/Fiocruz)

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